domingo, 16 de dezembro de 2012

REVISITANDO O CONCEITO DE DESENVOLVIMENTO NO PENSAMENTO DE AMILCAR CABRAL



Por: Carlos Cardoso *


Introdução





Prof. Dr. Carlos Cardoso
Uma das facetas menos exploradas do legado teórico de Amílcar Cabral prende-se com a sua contribuição ao conceito de desenvolvimento. Os estudiosos e biógrafos deste grande pensador africano (Mário de Andrade, 1980, Patrick Chabal, 1981, Ronald Chilcote, 1991) têm concentrado as suas análises essencialmente nas dimensões política, social e cultural da sua obra. Uma certa excepção a esse respeito constituem os trabalhos de Ronald Chilcote e Lars Rudebeck. Os dois trataram em vários trabalhos alguns aspectos relacionados com as questões de desenvolvimento, tal como Cabral as entendia

1. Por outro lado, embora não sendo uma « especialista » de Cabral, e num interessante trabalho sobre o desenvolvimento rural na Guiné-Bissau, Rosemary Galli analisou as ideias de Cabral relativas à transformação rural na Guiné-Bissau, realçando os aspectos atinentes à sua concepção de desenvolvimento2.


Para além dos escritos relacionados com aspectos políticos e culturais, Amílcar Cabral deixou fragmentos dispersos que testemunham a grande importância que atribuía às questões económicas e sociais, questões estas que estão no centro do conceito de desenvolvimento

3.


Para o líder africano, a libertação do jugo colonial constituía, certo, a prioridade número um para o movimento de libertação, mas à medida que a luta anti-colonial avançava e o partido se esforçava para construir uma vida « nova » nas « zonas libertadas », Cabral, como grande estratega e homem de visão que era, desenvolveu um conjunto de reflexões que consubstanciam o seu pensamento sobre o desenvolvimento social e económico dos povos africanos em geral e da Guiné e de Cabo Verde em particular.
Baseando-se numa análise dos seus principais escritos, a comunicação tenta identificar as contribuições deste líder susceptíveis de ser inseridas na dimensão económica e social do seu pensamento. Um enfoque particular é posto nas suas análises sobre

a estrutura social da Guiné e Cabo Verde, o papel do campesinato e da pequena burguesia, a resistência económica, bem como sobre os conceitos de libertação nacional, forças produtivas, imperialismo, neocolonialismo, modo de produção e Estado. Analisando este corpo de textos, a comunicação tenta descortinar em que medida ele é capaz de nos revelar o « nacionalismo desenvolvimentista » de Cabral, tal como Chilcote o caracterizou1. Num segundo momento, o trabalho destaca o lugar, a importância e os limites destas contribuições no quadro geral do pensamento contemporâneo. Por último, ele analisa em que medida estas contribuições são actuais e úteis ao equacionamento do desenvolvimento africano.


I. REVISITANDO O “NACIONALISMO DESENVOLVIMENTISTA” DE CABRAL




Um dos mais conceituados biógrafos de Amílcar Cabral, Ronald Chilcote, defende que, do ponto de vista teórico, o pensamento de Cabral se aproxima de um modelo de «nacionalismo desenvolvimentista» (em ingl. Developmental nationalism), um modelo que preconiza a resolução dos problemas de um determinado país através de transformações estruturais e de desenvolvimento, um processo que envolve alterações e modificações profundas das instituições políticas, económicas, sociais e culturais (Chilcote 1968). Este estudioso parte do princípio de que o nacionalismo deve ser analisado mais precisamente como « nacionalismo desenvolvimentista » isto é, aquele que proporciona às nações em vias de modernização uma crítica da velha ordem política, económica, social e cultural. Fazendo eco desta teoria, Chilcote defende que, para ser efectivo, este tipo de nacionalismo deve igualmente traçar as linhas gerais do substituto ideal da velha ordem, e que a emancipação dos povos da subordinação política, exploração económica e estratificação social deve trazer consigo uma nova ordem, não necessariamente através de meios violentos, mas através de mudanças a nível das forças institucionais que possibilitem mobilidade e um reconhecimento das demandas da sociedade com vista a transformações estruturais e ao desenvolvimento.
Analisando os vários textos de Cabral que abordam as questões de desenvolvimento e confrontando-os com o postulado principal do modelo em causa, chegamos à conclusão de que Chilcote não está longe da verdade. Com efeito, e como iremos demonstrar mais abaixo, a corrente de nacionalismo que advoga Cabral está muito próxima das considerações teóricas propostas pelo « nacionalismo desenvolvimentista ».
É certo que Amílcar Cabral não teve a preocupação de desenvolver uma teoria que pudesse servir de base à luta de libertação e, posteriormente à construção do Estado nacional. Mas as exigências dessa mesma luta fizeram dele um pensador de grande estatura, constituindo as suas análises e reflexões contribuições valiosas à teoria geral de libertação nacional, da construção do Estado e da nação em África. Não é fruto do acaso o facto de um dos textos que melhor permite captar o pensamento de Cabral sobre questões de desenvolvimento não ser um texto elaborado para fins de « consumo externo », muito menos destinado a uma grande audiência ou a um debate teórico. É na

