É quase meio-dia e na escadaria do Palácio de Sintra a coligação Portugal à Frente tira uma fotografia de grupo. Ao lado de Passos, tal como no curto caminho até à pastelaria Piriquita, na mesa onde ambos se sentam para provar travesseiros, ou na varanda do Hotel Tivoli, onde se recolhem de uma breve e meticulosamente preparada acção de rua, está Paulo Portas.
O primeiro gesto de ambos na varanda com vista para a serra: Passos tira o casaco e arregaça as mangas, Portas acende um cigarro. Marco António Costa, que não esteve na rua, recebe-os. Os restantes dirigentes, e membros do Governo, ficam no lobby. A coligação que une a direita portuguesa nestas legislativas depende desta “troika” que se reúne, em privado, no hotel. E foi Passos quem, nuns célebres idos de Julho, garantiu que tudo se passaria exactamente assim.
Isso aconteceu, também, num hotel da cadeia Tivoli, em Lisboa. Às 19h37 de domingo, 7 de Julho de 2013, Passos Coelho apareceu, ao lado de Paulo Portas, para pôr fim a uma das semanas mais confusas da política portuguesa recente que por pouco não acabava com a coligação: “Chegámos a um acordo alargado e sólido”, garantiu então. Foi aí que começou a desenhar-se a campanha eleitoral que hoje se aproxima do fim.
Poucos terão sido os que anteviram naqueles dias o “renascimento” político de um primeiro-ministro desgastado e impopular. A ponto de ser, hoje, “o principal activo político de um Governo desgastado”, assegura um membro do executivo.
Pedro Manuel Mamede Passos Coelho, 51 anos feitos no dia 21 de Julho, tem duas características que ajudam a explicar este momento de viragem, a meio da legislatura, durante uma crise política, quando tudo parecia irremediavelmente perdido. A primeira é destacada por quase todos os seus amigos e colaboradores próximos com quem falámos: “Ele supera-se sob pressão.” A outra é mais complexa, e é sobretudo um demérito dos seus adversários, ou oponentes de ocasião: “Toda a gente o subestimou desde o início.”
Nestes quatro anos, Passos Coelho construiu uma “narrativa propagandística perfeita”, nas palavras do publicitário Pedro Bidarra (que entre outros já trabalhou para Cavaco Silva e Paulo Portas). Tornou-se, nas palavras de outro publicitário, Carlos Coelho, “uma marca muito, muito sólida”. E resistiu a acontecimentos que poderiam ter ditado a sua queda — da demissão de Portas à revelação de factos sobre o seu passado profissional na Tecnoforma, ou às suas dívidas à Segurança Social.
Há uma terceira característica, determinante para a sua sobrevivência política: “Ele antecipa os cenários.” O da crise política, em Julho de 2013, pode até tê-lo “surpreendido”, como afirmou perante as televisões. Mas não a ponto de o deixar sem resposta, como muitos portugueses (e a grande maioria dos membros do seu próprio Governo) então ficaram.
A TSU e a hierarquia do Governo
A história tem uma cronologia e começa quase um ano antes da demissão de Paulo Portas. Talvez ajude a esclarecer a necessidade do adjectivo “irrevogável” que se colou ao líder do CDS. Esta não foi a primeira vez que Passos ouviu Portas avançar com a hipótese do fim da coligação. A primeira foi em Setembro de 2012, na sequência do célebre anúncio da TSU. Na altura, não por coincidência, também Vítor Gaspar, o ministro das Finanças, lhe pediu para sair. As razões de um e do outro não eram exactamente as mesmas, mas tocavam-se. Gaspar alegava que não tinha condições para continuar, depois de ter falhado o cumprimento dos limites para o défice e a dívida inscritos na negociação com a troika. Acreditava que deveria ser ele a “assumir a responsabilidade política” por isso. Portas temia que nada mudasse. A TSU foi a gota de água.
Gaspar comportava-se, por esta altura, como “uma espécie de chefe”. “Ele era o único que se levantava a meio de um conselho de ministros para desligar o ar condicionado sem pedir autorização ao primeiro-ministro”, ilustra um anterior colaborador do Governo.
