Os perigos duma ética bombástica
NO caso muito improvável de ter sido convidado à festa do 70.° aniversário natalício do Chefe do Estado, no dia 20 de Janeiro, muito provavelmente teria arranjado uma desculpa para não ir. Teria dito que a minha avó faleceu pela segunda vez e que tenho de ir à missa do oitavo dia. Ou que tinha escorregado na lama numa das ruas da Sommerschield, e torcido o tornozelo. Não teria ido porque, pessoalmente, tenho grandes problemas com o modelo de consumo dominante no nosso país.
Maputo, Quarta-Feira, 23 de Janeiro de 2013:: Notícias
Sei também que estaria a ser incoerente, pois a nível privado não tenho sido consequente na rejeição desse modelo de consumo. Só que havia de me incomodar bastante festejar em público num momento em que muita gente no país não tem onde cair morto, recentemente por causa das enxurradas. Na verdade, a não ser que a descoberta de recursos resolva rapidamente os problemas do povo, não haverá, nos próximos anos, muita razão para festejar de forma opulente seja o que for. Aliás, na verdade, nunca houve.
O meu sentido ético, isto é, aquilo que considero boa vida, compromete-me com padrões morais que me impediriam de festejar com o Chefe do Estado daquela maneira e nas circunstâncias do país. Mas aqui levanta-se uma questão muito importante que me não parece estar a ser considerada com a devida atenção por aqueles que condenam a forma como o Chefe do Estado festejou o seu aniversário. O meu sentido ético e a moral que dele derivo não tornam a festa do Presidente má ou errada. A minha indignação não constitui prova de que seja errado, e moralmente condenável, que o Presidente festeje os seus anos da maneira como o fez. A minha indignação revela apenas o que eu sou, ou que gostaria de ser.
O meu sentido ético, isto é, aquilo que considero boa vida, compromete-me com padrões morais que me impediriam de festejar com o Chefe do Estado daquela maneira e nas circunstâncias do país. Mas aqui levanta-se uma questão muito importante que me não parece estar a ser considerada com a devida atenção por aqueles que condenam a forma como o Chefe do Estado festejou o seu aniversário. O meu sentido ético e a moral que dele derivo não tornam a festa do Presidente má ou errada. A minha indignação não constitui prova de que seja errado, e moralmente condenável, que o Presidente festeje os seus anos da maneira como o fez. A minha indignação revela apenas o que eu sou, ou que gostaria de ser.
Não me dá o direito de me posicionar como apóstolo moral da sociedade. Há várias razões que explicam isto, mas a mais importante é que um posicionamento moral não é correcto e verdadeiro por definição. Arrancar dolorosamente as unhas duma criança – ou de alguém que anda a raptar familiares de comerciantes indianos – não é moralmente errado só porque isso não se faz. É moralmente errado por todo um conjunto de razões que preciso de apresentar e defender. Essas razões têm de formar um argumento convincente para outras pessoas. Nunca vi isso a ser feito no meu país.
E é aqui onde está o problema. Na nossa esfera pública posicionamo-nos ao sabor do que aparenta ser bom, sem nenhuma preocupação em pensar esse posicionamento até as suas consequências mais profundas. Ou melhor, derivamos a nossa moral do que queremos sentir (zanga ou alegria) porque dessa maneira satisfazemos os nossos preconceitos políticos. Só para sair um pouco do tema: se o Chefe do Estado tivesse decidido não festejar (ou se tivesse doado o valor dos presentes e da própria festa aos necessitados) tenho a certeza que alguns dos que criticam a festa teriam gritado “hipocrisia!”, “cinismo”, etc. Politicamente, e aos olhos de certas pessoas, ele será sempre amaldiçoado por fazer bem ou mal. E isto reforça a questão que estou a tentar levantar: em que condições a crítica à festa é moralmente justificada? Por enquanto, ela é moralmente justificada a partir duma moral privada, portanto, completamente inadequada para justificar alguns posicionamentos adoptados pelo Facebook fora.
Essa moral privada está na origem de algumas razões apresentadas para fundamentar a imoralidade da festa que, analisadas, se resumem a duas, essencialmente:
“O Chefe do Estado está a esbanjar os nossos impostos”;
“O Chefe do Estado é insensível ao sofrimento do povo”;
O problema para a moral privada é que nenhuma destas razões passaria o teste kantiano do imperativo categórico, isto é de agir para que dessa acção se possa extrair uma máxima universal que justifique a acção de toda a gente. Essas razões chumbariam porque os termos em que elas são colocadas permitem muitas leituras. Por exemplo, o que é “esbanjar” os nossos impostos? Se o Chefe do Estado disser que momentos como a festa do seu aniversário onde reúne várias personalidades importantes do país, incluindo a sua equipa do governo (reforçando o espírito de equipa), e de fora do país são um investimento importante dos recursos do país porque deles podem resultar acções, medidas e sei-lá-mais-o-quê importantes para o país, que diremos nós? “Está bem, mas não a festa do seu aniversário”? Mas por que não?
