sexta-feira, 10 de abril de 2015

Sem desculpas


06.04.2015
INÊS CARDOSO
Há pouco mais de uma década, o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) era tratado com total reserva institucional. Entrava na Assembleia da República, como manda a lei, sem que os números transpirassem previamente para o exterior. Aos poucos, o cuidado posto à volta das estatísticas da criminalidade foi-se esboroando. Começaram por ser convocadas conferências de Imprensa a anunciar os números que mais interessavam ao Governo. Até que se chegou à situação caricata a que assistimos este ano: o anúncio público dos indicadores mais simpáticos para as autoridades foi feito antes de formalizada a entrega do documento aos deputados.
É curioso como todos os anos os ministros da tutela conseguem ver boas notícias no RASI. Quando os crimes denunciados aumentam, a justificação é a maior confiança dos cidadãos nas polícias e a diminuição das chamadas cifras negras. Quando, como este ano, a criminalidade violenta diminui, ignoram-se indicadores preocupantes - e o relatório está cheio deles. Exemplo gritante é a escalada de 48,1% nos crimes de corrupção.
A este indicador há que somar o crescente número de denúncias da Banca à Procuradoria-Geral da República, bem como o aumento de inquéritos por branqueamento de capitais. Temos traduzido em números o que até há pouco não passava de intuição: as trocas de favores, a promiscuidade entre responsáveis públicos e interesses privados são mesmo uma doença que é preciso atacar sem contemplações.
Os amantes das teorias justicialistas defendem que a abertura de inquéritos envolvendo um antigo primeiro-ministro, dirigentes de topo e banqueiros poderosos é a prova de que a justiça funciona. Trata-se, verdade seja dita, de encontrar algum consolo num cenário que é grave.
Voltemos às chamadas cifras negras. Não é vitória nenhuma desocultar o crime ou melhorar a investigação e, por essa via, encontrar motivos de regozijo em estatísticas negativas. Mais do que aumentar a eficácia da investigação em processos complexos de corrupção e criminalidade económica, é urgente evoluir para um sistema sociopolítico em que a via para cometer estes crimes seja cada vez mais estreita.
Do ponto de vista legal e da capacidade de minimizar os riscos, é preciso blindar o caminho. A par da lei, num percurso que é sempre mais lento, deseja-se uma mudança de cultura. Há crimes para os quais nunca haverá boas desculpas, por mais cuidado que seja o discurso oficial.

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