Fonte: Aqui
Nos últimos dias recebo várias mensagens com uma “carta aberta aos portugueses”, a qual vejo também reproduzida no facebook e na comunicação social. Ecoa o mal-estar com esta imigração e termina com um conselho explícito: que mantenhamos a bola baixa. Sucede-se a algumas outras discussões de facebook (vi algumas, contam-me outras) que realçam o desagrado com a situação actual. Umas explicitando o porquê desse desagrado (mais ligadas às questões da imigração ilegal), outras aludindo a uma generalizada má-vontade dos recém-chegados. E outras pura e simplesmente, considerando os portugueses aqui prejudiciais (“os portugueses são todos mal-educados” li recentemente, e engoli).
Esta carta chega-me, e em tons de concordância, por parte de amigos moçambicanos (alguns do grupo socio-etário da sua autora, até dela amigos pessoais), e por parte de amigos portugueses aqui há longo tempo residentes ou ex-residentes de longo prazo. E também por outros patrícios, entre o incomodados e o até receosos, sobre o que isto significa, o que pode induzir. Não se exagere, é um fenómeno normal, também no nosso país, e em tantos outros, a chegada de imigrantes provoca reacções de incómodo. E, em particular, quando estão inseridas num tipo de relacionamento histórico como este, ex-colonial.
A questão desta “carta aberta” ultrapassa o seu conteúdo ou mesmo o contexto sociológico muito particular da sua realização. E até mesmo o facto de eclodir na sequência da questão recentemente levantada dos vistos de entrada, cujo incremento de controlo advém da mais normal, e salutar, actividade administrativa. A questão central será até mais a da sua recepção e reprodução (partilha electrónica e conversacional).
Alguns pontos gostava de deixar, em corrida, pois por demais atarefado para textos sistematizados:
a. Em finais XX também houve afluxo de portugueses, normalmente quadros ligados a grandes ou médias empresas, ou pequenos e médios investidores. Uma menor dimensão quantitativa e com outras características sociológicas (para facilitar chamo-lhes “expatriados”, no sentido de melhor situação socioprofissional e com lugares de recuo). A reacção foi, e as pessoas esquecem-se, bastante mais adversa. Não só porque isto significava a chegada de capital (financeiro, fundamentalmente) português, e nisso parecendo assumir contornos do “neo-colonialismo”. Mas também porque as memórias do período colonial, da guerra de independência (e da civil) eram mais vivas. E ainda porque a “classe média” urbana tinha menores disponibilidades e sentia mais o peso competitivo dos quadros estrangeiros. E a questão de Cahora-Bassa não estava ainda terminada, pois continuo a pensar que o final desse processo significou um “degelo” nas relações entre países e, por arrasto, entre sociedades.
Quando falo em “reacção adversa” falo de discursos públicos, de personalidades conhecidas. E das “cartas de leitores” aos jornais (e quão célebre era a correspondência, vera e fictícia, no jornal “Notícias”). Alusões e acusações a desmandos e maus tratos (e a escândalos económicos) juntaram-se. Umas teriam fundamento (a mácula de uma grande aldrabice bancária foi terrível) outras nem tanto (a primeira vez que escrevi num jornal moçambicano foi para defender um amigo, administrador de uma empresa, que estava a ser, prolongada e injustamente, escalpado no jornal “Savana”. E ainda hoje me fica a gratidão ao Augusto Carvalho por intercedido no “Domingo” para que ali me publicassem o justíssimo desagravo).