Portas mostrou reservas, mas não as expressou em público, segundo ele, para evitar uma “crise trágica no Governo”. Passos alinhou com Gaspar. E anunciou a medida no dia 7 de Setembro, às 19h20. O tom professoral do discurso que ainda hoje levanta dúvidas sobre a sua autoria, mesmo dentro do Governo (uns dizem que foi escrito por Bruno Maçães, o actual secretário de Estado dos Assuntos Europeus que, na altura, era assessor político do primeiro-ministro; outros garantem que é da autoria de Miguel Morgado, o principal assessor de Passos, embora tenha sido corrigido posteriormente), e o anúncio de uma descida da contribuição das empresas para a Segurança Social, compensada por um igual aumento (7%) da taxa paga pelos trabalhadores, provocou uma onda de choque transversal. “Isto é demente”, lembra-se de ter desabafado um assessor do Governo ao ouvir Passos na televisão elogiar a via dos “sacrifícios”: “Não acreditem nas pequenas soluções, nas soluções indolores, para os nossos problemas mais graves.”
Para piorar a situação, logo após o anúncio, Passos foi fotografado, na plateia do Tivoli, em Lisboa, assistindo a um concerto de Paulo de Carvalho, cantando sorridente o clássico Nini. “E desde então se lembro o seu olhar...”
A manifestação de dia 15, Passos não a antecipou. Foi a maior (em termos relativos) que um país europeu sob resgate viu na actual crise. A medida polémica caiu, num Conselho de Estado convocado pelo Presidente da República.
Portas acabou despromovido por Passos, numa entrevista, em Novembro, à TVI, quando clarificou a hierarquia do Governo: “O número dois do Governo é o ministro das Finanças, evidentemente, e o terceiro é o ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros.” Nessa mesma entrevista, Passos voltou a baixar as expectativas: “Nunca ninguém me ouviu dizer que ia ser pêra doce.”
Por esta altura, em final de 2012, já eram virais na Internet as compilações de frases e discursos do líder do PSD, antes das eleições de Junho de 2011, em que parecia, de facto, dizer que ia ser “pêra doce”. “Não é preciso fazer mais aumentos de impostos”, nem “cortar o 13.º mês”, prometera em campanha. Bastava, como então não se cansou de explicar, “cortar nas gorduras do Estado”. Na campanha, Passos chegou a garantir que nunca iria ser surpreendido pelas contas do Governo anterior, de José Sócrates, porque andara a “vasculhar” todos os números e sabia com o que contar. Mais tarde diria que não foi bem assim...
Poucos meses depois de ser eleito, anunciou: “Vivemos um momento de emergência nacional.” Em Outubro de 2011, concretizava a sua primeira medida numa estratégia descrita por front-loading, isto é, concentrar o máximo de austeridade no início esperando que o choque produza um efeito de crescimento mais rápido. Por isso, decidiu-se pela “eliminação dos subsídios de férias e de Natal para todos os vencimentos dos funcionários da Administração Pública e das Empresas Públicas acima de mil euros por mês”. No final, declarou: “Quando fui eleito primeiro-ministro, nunca pensei que tivesse de anunciar ao país medidas tão severas e tão difíceis de aceitar.”
Passos não estava nesta estratégia a “contragosto”. Estava convencido. Desde logo por Gaspar, que ouvia e respeitava. Mas também pelo resto do seu núcleo restrito de conselheiros e governantes próximos, determinantes para a sua convicção nas virtudes do programa económico seguido. Carlos Moedas, António Borges, Braga de Macedo ajudaram Passos a sintonizar-se com as ideias de Gaspar. Mas o primeiro-ministro não era, como Sócrates, um político que aprende economia por necessidade. Economia, finanças, energia são os seus temas de eleição, aqueles que gosta de discutir, a matéria dos livros que lê nos tempos livres.
A queda de Relvas e a crise escondida
A coordenação política estava a cargo do seu mais velho aliado: Miguel Relvas. Uma tarefa destinada a correr mal, na opinião de João Gonçalves, ex-assessor político de Relvas: “Como é que se podia coordenar politicamente o Governo sem o primeiro-ministro? Passos delegou tarefas indelegáveis em Relvas.”
