Maputo, Quarta-Feira, 2 de Janeiro de 2013:: Notícias
Admiramos aqueles que acreditaram que era possível àqueles, que outrora eram inimigos de sangue no campo da batalha, darem-se as mãos e fumarem juntos o cachimbo da paz. Prevaleceu a racionalidade do bom senso sobre a irracionalidade e os horrores da guerra fratricida. Quer dizer, estamos a celebrar a prevalência da razão sobre a des-razão política da barbárie da guerra entre filhos da mesma família moçambicana.
Prestamos homenagem às mãos do senhor Joaquim Alberto Chissano, então Presidente da República de Moçambique e do senhor Afonso Dhlakama, presidente da Renamo, que pegaram nas suas canetas PARA assinar o cessar-fogo e souberam manter-se consequentes com o compromisso assumido naquele dia 4 de Outubro de 1992, de juntos trabalharem para uma paz duradoira, para uma democracia multipartidária saudável e o bem-estar social do povo moçambicano.
Homenageamos os concidadãos das delegações das duas partes ex-beligerantes que durante cerca de dois anos, com paciência, patriotismo e fé, aceitaram, em princípio, desbarbarizar as suas mentes, caminhar juntos na construção da confiança e lançar as bases de convivência mútua. Homenageamos todos os mediadores nacionais e internacionais que ajudaram os ex-beligerantes a saberem aproximar-se e reconciliar-se como cidadãos da mesma pátria.
O mundo quase que parou para assistir à assinatura do Acordo Geral de Paz (AGP) e juntar-se à alegria dum povo sofrido. Em suma, homenageamos o povo moçambicano que, numa atitude de coragem e humanismo característico, soube reconciliar-se e reconciliar os seus filhos, ontem inimigos de sangue.
Reconciliação, naquele sentido do bispo Sengulane, de que o fim da guerra foi uma vitória sem vencedores nem vencidos, porque foi uma vitória de todos. É motivo bastante para evocar o salmista e cantarmos com ele o seguinte salmo: “Quero louvar-te, Senhor, com todo o coração, e narrar todas as tuas maravilhas. Em ti exultarei de alegria e cantarei salmos ao teu nome, ó Altíssimo” (Sal. 9, 1-2).
Assim, exultamos de alegria ao Senhor Deus por esse dom dos 20 anos de paz. Ora, os refugiados da guerra em países vizinhos regressaram. Os caminhos, ou seja, as estradas, sem perigo das minas, permitem as pessoas circularem e viajarem PARA onde querem. Os projectos individuais ou colectivos vão-se instalando. Quando se viaja pelo país, é emocionante ver multidões de crianças a dirigirem-se PARA a escola ou a regressarem com um andar bem compassado, tranquilas, a caminharem calmamente e sem medo. Os cidadãos de vinte anos de idade felizmente vivem em paz e não fazem ideia dos horrores da guerra. O desafio consiste em manter limpas as suas mentes.
Uma consciência moçambicana madura
Maputo, Quarta-Feira, 2 de Janeiro de 2013:: Notícias
NÃO obstante a euforia da paz, há várias interrogações no ar. Poderemos, a partir de Adorno, afirmar que as duas décadas de paz construíram uma consciência moçambicana madura, enraizada e cidadã, de que os motivos que haviam levado “ao horror” da guerra dos dezasseis anos não se justificam mais?
Acredito que só foi possível chegar aos 20 anos porque ninguém quer mais guerra em Moçambique. Podemos afirmar que durante os 20 anos prevaleceu a racionalidade da convivência na diferença das opções ideológicas e partidárias, uma vez adoptado o “pluralismo de expressão e organização políticas democráticas”, no espírito do Protocolo II do Acordo Geral de Paz? Tomara, como dizem os brasileiros! Podemos afirmar que o país está definitivamente estável?
No seu tempo, Montaigne (1533-1592) reduzia a estabilidade social a três tipos de convivência: i) a convivência com a “leitura”, a partir do pensamento de Cícero segundo o qual “viver é pensar” (quibus vivere est cogitare)[1], através dela se convive com os deuses e com a sabedoria; ii) a convivência com “os homens de bem e de talento”, de “juízo maduro e constante”[2]eiii) a terceira é a convivência com as “mulheres belas e honradas”, baseando-se na sua experiência de “convívio delicioso” com elas, naquilo que igualmente Cícero pode dizer:Num nos quoque óculos eruditos habemus ("Porquanto nós também temos olhos de conhecedor na matéria").[3] No meu entender, estes três tipos de convivência continuam de certa maneira válidos. iv) Mas os desafios do país ocorridos nesses últimos 20 anos mandam-me acrescentar o quarto tipo: o de convivência social com o Outro diferente política e ideologicamente. Este tipo de convivência inclui a tolerância, como condição de paz e postula o uso da razão e vontade livre dos homens, na linha de John Locke na sua Carta Sobre a Tolerância.[4] A convivência com diferente está implícita nas teses neoliberais da democracia e do respeito à diferença. O Acordo Geral de Paz de Roma incorporou em si essas teses. É assim que, no Protocolo I, os assinantes do AGP assumiram “o método de diálogo” e “de colaboração entre si” como “indispensável para se alcançar uma paz duradoira no país.” Trata-se de uma convivência que ultrapassa o método cartesiano de simplificação, de separação, de divisão e exclusão; ultrapassa a contradição contida na dialéctica hegeliana. Trata-se de uma convivência na qual a contraditoriedade faz parte do ser e de estar na sociedade humana e da sua dinâmica social. Pois, a democracia inclui em si a contraditoriedade, a qualidade de o Outro ser diferente, a possibilidade de convivência social e requer a lógica dialógica.
Insisto na tese de que se não deve avaliar os 20 anos de Paz apenas pela multiplicidade de partidos políticos; pelo número de infra-estruturas erguidas nesse período (que são importantes); nem nos comprazermos apenas com os indicadores económicos. Sócrates (469-399 a. C.) advertia a Cálicles que louvava os homens que haviam engrandecido Atenas, por terem enchido “a cidade de portos, arsenais, muralhas, tribunais e outras ninharias”, não se importando “com a sabedoria” nem “com a justiça.”[5] Sócrates não estava a desprezar as construções; queria, sim, salientar que tudo isso valia pouco se, entre os homens da cidade e nas instituições atenienses, não imperassem a sabedoria e a justiça. Repare-se que para Sócrates o carácter divino dos deuses ou a sua santidade (óσιος) residia necessariamente no facto de ser justo (δίκαιος). Séculos mais tarde, Fichte (1762-1814) irá retomar a tese de boa governação assente na justiça, quando clama que o que o povo quer do seu imperador não é a sua bondade, nem a felicidade, mas a justiça. Diz textualmente: “Não, príncipe, tu não és o nosso Deus. De Deus esperamos a felicidade; de ti, a protecção dos nossos direitos. Connosco não deves ser bondoso; deves ser justo.”[6]
[1] MONTAIGNE, 1998:. 210.
[2]Idem, p. 215.
[3]Idem, p. 216.
[4] LOCKE, 1999: 54-112.
[5]PLATÃO, 2000: 157.
[6] FICHTE, 1999: 85. Grifos do autor.
- Brazão Mazula- Comunicação apresentada nas Jornadas Científicas de Filosofia na Faculdade de Filosofia da Universidade Eduardo Mondlane, por ocasião da celebração do Dia Mundial de Filosofia, no Complexo Pedagógico do Campus Universitário, Maputo, no dia 16 de Novembro de 2012.
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