Interessante do processo actual, bem menos intenso, é que se centra no mundo do “facebook”, evidenciando a força do novo espaço de discurso público em Moçambique. E fazendo notar que neste espaço, muito menos hierarquizado, as vozes descontentes que se expressam estão mais entre os cidadãos comuns do que nas personalidades da elite político-cultural. Haverá, ponho como hipótese, menos “política” neste expressar do desagrado.
b. A sociedade portuguesa indiscutiu o colonialismo. Ou seja, manteve a sua histórica inconsciência colonialista, muito baseada no velho mito do “modo especial de ser português”, aliás, do “modo especial de ser colono”. Isso implica a manutenção, fluída, de estruturas mentais sociais que condicionam categorizações e relacionamentos, as quais subsistem, como é óbvio, numa multiplicidade de conteúdos – entenda-se, “cada um como cada qual”, ou seja, as perspectivas individuais não são determinadas mas são, isso sim, influenciadas.
Esta “inconsciência”, este impensar do passado, não num sentido automortificador mas sim com uma veia prospectiva, continua a ser sublinhada por discursos dominantes. O actual pico da literatura “leve” que evoca a “boa África colonial” ajudará, a continuidade da ideia da “lusofonia” como espaço comum (e com a sua excrescência mal-cheirosa Acordo Ortográfico) é disso motor. A ideia de que as realidades históricas eram brutais desvanece-se. E quase inexiste a ideia que essa brutalidade era sistémica, como lhe chamou Sartre. Estas coisas estão escritas, e há muito. Pegue-se no “O Fascismo Nunca Existiu” (1976) de Eduardo Lourenço e vejam-se os luminosos textos dedicados ao (im)pensamento português sobre a relação colonial com África (escritos entre 1959 e 1976!!!) e está lá quase tudo, numa poderosa análise que as décadas seguintes só vieram sublinhar. Lourenço é muito falado, premiado, elogiado. Mas parece ser pouco (re)lido. A dimensão sistémica colonial da sociedade e economia portuguesa (e metropolitana) está explícita em textos pioneiríssimos de José Capela ainda do início de 1970s, e depois demonstrada no excelente “Fio da Meada” de Carlos Fortuna, um marco já nos anos 90s. Mas dá a sensação que não ultrapassam o meio académico que os respeita. Os extraordinários textos de Grabato Dias (António Quadros) são esquecidos, que de “leves” e “miríficos” nada têm.
Porquê este rodeio bibliográfico? Porque o desconhecimento das realidades históricas e a armadilha da “língua comum” produzem em Portugal uma visão de África(s) e categorizações menos actuais do que se pensa, portanto menos úteis, menos utilizáveis, menos propensas a um relacionamento desmaculado (o “imaculado” não é uma palavra … humana). E implica também muita surpresa, o deparar com ambientes menos propícios aos portugueses do que quantas vezes se pensa, se antevê. Ambientes diversos sociologicamente e diversos nacionalmente, pois não há uma una relação “portugueses-ex-colónias”. Mas é tudo, como não poderia deixar de ser, bem menos fraterno do que o nosso (português) senso comum produz.
E talvez este tipo de discursos posssa servir, empurrar, para que se pense melhor. Não “de bola baixa”. Mas de “bola alta”.
c. A polémica carta pega em excertos discursivos de portugueses sobre Moçambique (recolhidos aquando das polémicas no facebook sobre o fim da atribuição de vistos de entrada nas fronteiras). São entendidos como significativos, os discursos na internet baseando uma indução sobre os portugueses. Para mim este é também um ponto interessante, pelas novas dinâmicas do discurso público e das suas utilizações e interpretações, que demonstra. Pois ao longo dos anos acompanhei os discursos electrónicos sobre Moçambique, em particular no bloguismo. Com a fantástica colaboração do Paulo Querido, organizei o directório “ma-blog“, continuado depois com o Vitor Coelho da Silva no PNetMoçambique. Conheci centenas de blogs moçambicanos e sobre Moçambique. Muitos, muitos mesmo, escritos por portugueses. E vários destes por portugueses em Moçambique, voluntários, missionários, cooperantes, turistas, imigrantes, investigadores (como exemplo muito actual este Beijo-de-mulata, recentemente editado em livro em Portugal).