Não considero a justificação que acabei de dar agora convincente, mas isso não importa, tanto mais que não saberia dizer porquê ela não é convincente. Mais uma vez, apenas algo me diz que ela não é, só que isso não é suficiente. Igualmente, o que é insensibilidade em relação ao sofrimento do povo? Comer à vista de quem nada tem para comer? Se ele se escondesse para comer, estaria a ser sensível? Se deixasse de comer ou, melhor ainda, só comesse à média daquilo que os moçambicanos menos afortunados comem, estaria ele a ser sensível? Repito: Este argumento também não me parece convincente, mas lá está: não saberia dizer porquê, a não ser dizer que certos comportamentos ferem a minha ética individual. Mas o que fere o meu sentido ético não precisa necessariamente de ser mau.
Donde vem, então, a certeza de alguns de nós de que festejar pomposamente o 70.° aniversário é imoral? Suponho que venha duma ideia mal formada de “povo” (ou melhor ainda: “populações”) que muitos compatriotas bem intencionados (incluindo o governo) usam e abusam para justificar posicionamentos morais de validade muito duvidosa.
Segundo esta ideia, o nosso país consistiria numa oposição entre governantes insensíveis (e para os governantes, entre “apóstolos da desgraça”) e um povo sacrificado em cuja defesa e protecção acorrem os “críticos” (ou, na perspectiva do governo, os “verdadeiros patriotas”). Na mente de muitos de nós só essa ideia, e convicção, é suficiente para tornar correcto, e verdadeiro, tudo quanto nós fazemos. Se a minha preocupação é o povo, então, não há como eu possa estar enganado em relação a seja o que for que diga respeito a esse povo. Só que não existe, em minha opinião, sofrimento que confira razão a um posicionamento moral.
Na verdade, só fanáticos é que pensam assim, razão pela qual muitos deles acreditam na ideia de que os fins justificam os meios. Há, portanto, entre nós uma moral partisã que longe de revelar nobreza de sentimentos constitui um dos principais problemas políticos que temos no nosso país, nomeadamente a demagogia como princípio fundador da acção política.
Só para esticar uma metáfora surgida no calor da indignação durante a discussão da imoralidade da festa: suponhamos qualquer uma destas situações: a) dois homens estão a afogar-se no rio e um deles é Guebuza. Qual deles iríamos salvar? b) duas pessoas estão a afogar-se no rio, uma delas é um velhote de 90 anos, aliás uma velhota de 100, aliás um jovem engenheiro dos seus 26 anos, aliás o Presidente da Renamo, aliás uma criança de nove anos, aliás um membro da população afectado pelas enxurradas, aliás um amigo do Facebook que sempre põe “like” nos meus posts, aliás um machangana qualquer aí e a outra pessoa é Guebuza. Qual delas iríamos salvar? Se a nossa resposta a qualquer destas situações for: “todos menos Guebuza”, portanto, sem atenção às circunstâncias, aos nossos próprios meios e, acima de tudo, ao valor que atribuímos à vida humana, se a nossa resposta, dizia eu, for “todos menos Guebuza”, então a nossa indignação moral é hipócrita e cínica, instrumentaliza a ideia de “povo” para fins que em nobreza deixam tanto a desejar quanto a festa que criticamos. Mesmo se a nossa resposta for “só salvo aquele que faz bem ao povo”, estaremos mal em matéria de ética.
Estaremos mal porque essa ética é uma ética bombástica, ética para o inglês ver.
Pessoalmente, espero poder ter tido a coragem de recusar o convite para participar na festa se ele me tivesse sido endereçado. Mas, repito, as razões que me ajudariam a justificar a mim próprio essa recusa não tornam essa festa imoral do ponto de vista da moral pública. Também não vejo, no estágio de discussão crítica em que nos encontramos no país, nenhum quadro ético suficientemente elaborado que me permita condenar a festa. Vejo, isso sim, demagogia. E demagogia é a pior base para construção de quadros éticos.
Com este fecho “escovinha” espero ter ganho o direito de mostrar a minha coerência no próximo ano, dia 20 de Janeiro, quando for recompensado por mais um acto de lambe-botismo com um convite ...
- ELÍSIO MACAMO - Sociólogo (Colaboração) (*)
No comments:
Post a Comment