São deste período inicial do seu mandato as expressões que hoje o perseguem. Dos comentários ao primeiro chumbo do Tribunal Constitucional ao seu Orçamento, feitos à porta do teatro Politeama, onde foi assistir a um musical de Filipe La Féria, às célebres tiradas sobre “piegas”, “baratas tontas”, a “oportunidade” do desemprego e a necessidade de “empobrecer”.
Passos fala muito de improviso. Geralmente leva os discursos escritos — quase sempre pelo seu assessor político Miguel Morgado, professor de Ciência Política e de Filosofia na Universidade Católica, que lhe foi apresentado, por um amigo comum, Vasco Rato, em 2010. Porém, a certa altura, dobra o papel do discurso e guarda-o, prosseguindo a sua explicação.
O ano de 2013 seria muito diferente. Não porque as tensões com o CDS abrandassem — pelo contrário — mas porque uma série fortuita de acontecimentos permitiu a Passos recuperar a iniciativa. Abril é o mês em que tudo começa.
Miguel Relvas já não podia sair à rua sem que lhe cantassem a Grândola. Ele próprio tentou juntar-se à melodia, mas a voz desafinou-se e a letra não lhe saía. E o caso da licenciatura feita num ano crescia de dia para dia. Dentro do Governo, também. Apesar de garantir em público que esse era um “não assunto”, Passos não se opôs a uma investigação levada a cabo pelos serviços do Ministério da Educação, que haveria de concluir pela irregularidade da licenciatura em Ciência Política na Universidade Lusófona do seu amigo e aliado. Relvas chegou a ser aconselhado a deixar cair o título académico e a seguir em frente. Ele preferiu ignorar o conselho e pediu a Passos para sair do Governo, sem êxito. Amigos comuns garantem que Passos não podia deixar cair Relvas “a pedido” da comunicação social. O resultado, para João Gonçalves, é que Relvas foi sendo “queimado em lume brando”. Até ao fim.
Quando o ministro Adjunto toma conhecimento de que a investigação do Ministério da Educação conclui que a sua licenciatura é irregular, decide voltar a pedir a demissão. Acerta com Passos que o fará numa conferência de imprensa. No próprio dia, de manhã, o primeiro-ministro chama-o a São Bento para uma conversa. Relvas entra “bem-disposto” e sai “chateado”. Terá sido então que soube da entrevista de Nuno Crato, marcada para a noite, em que o seu colega de Governo comentaria o caso. A sua demissão parecia forçada por Crato e não, como garantira, “por vontade própria”.
Este é, ainda hoje, um assunto difícil para o primeiro-ministro, apesar de ter reatado a sua ligação com Relvas. Há quem sublinhe a “racionalidade” com que Passos encarou a situação. O seu aliado “prejudicava-o” e precisava de sair. Deixou o ónus para Nuno Crato. Seis meses depois, Passos estaria no casamento do seu velho amigo (com uma antiga colaboradora sua no Governo, Marta Sousa), no Convento do Beato, em Lisboa. E promoveria o seu regresso, como número um da lista para o conselho nacional do PSD, um ano depois.
No dia a seguir à demissão do ministro Adjunto, o Tribunal Constitucional volta a chumbar o Orçamento. “Esta decisão tem consequências muito sérias e graves para todo o país”, acusou Passos, que procurou encontrar um “inimigo externo” nos juízes do Palácio Ratton. Mas o que verdadeiramente o preocupa, neste momento, é a coesão do seu Governo.
“O Governo esteve para cair durante a 7ª avaliação da troika”, confirma um governante. A célebre “linha vermelha” de Paulo Portas, traçada a propósito de mais um imposto extraordinário que o Governo queria exigir aos pensionistas, levara a coligação a um impasse. Vítor Gaspar ficou enredado nas negociações com o FMI, a Comissão e o BCE. Faltava-lhe, nas suas palavras, “um mandato claro”. Fora “desautorizado”. Portas jogou (quase) tudo — faltou à tomada de posse de Miguel Poiares Maduro e Marques Guedes, os dois novos ministros que substituíram Relvas. Sugeriu demitir-se.