análise de alguns tipos de resistência, um conjunto de textos escritos em 1969 e destinados aos militantes e quadros do PAIGC, que Cabral condensa o essencial do seu pensamento sobre os aspectos económicos da luta e através do qual nos lega fragmentos de grande valor para a compreensão da dimensão económica do seu pensamento.


Cabral parte do pressuposto de que a Guiné-Bissau é um país subdesenvolvido. No texto escrito em 1969 em que ele fala dos

princípios do partido, nomeadamente sobre a realidade económica, ele admite que a Guiné de então era uma terra atrasada economicamente, « sem desenvolvimento quase nenhum » isto é, um país sem indústria a sério, com uma agricultura atrasada e do tempo dos nossos avós, em que a exploração das riquezas nacionais depende essencialmente do trabalho dos homens e em que as infraestruturas portuárias eram precárias (Cabral, 1976 : 136).


Admitia ainda que o imperialismo, na sua condição de capital, não tinha cumprido sequer a missão histórica que lhe era reservada nos países atrasados isto é a aceleração do processo de desenvolvimento das forças produtivas e transformação, no sentido das complexidades, das características do modo de produção, aprofundamento da diferenciação das classes com o desenvolvimento da burguesia e intensificação da luta de classes ; aumento significativo do standard geral médio do nível de vida económica, social e cultural das populações (Cabral 1976 : 206).
Ao olhar para as condições económicas da Guiné e Cabo Verde, Cabral não ignorava as condições sociais, políticas e sociais que caracterizavam a vida das populações desses territórios. Antes pelo contrário. Ele via-as como fazendo parte do conjunto de uma situação que caracterizava o subdesenvolvimento e o atraso em que se encontravam mergulhados esses povos. Foi aliás o conjunto dessas situações que Cabral considerava degradantes para a pessoa humana, que serviram de base ao desencadeamento da luta e alimentaram o seu espírito revolucionário e o dos seus companheiros

4.


Para Cabral havia uma ligação estreita entre a luta pela independência, a construção da nação e o desenvolvimento. Um era inconcebível sem os outros. Para poder trilhar o caminho de desenvolvimento era necessário, antes de mais nada, libertar o território do jugo estrangeiro e criar uma nação. A conquista dos direitos cívicos e da soberania pressupunham a conquista da independência nacional. Os pressupostos que estão na base dessa assumpção prendem-se com a própria natureza do colonialismo que « é em primeiro lugar uma dominação económica » (Cabral 1979 : 34). « …o primeiro objectivo, no fundo, da nossa resistência e da nossa luta é libertar a nossa terra economicamente, embora antes tenhamos que passar pela libertação política » (Cabral 1979 : 34). O fim da dominação política é assim uma condição

sine qua non do desenvolvimento económico e do desenvolvimento tout court. « A nossa luta armada é uma forma de luta política, que procura libertar a nossa terra da exploração económica colonial e imperialista. Este é que é o nosso objectivo fundamental. Libertar as forças produtivas da nossa terra, da opressão, da dominação colonial imperialista » (Cabral 1979 :124)


