Por livre pensador moçambicano
Deus concedeu-nos
O dom de viver;
Compete-nos a nós
Viver bem.
Voltaire
Uma das coisas que mais marcou os adolescentes e teenagers que nasceram com o Moçambique independente, foi o efeito “bebé-proveta”da revolução. É que de um momento para o outro, ficámos como enfiados numa redoma de vidro, com todas trocas gasosas monitorizadas ao milímetro cúbico. Não tardou que nascesse em nós, uma falsa sensação que o mundo à nossa volta era somente aquele em vivíamos ou líamos na Prensa Latina ou Novosti. Isto porque começou a haver um código de literatura autorizada pelas estruturas de base do regime, que dependendo do nível intelectual, tinham autonomia para vedar a leitura em público de um “Dr. Jivago” ou mesmo de um “Tio Patinhas”. Nunca entendi no entanto, porque nunca embirraram com um Tintim ou Astérix...
E tudo isso se passava, enquanto as carências de alimentos e outros bens iam aumentando, pelo menos na capital do país, visto que ainda se podia viver bem alí para as bandas do Chókwé e Alto Changane. Pelo menos até 1981.
E era assim que, siderados, descobríamos como coisas nunca antes vistas, as frutas que se produziam na distante Moldávia, tão coloridas e apetitosas, que nos matavam a fome só de imaginá-las no estômago. Infelizmente, estas boas novas em papel vinham muitas vezes em russo ou espanhol, o que para uma turma de petizes, dava azo a toda imaginação revolucionária. E vai disto, estávamos nós a folhear uma relíquia socialista, quando demos de caras com um tipo de fruta nunca vista nos nossos quintais tropicais. Intrigados, olhámo-nos espantados, e pusémo-nos a disparar hipóteses para o ar, todos dizíamos saber o que era, mas no final, chegámos a conclusão que ninguém sabia mesmo nada. Até que um chico-perto lançou a sentença final:
- Chamam-se QUEBRAS, já vi isto nas traseiras da Loja dos Diplomatas!...
A Loja dos Diplomatas, convém explicar, era um estabelecimento comercial localizado na av. Mao-Tsé-Tung, nas instalações da actual Brithol Michcoma, de acesso restrito aos diplomatas e às estruturas do “Partido e Estado” que tinham divisas em casa, as quais se contavam pelos dedos, pois era expressamente proibido para qualquer comum mortal tê-las sem uma justificação sólida ao então SNASP ou Banco de Moçambique, que no fundo, eram a mesma coisa. Na Loja dos Diplomatas, podia-se comprar um pouco de tudo, ao estilo de uma Peter Justesen de vão de escada, pagando inclusivamente em rublos. Não obstante, poucos eram os socialistas que lá os iam gastar, uma vez que havia nas suas embaixadas, autênticos armazéns logísticos. Portanto, os principais clientes eram mesmo ocidentais ou nacionais “VIP”...
Voltando à descoberta da malta, é claro que ninguém acreditou no chico-esperto. E como todo continuador da revolução que se prezasse, exigimos que dialecticamente no-lo provasse, mostrando o local das QUEBRAS! E lá fomos nós. Chegados ao sítio fomos imediatamente teleguiados para as traseiras do prédio, onde com um ar triunfante ele gritou, apontando com o dedo em riste:
- Alí estão elas!
E de facto, numa amálgama de caixas de sapatos, cartão e outras relíquias descartadas pela Loja dos Diplomatas, estava uma caixa branca, com umas 24 cavidades, ainda semi-embalada, onde era notório que parte do conteúdo ainda estava bom para ser comido. E foi o que fizémos. Pela primeira vez na vida, aprendi a comer do lixo, o que se tornou num verdadeiro rito de iniciação ao socialismo. E ainda carreguei duas QUEBRAS no bolso, para mostrar à minha esforçada mãe que o filho também estava engajado na batalha revolucionária de contar com as próprias forças. Excusado será dizer, que a última QUEBRA ainda serviu de lanche no dia seguinte na escola, onde, esticando o meu peito de rôla, trinquei-a vagarosamente ante os olhares invejosos dos meus colegas, que perguntavam:
- O que é que estás a comer?!...
E eu respondia, com autoridade:
- QUEBRAS!...
Passados uns tempos, apareceram lá em casa, como gorjeta generosa de uma cooperante italiana, uns 50 francos franceses. Acto contínuo, pedi 20 francos à velhota e lá fui que nem um TGV contar à malta a minha grande ideia:
- Pessoal, gramei maningue do sabor das QUEBRAS, mas agora não quero comê-las do lixo, quero comprá-las lá naquela loja!
- Não vais conseguir entrar, aquilo é só para estruturas! Disse o chico-esperto...
- Mas eu posso falar com o meu tio...Revelou-nos o mais calado do grupo. Que acrescentou: - Ele é porteiro lá. Mas vamos ter de lhe pagar alguma coisa...
E assim, tive de deixar 5 francos para poder entrar à socapa na Loja dos Diplomatas. Estando lá dentro, pedi ao tio do meu amigo que me conduzisse “tout suite” à prateleira das QUEBRAS:
- QUEBRAS? Espantou-se ele. Que insistiu: - O que é isso?
- Uma fruta... Disse eu.
- Ah, se for isso, levo-te já à secção das frutas que é mesmo alí... Concluiu senhor de sí.
Nem havia andado 5 metros, e lá estavam elas em pacotes de 6, as minhas desejadas QUEBRAS!
- Aqui estão as QUEBRAS!... Aqui estão as QUEBRAS!... Disse eu triunfalmente. E o meu cicerone, com o ar mais aparvalhado do mundo, virou-se para mim:
- Óve lá, rapaz, isso são maçãs, não são QUEBRAS, e custam 50 francos o pacote! Vamos despacha-te, que o gerente ainda descobre que abandonei o posto...
- Mas eu só tenho 15 francos, senhor... Supliquei.
- Ponha-se a andar daqui, mazé, quer-me arranjar problemas? Fora já daqui! Rosnou, enquanto eu dava as vila-diogo em direcção à porta de saída...
E foi assim fiquei finalmente a saber o que era uma QUEBRA. Só voltei a revê-las depois do Acordo de Nkomati, quando o Pieter Botha decidiu oferecer toneladas de maçãs que foram distribuídas pelos estabelecimentos escolares. Seis por cada aluno. Ou seja, consegui, com muitos anos de atraso, ter finalmente o meu primeiro pacote de QUEBRAS. E de borla!!!
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