Passos deu-lhe ouvidos. A “TSU dos pensionistas”, o ponto mais sensível para o CDS, passou de obrigatória a eventual. E, em contra-relógio, Gaspar conseguiu concluir as negociações a poucas horas da cimeira do Ecofin. Cavaco Silva parecia até estar a ironizar com a situação: “Penso que foi uma inspiração da Nossa Senhora de Fátima. É o que a minha mulher diz...” Na mesma ocasião, o Presidente deixou à vista a crise no Governo pedindo para que se evitasse “exposições públicas de divergências que normalmente existem nas coligações”.
Passos já quase não falava com o seu parceiro de coligação. E Gaspar faz-lhe saber que acabou a sua paciência e está de saída. Esperaria o tempo suficiente pelo resultado da renegociação das maturidades dos empréstimos da troika, que ficou concluída a 24 de Junho.
Como federar a direita
É provável que o gesto se tenha repetido durante as conversas que teve com Portas: Passos, quando está irritado, penteia o cabelo, com a mão aberta, da testa para a nuca. É um dos poucos sinais que, garantem os seus colaboradores mais próximos, denuncia ansiedade. De resto, mesmo que esteja em completo desacordo, o primeiro-ministro pode até assentir com a cabeça. É um gesto, não é uma resposta. Mas poucos conhecem este código.
Portas soube da demissão de Gaspar numa conversa privada com Passos. Foi num sábado, dia 29 de Junho de 2013, e o líder do CDS estava de partida para o Bahrein. Portas sugeriu o nome de Paulo Macedo, o actual ministro da Saúde, para a vaga nas Finanças. O primeiro-ministro disse-lhe que pensara em Maria Luís Albuquerque, a secretária de Estado do Tesouro que lhe leccionara duas cadeiras no curso de Economia na Universidade Lusíada. A conversa parece ter gerado vários mal-entendidos. Portas ficou a achar que tudo estava em aberto e fez um pedido final. Como o CDS teria um congresso no fim-de-semana seguinte, pediu ao primeiro-ministro para só tornar pública a demissão após a reunião partidária.
Nem uma coisa nem outra. Enquanto Portas voava para o Bahrein, o próprio Gaspar informava Durão Barroso, Mario Draghi e o ministro alemão das Finanças de que estava de saída e quem iria ser a sua sucessora. Estava tudo acertado com Passos, que convidou Maria Luís no domingo, dia 30.
Na segunda-feira, 1 de Julho, quando aterrou em Lisboa, Portas tinha duas mensagens do primeiro-ministro. Numa delas informava-o de que a escolha da nova ministra já tinha sido comunicada ao Presidente da República.
O dia seria longo... Às 15h59, a TSF noticia a demissão de Gaspar. O ministro acordara com Passos que explicaria as suas razões numa carta pública. “O incumprimento dos limites originais do programa para o défice e a dívida, em 2012 e 2013, foi determinado por uma queda muito substancial da procura interna e por uma alteração na sua composição que provocaram uma forte quebra nas receitas tributárias. A repetição destes desvios minou a minha credibilidade enquanto ministro das Finanças.” Na carta, além de uma ambíguas considerações dirigidas a Passos sobre o “fardo da liderança”, Gaspar aponta o caminho do “investimento” e o combate ao desemprego como eixos de uma política nova para a qual lhe faltariam “credibilidade e confiança” para implementar.
O que Portas lê nessa carta fá-lo ficar ainda mais convicto das suas razões. Passou a noite numa reunião da cúpula do CDS, onde não deixou transparecer o mínimo sinal do que ia fazer. Na manhã seguinte, no Palácio das Necessidades, escreveu a sua carta de demissão, que enviou para Passos e Cavaco. Esteve em São Bento com Passos e voltou a pedir-lhe que reconsiderasse a escolha de Albuquerque.
A versão de Passos, relatada na sua biografia oficial, é um pouco diferente. “Fui almoçar e quando ia a caminho da comissão permanente [do PSD] recebi uma sms do Dr. Paulo Portas a dizer que tinha reflectido muito e que se ia demitir” (Somos o Que Escolhemos Ser, Sofia Aureliano, pág. 204). Passos refere que tentou falar com o líder do CDS, sem êxito. Portas emite um comunicado, à tarde, antes da tomada de posse, em Belém, da nova ministra. Acusa: “A forma como, reiteradamente, as decisões são tomadas no Governo torna, efectivamente, dispensável o meu contributo.”