Por outras palavras, Amílcar Cabral partia do princípio de que sob dominação política não é possível desenvolver a capacidade de trabalho, de produção, das riquezas naturais já reais ou em potência, bem como os meios de produção. Utilizando um conceito caro a Marx e aos marxistas, no fundo do que se tratava era de eliminar todas as barreiras que pudessem obstaculizar ou dificultar o livre desenvolvimento das forças produtivas.
Esta libertação devia passar por uma desconstrução ao mesmo tempo política e económica.
Do ponto de vista político, era necessário, entre outras tarefas, acabar com as concepções erradas que o colonialismo português tinha propalado ao longo dos tempos, nomeadamente sobre a missão civilizadora do colonialismo e sobre a incapacidade dos Africanos em construir uma vida mais condigna para si, para os seus filhos e para o seu povo. No aspecto económico impunha-se destruir a economia dos portugueses e construir a economia do novo Estado. Esta dialéctica de construção versus desconstrução tinha também uma carga simbólica, pois significava igualmente lutar contra as concepções erróneas sobre os objectivos da luta e o comportamento dos dirigentes.
De nada serve a libertação do território da dominação do colonialismo português se ela não se traduzisse numa melhoria das condições de vida das populações, desse mesmo território, principalmente das camadas menos favorecidas. Esta era a convicção de Cabral, antes de rematar que “a nossa luta na Guiné é para a nossa gente do mato, em primeiro lugar, gente que viveu durante séculos e séculos dentro duma tabanca, sem conhecer para além de 5 quilómetros da sua casa, gente que não sabe o que é uma escola, o que é um medicamento para curar as doenças que lhe enchem o corpo » (Cabral 1979 : 19/20).
O objectivo de desenvolvimento era expresso desta maneira por Cabral : « Nós estamos a lutar para o progresso da nossa terra, temos que fazer todos os sacrifícios para conseguirmos o progresso da nossa terra, na Guiné e em Cabo Verde. Temos que acabar com todas as injustiças, todas as misérias, todos os sofrimentos. Temos que garantir às crianças que nascem na nossa terra, hoje e amanhã, a certeza de que nenhum muro, nenhuma parede será posta diante delas. Elas têm que ir para a frente, conforme a sua capacidade, para darem o máximo, para fazerem o nosso povo e a nossa terra cada vez melhores, servindo não só os nossos interesses mas também os interesses da África, os interesses da humanidade inteira » (Cabral, 1976 : 157/158). Este postulado pode parecer abstracto, mas reflecte o pensamento profundo.
Cabral estava mais do que convencido de que era possível vencer a miséria, e de esta não era uma fatalidade, mas fruto de relações de dominação e de exploração impostas pelo colonialismo português. « …convencer cada um na sua consciência de que hoje há miséria, amanhã a miséria vai acabar … » (Cabral 1979 : 38). Mas também estava convencido de que a erradicação da miséria não podia resultar dum milagre ou de nenhuma força externa ou mesmo extra-terrestre, mas sim de um trabalho árduo, com muitos sacrifícios tanto dos dirigentes como do próprio povo. Tudo indica que Cabral tinha consciência da dimensão ideológica do atraso do povo guineense.
No diálogo que mantinha com os combatentes conseguiu surpreender o que os

experts hoje considerariam a dimensão subjectiva da pobreza isto é, ele considerava que aquele que pensa que se trabalhar bem pode vencer a miséria já é rico por vocação e por convicção, pois ao aspirar ao progresso tem meio caminho aberto para alcançar a felicidade (Cabral 1979). Num texto que não sugere de todo a abordagem da temática, Cabral aborda longamente os trabalhos que o Partido devia desenvolver para melhorar a vida das populações nas zonas libertadas5.


Passando em revista o trabalho dos comissários políticos, a organização das forças armadas e de segurança, o ensino (Escola Piloto), a agricultura, o comércio (Armazéns do Povo), a assistência sanitária, Cabral estabelece todo um programa de trabalho que abrange todos os sectores essências das populações.
O optimismo de Cabral relativamente às possibilidades de desenvolvimento resultava do seu profundo conhecimento das potencialidades do país e do continente. Num texto datado de 1960 e cujo título é « a verdade sobre as colónias de Portugal »

6, Cabral inventariou algumas das riquezas de que dispunha o continente, pondo a tónica no facto de os africanos terem sido impedidos de explorar e desfrutar destas riquezas por causa dos diversos tipos de dominação e exploração a que estiveram sujeitos ao longo da sua história. Neste mesmo texto Cabral enfatiza o facto de os africanos e suas respectivas organizações políticas quererem « que o povo beneficie de um verdadeiro desenvolvimento social, baseado num trabalho produtivo e no progresso económico…” (Cabral 1976: 65).