E o que me foi sempre notório, até como analisável, é o facto da (re)produção do encanto nesses blogs. Um encantamento, solidário com as pessoas, embrenhado na natureza, curioso com a história, preocupado com o real e o futuro. Quantas e quantas vezes ingénuo, namorando o exótico, até pa/maternalista, e eu face a isso resmungando. Mas um generalizado tom nos discursos electrónicos portugueses aquando em Moçambique. Oposto, até inverso, ao produzido em discussões de facebook que quase de certeza têm locutores sociologicamente distintos, e na sua esmagadora maioria bem longe do país, cruzando ainda as dores de um “luto colonial”, de teimosia imorredoira. E nisso muito mais ligados às concepções (históricas) que acima refiro.
Deste modo, também por tudo isto, assentar a tese da malevolência portuguesa (ou da significativa malevolência portuguesa, mesmo que não universal) no “picanço” a la carte desses exemplos mais ultramontanos (ainda que eles sejam, porque o são, recorrentes em alguns contextos electrónicos) me parece francamente letal. Para quem escreve. Não para quem ouve e lê.
d. Depois, e p0r fim, o óbvio e mais importante. Moçambique como “terra de oportunidades”? Como penúltimo passo deste generalizado “go south” africano? Como espaço de mineração e garimpo? Como país que vive uma continuada pacificação e um anunciado desenvolvimento? Como terra de gás e petróleo? Esta é a realidade das representações que o país tem, de momento, no contexto internacional. O problema são os imigrantes portugueses (com as suas características)? Ou é a capacidade do país conviver com o fluxo tão diversificado de imigrantes e de migrantes? O qual foi, inclusivamente, saudado há pouco por um membro do governo como dimensão do desenvolvimento e globalização sentidos no país.
A classe média maputense choca-se com a imigração portuguesa, legal e ilegal. E tem razões sociológicas para tal, deixemo-nos de exagerados prudidos. Expressa-as publicamente (jornais, redes sociais). Mas se cruzarmos a sociedade nas suas várias dimensões encontramos outras preocupações com tantos outros núcleos estrangeiros. No norte com os “tanzanianos”, nos pequenos comerciantes com os “nigerianos”, generalizadamente com os “indianos”, em tanta gente com os chineses (sem aspas, pois são realmente chineses contrariamente aos outros universos), nos quadros também com os “sul-africanos”, há alguns anos no centro do país com os “zimbabweanos”. Etc.
A questão é bem mais vasta. E apaixonante. É a de incrementar a capacidade administrativa para dirimir este desafio que a imagem de progresso do país provoca, o fluxo imigratório. E de fazer coexistir isso com desenvolvimento económico e com justiça social – sim, atentando que nestas mobilidades os défices de capital cultural ou económico dos cidadãos nacionais podem ser (podem ser, repito) prejudiciais para a justiça social. Ou seja, os desafios do país são enormes, não são os “200 portugueses por mês” (que Núria Negrão, autora da “carta aberta”, afirma) – por piores que estes sejam, que nós sejamos.
Por tudo isto, ver os meus amigos intelectuais, académicos, empresários ou funcionários burgueses, a maioria deles auto-situando-se “à esquerda” (no espectro político moçambicano esta polaridade inexiste, mas na linguagem autodefinidora funciona), até ecoadores do “indignismo” globalizado, a aplaudirem textos sociologicamente tão débeis, generalizações a roçarem o mero preconceito, e invectivas ao “respeitinho”, ao “bater a bola baixa”, que invocam o mais medonho do autoritarismo, é-me doloroso.
Até porque, e ainda que não esquecendo (daí a arenga histórica acima colocada) o particular contexto histórico desta imigração portuguesa, a construção de sociedades democráticas é também a defesa de que os imigrantes, não deixando de ser estrangeiros, “batam a bola alta”, sejam cidadãos. Metecos, como este blog se reclama. Desajustados, até mal-criados, se calhar. Mas não rasteirinhos.
Oxalá.
jpt
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