Demissionário, e gerindo o seu papel, Portas falta à posse de Maria Luís: os restantes ministros do CDS também não comparecem. “Achei que ia ter o mandato mais curto da história”, ironiza a ministra, na biografia escrita por Sofia Aureliano, assessora do PSD. E é entre essa “tensa” cerimónia, a reunião do PSD e as 20h00, quando faz uma comunicação ao país, que Passos toma uma das decisões mais importantes da sua vida política.
Tomou a decisão sozinho, garantem os seus colaboradores. Ouviu algumas opiniões, como a dos seus assessores políticos. Mas não estava a reagir “a quente”. “O cenário já tinha sido alvo de reflexão anteriormente”, revela um dos seus amigos. “Ele está preparado para um conjunto de eventualidades, essa era uma delas”, adianta um colaborador.
A decisão parece simples, hoje. Passos rejeitou a demissão de Portas. “Não pedi a exoneração do ministro de Estado”, declarou, para logo a seguir acrescentar: “Não me demito. Não abandono o meu país.”
O resultado: Portas foi forçado a, nas suas próprias palavras, “revogar” a sua demissão “irrevogável”. Contudo, Passos percebeu que devia salvar a face do seu parceiro — dando-lhe mais peso no Governo, a ele e ao CDS.
Pelo meio, o Presidente da República ainda tentou forçar um entendimento com o PS, em troca da promessa de eleições antecipadas após a saída da troika. Passos, Portas e António José Seguro estavam de acordo numa coisa: o entendimento era impossível. Mas o líder do PSD já jogava noutro tabuleiro. Ao “renovar os votos” (expressão da ministra do CDS Assunção Cristas), a coligação deixava de ser apenas um acordo pontual de Governo. A prova disso é que, além de um acordo para uma candidatura conjunta às europeias, os líderes do PSD e do CDS começaram a dar forma à actual coligação Portugal à Frente (PaF) que agora concorre às legislativas.
“Ele conseguiu ganhar todas as guerras na sua área política, de Paulo Portas a Cavaco Silva”, destaca Pedro Marques Lopes, que foi um dos principais colaboradores de Passos Coelho na ascensão à liderança do PSD, desde 2008, tendo-se afastado, por divergência, durante a campanha para as legislativas de há quatro anos. “Ele sempre acreditou que iria federar a direita”, acrescenta um ex-assessor político do Governo, “tal como o Paulo Portas, também”.
Com a direita “unida”, nasce, então, a estratégia “pós-troika” do Governo: endurece a linguagem sobre os “credores” e a situação de “protectorado” do país. E tudo o que se seguiu foi pensado nessa lógica — dizer “adeus” à troika e construir um discurso político que se mantivesse intacto até às presentes eleições. No dia 4 de Maio de 2014, Passos falou da saída da troika como a continuação das conquistas do 25 de Abril e lançou um mote que será repetido até ao próximo dia 4 de Outubro: “Quero dizer-vos que esta não é a hora para voltar atrás. O que já conseguimos custou muito, e não seria aceitável deitar tudo a perder.”
As três fragilidades de Passos
Até à saída da troika, a 17 de Maio de 2014, houve muita informação contraditória. Foi Passos Coelho, a propósito de um chumbo do Tribunal Constitucional, que levantou a hipótese de um “programa cautelar” que assegurasse financiamento após o fim do memorando. O novo ministro da Economia, Pires de Lima, anunciou, em Outubro, que o objectivo do Governo era “começar a negociar um programa cautelar nos primeiros meses de 2014”. Em Novembro, Rui Machete, o novo ministro dos Negócios Estrangeiros, profetizando que um segundo resgate só seria evitável se as taxas de juro da dívida portuguesa estivessem abaixo dos 4,5%. Nada disto aconteceu. O Governo lançou o debate com este fogo-de-artifício em torno de um novo resgate, para depois fazer a festa e agora apanhar as canas.