Cabral parecia ter consciência da necessidade de encarar o desenvolvimento da Guiné e Cabo Verde num quadro regional e continental. Num relatório apresentado na Conferência das Organizações nacionalistas da Guiné e das Ilhas de Cabo Verde, realizada em Dakar de 12 a 14 de Julho de 1961, ele dizia : « Somos pela unidade africana, à escala regional ou continental, como meio necessário para a construção do progresso dos povos Africanos, para garantir a segurança e a continuidade deste progresso” (Cabral 1976: 193).
Embora seja difícil aferir em que a medida o pensamento ortodoxo teria influenciado neste aspecto as ideias de Cabral, a verdade é que por essa altura (inícios dos anos 60), alguns escritores ortodoxos, ao lado de outros heterodoxos, tinham começado a apelar a maior integração económica entre grupos regionais de países em desenvolvimento no sentido de ultrapassar o constrangimento maior em relação à indústria de substituição da importação, que viram como procura insuficiente nos países individualmente para atingir um nível eficiente de resultados nas indústrias de substituição de importação

7. A grande aceitação da ideia do benefícios a retirar da integração regional estava reflectido na formação de grandes agrupamentos regionais como a Associação de Comércio Livre Latino Americana (1961), a Comunidade Oeste Africana (1967), a Associação das Nações do Sudeste Asiático (1968).


Muitos desses agrupamentos tinham encontrado muitas dificuldades na prática, tais como a falta de infraestruturas físicas e comerciais requeridas para o crescimento do comércio e a falha de fornecimento para responder ao mercado alargado até a tendência de alguns países beneficiarem mais do que outros da união. E como resultado disso, muitos desses arranjos falharam em satisfazer as expectativas originais. Não obstante isso, o ímpeto politico para integração regional tinha-se mantido forte. Cabral não ficou indiferente a estas ideias e correntes de pensamento
II.

O LUGAR, A IMPORTANCIA E OS LIMITES DA CONTRIBUIÇÃO DE CABRAL AO PENSAMENTO CONTEMPORANEO


Seria exagerado querer sugerir que Cabral tinha ideias claras e precisas sobre o que seria o desenvolvimento da Guiné-Bissau e Cabo Verde após a conquista da independência. Mas também não se pode negar o facto de ele ter deixado fragmentos, embora rudimentares, do que seria esse desenvolvimento no pós-independência, nomeadamente sobre o lugar da agricultura na economia independente, a relação desta com o artesanato e a pequena indústria, o papel económico do Estado, o lugar e o papel do plano enquanto instrumento de coordenação e de gestão dos recursos económicos, etc.
E se esses fragmentos se revelassem insuficientes para nos dar uma ideia da clarividência de Cabral, a prática do PAIGC nas chamadas zonas libertadas, sobretudo na fase mais avançada na fase avançada da luta poderia contribuir para elucidar algumas dessas problemáticas. As estruturas e orientações emanadas, por exemplo, do Congresso de Cassacá (1964) relativos aos aspectos políticos, económicos, culturais e militares testemunham o engajamento de Amílcar Cabral e das estruturas superiores do PAIGC em transformar de verdade as condições de vida das populações numa perspectiva de progresso. Neste contexto, um retorno à história não faria mal nenhum às sucessivas lideranças que o país conheceu, que foi incapaz de traçar e seguir uma estratégia de desenvolvimento claramente definida.
Os Comités de Tabanca-uma estrutura composta por cinco elementos entre os quais dois de sexo feminino-tinham funções claramente definidas em várias áreas de actividade económica, política e social

8. Segundo Chabal, estes comités fizeram muito para traduzir na prática o slogan do PAIGC segundo o qual libertação significa « poder nas mãos do povo » (Chabal 1981). Mas mais do que isso, o seu eficaz funcionamento nessa época fornece-nos elementos suficientes quanto à orientação e o discurso de desenvolvimento subjacentes à sua criação. Os observadores foram unânimes em considerar os Comités de Tabanca como órgãos efectivos de gestão e de modernização. Eles introduziram transformações importantes no modo de vida dos aldeias. Foi à volta de e sob orientação dos Comités de Tabanca que se estabeleceram as novas instituições económicas e sociais criadas pelo PAIGC (Chabal 1991).