Mas, para chegar aqui com hipóteses de ganhar as eleições, havia uma questão por resolver. Desde que chegou à liderança do PSD, em 2010, Pedro Passos Coelho recebe periodicamente estudos de opinião. É essa a especialidade de um dos seus colaboradores mais próximos, Alexandre Picoto, do centro de sondagens Pitagórica. Persistentemente, segundo várias fontes do PSD, e do Governo, com quem cruzámos esta informação, os focus-groups (grupos que a empresa reúne para avaliarem características, neste caso, do primeiro-ministro) revelam três “problemas”. Passos Coelho é visto, por esta amostra, como sendo alguém que não honrou as suas promessas eleitorais; as suas intervenções são demasiado “mecânicas”, pouco emotivas; e o seu discurso revela a ausência de preocupações sociais.
Para a primeira das avaliações — a discrepância entre o que disse, em 2011, e o que fez nos últimos quatro anos — Passos tem ensaiado uma resposta clássica: a “herança” recebida do Governo PS. Na opinião de Pedro Marques Lopes, “está por provar que isso faça perder muitos votos...”
É sobre as restantes que a meticulosa equipa de campanha, liderada por Marco António Costa, e que conta com o publicitário brasileiro André Gustavo como figura principal, tem tentado actuar. A biografia lançada este ano pela editora Alêtheia procura distanciar o primeiro-ministro da imagem de um “autómato”. Mas o exercício tem riscos. O da incoerência é um deles. No dia 25 Janeiro deste ano, Passos Coelho enviou um comunicado às redacções sobre a doença da sua mulher, Laura Ferreira. Nesse curto texto, o primeiro-ministro fazia um pedido: “Dado que se trata de um assunto privado, que apenas diz respeito à minha família, peço também que essa reserva de privacidade continue a ser respeitada.” O PÚBLICO respeitou o pedido e não publicou uma linha sobre o assunto. Mas, dois meses depois, as portas da casa do primeiro-ministro abriram-se para que a biografia abordasse, num capítulo, a doença de Laura, mostrando aquilo que descreve como “o Pedro que não se deixa conhecer”. O livro tem, além deste, um capítulo com o título “Massamá”. “A biografia não foi ideia dele”, esclarece um colaborador.
Quem ouve e quem deixou de ouvir
Há, contudo, um evidente contraste ente a “autenticidade” do político — descrita neste livro e retratada nas revistas da vida social, com as foto-reportagens das férias na Manta Rota, confortável na multidão — e a “verdade” questionada nos jornais e nos noticiários da sua mensagem política. Passos Coelho tem a imagem pública de “um de nós”, que mora nos subúrbios, gosta de regressar a casa depois do trabalho, tem hábitos simples, é frugal, usa expressões informais.
Essa proximidade serviu-lhe de defesa, num dos episódios que lhe podia ter custado o lugar. Segundo uma investigação do PÚBLICO, Passos Coelho devia, em 2015, 7430 euros à Segurança Social, referentes aos pagamentos mensais que lhe eram exigidos entre 1999, quando deixou de ser deputado, e 2004, quando passou a descontar como trabalhador dependente. Nesse hiato de cinco anos, Passos trabalhou, passando recibos verdes, para várias entidades, como a Tecnoforma, a LDN e a URBE — todas elas dirigidas por ex-colegas seus da JSD. Passos foi confrontado com esta situação em Janeiro e decidiu pagar uma parte deste valor, apesar de este se encontrar prescrito. Nessa altura, disse que já conhecia esta situação desde 2012. Por que nada fez entretanto? Passos respondeu que contava regularizar a situação, mas “apenas em momento posterior ao do exercício do actual mandato”.
Foi nas jornadas parlamentares do PSD, no Porto, que Passos usou, para encerrar a polémica, o argumento “cidadão comum”: “Tenho as minhas imperfeições. Quem quiser remexer na minha vida não precisa de se dar ao trabalho porque pode ter a certeza de que muitas vezes me atrasei em pagamentos. Mas, sempre que fui instado a pagar, paguei. Ninguém espere que eu seja um cidadão perfeito.”
Carlos Coelho, publicitário, avalia positivamente a “marca” do primeiro-ministro: “Ganhou credibilidade pela consistência do seu percurso. É uma marca de confiança”, assegura. Pegando no nome do candidato, o responsável da Ivity brinca com as suas iniciais: “É um caminhante, passo a passo. Tem muita consciência dos passos. Usaria quatro cês, de Coelho, para o definir: calma, contenção, cautela, calculismo. Conduzem a uma embalagem menos emocional, menos sensível, que é uma pele exterior, mas é consistente.”
Já Pedro Bidarra só vê “pose” e uma “organização impecável de propaganda” que faz com que sejam corrigidas “cada uma das fraquezas percebidas” em Passos Coelho. “Temos um primeiro-ministro gerido por peritos em propaganda, e muito bons...”, é o elogio dúbio que o publicitário deixa. Quanto às características de Passos, Bidarra opta por uma comparação: “É o primeiro-ministro mais parecido com Sócrates. São iguais. Olho para os olhos dele e sei que está a falar por um teleponto. É um locutor de continuidade, um pivot com olhos vazios. Vestiu o fato de primeiro-ministro sem nunca ter tido uma experiência de gestão pública ou uma vida profissional antes disto.”
“Passos Coelho precisou de ser criado como primeiro-ministro. Houve um relançamento da sua carreira”, avalia Pedro Marques Lopes. A máquina de “comunicação” do Governo é herdeira directa dessa estrutura montada por Relvas ainda na oposição. Uma base de bloggers activos, que dominou o debate político durante a conquista do PSD; um grupo de ex-jornalistas que reforçou a equipa de assessores no Governo; e o publicitário que Relvas conheceu no Recife, André Gustavo Vieira.
No Governo, o grupo que geria a “comunicação política” recebeu o nome “longa marcha”. Relvas era o Mao Tsetung, o líder. Não se tratava de um grupo de assessores de imprensa do Governo. Era antes um centro de coordenação que incluía os líderes parlamentares do PSD e CDS, Luís Montenegro e Nuno Magalhães, os assessores políticos do primeiro-ministro, Miguel Morgado e Bruno Maçães, o assessor político de Portas, Diogo Belford Henriques, e a equipa de Relvas, mais numerosa, João Gonçalves, Pedro Correia, Adelino Cunha e António Figueira. Numa das primeiras reuniões da “longa marcha”, foi aprovado o logótipo do Governo. Autor: a Arcos Comunicação, de André Gustavo Vieira.
Os assessores de Relvas funcionavam como “uma brigada de intervenção rápida”, preparando deputados antes de debates importantes, ministros que se deslocavam às comissões parlamentares e até simples comentadores do PSD e do CDS que participam nos frente-a-frente televisivos.
Mas, dessa equipa inicial que, em 2008, se juntou para fazer de Passos um candidato credível à liderança do partido e do Governo, já poucos restam. No activo, só Marco António Costa. Ângelo Correia, Miguel Relvas, Luís Filipe Menezes, Nogueira Leite, Leite de Campos, todos se afastaram. “Ninguém gosta de ter um cardeal Richilieu...”, brinca um ex-colaborador.
Como um “político profissional”, o primeiro-ministro gosta de “rodear-se de pessoas que a cada momento contribuam para o reforçar politicamente”, explica um membro do Governo. Hoje, Passos tem ao seu lado, em São Bento, o seu principal conselheiro, Miguel Morgado, e dois amigos que escuta, Eva Cabral e Rudolfo Rebelo. No Governo, os mais próximos são Maria Luís Albuquerque, Jorge Moreira da Silva e o secretário de Estado dos Transportes, Sérgio Monteiro.
Zangas recentes não se conhecem. Pacheco Pereira é a sua velha “Némesis”.
Com menos cabelo e quase tão magro como em 2011, Passos volta a tentar um mandato em São Bento. João Gonçalves, que escreveu o prefácio do primeiro programa do Governo, há quatro anos, nota-lhe uma “diferença de atitude”. “Está ensimesmado”, aponta. “Há uma diferença brutal entre o Passos de há quatro anos e o de hoje. Na altura ele fez muito bem em rejeitar o PEC IV, mas agora o programa da coligação é uma espécie de PEC V. Ironias do destino...”
Consiga ou não renovar o mandato, entre os seus colaboradores existe a convicção de que estes quatro anos o tornaram mais forte. “É seguramente um bom candidato presidencial da direita”, prevê um membro do Governo.
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