Por volta dos anos 70 o PAIGC considerava que o desenvolvimento das estruturas administrativas, sociais, económicas, políticas e judiciais nas zonas libertadas (cerca de 70% do território e mais de 50% da população) justificava a sua reclamação de ser um partido- Estado

9. Entre 1971 e 1973 Cabral dedicou uma certa atenção à criação de novas estruturas políticas e à preparação para a independência (Chabal 1981). Isto requeria algum pensamento sobre o modelo de desenvolvimento a seguir. Talvez influenciado pela sua profissão de agrónomo e pelo profundo conhecimento que possuía da realidade agrícola, mas também pelas excelentes condições que a natureza oferecia, Cabral priorizou a agricultura face a todos os outros sectores de desenvolvimento económico da Guiné. Segundo a sua visão, era da agricultura que se devia partir para promover o desenvolvimento doutros sectores, uma agricultura baseada na diversificação da produção e no respeito escrupuloso do equilíbrio ecológico.


O pensamento e o discurso desenvolvimentistas desenvolvidos por Amílcar Cabral nos anos 60 e princípios de 70 convergiam em alguns pontos com o discurso em voga na altura, mas também divergia noutros. O discurso em voga que perdurou até aos finais dos anos 70 centrava-se na necessidade de construção de uma nação una dentro das fronteiras deixadas pelo colonialismo e cujo actor principal devia ser o Estado. Estávamos em plena « era desenvolvimentista » (Shivji 2005). Cabral estava igualmente convencido que após a conquista da independência competiria ao Estado herdado pela pequena burguesia liderar o processo de desenvolvimento ou, no mínimo, ser o seu actor principal. Por sua vez, competia ao Estado construir a nação no estrito respeito das fronteiras herdadas da colonização, tal como preconizava a Organização de Unidade Africana.
Os finais dos anos 60 e princípios de 70 foram também uma época marcada por aquilo que alguns autores consideram o pensamento ortodoxo sobre o desenvolvimento (Oman & Wignaraja 1991). Enquanto que o modelo de « economia dual » dos anos 50 e 60 sublinhava e coexistência, nos países em desenvolvimento, de um sector « moderno » capitalista e outro « tradicional » ou rural de subsistência, este apontava a acumulação de capital e a industrialização como o caminho conducente ao desenvolvimento, sendo o sector rural aquele que fornece o excedente de mão-de-obra e parte do capital necessário à industrialização. A acumulação de capital e a industrialização eram percebidos por muitos escritores e políticos como o veículo através do qual os países desenvolvidos conseguiram o crescimento e o desenvolvimento e por isso eram vistos por muitos como o caminho através do qual os países em desenvolvimento podiam alcançar o desenvolvimento.
Teria Cabral sido ultrapassado por ou teria ele ultrapassado as doutrinas dominantes ? É uma pergunta difícil de responder e para a qual não temos uma resposta lapidar. Contudo, importa lembrar que, em termos de princípio, Cabral sempre defendeu a necessidade de se respeitar escrupulosamente a realidade de cada sociedade.
Apenas nos finais dos anos 60 e particularmente durante os anos 70 se conseguiu ultrapassar este pensamento que punha uma pesada ênfase na industrialização, substituindo-o por um enfoque na agricultura e na necessidade de desenvolver o sector rural por direito próprio. Uma das causas dessa mudança de atitude foi a crescente desilusão com a estratégia e as políticas de industrialização centradas na substituição da importação. Muitos países atingiram o limite da fase « fácil » de substituição e crescimento estava a ser fortemente limitado pela ineficiência na indústria, dependência de importação de alimentos e défices na balança de pagamentos. Uma outra causa foi a chegada das técnicas de produção de « revolução verde » e a sua aparente , embora controversa aplicabilidade às condições dos pequenos produtores rurais.
Se por um lado Amílcar Cabral pode ser visto como criança dessa época, por outro lado é inquestionável que a defesa intransigente de certos princípios, permitiram-lhe escapar às ratoeiras do pensamento dominante. Podemos constatar este facto não só em relação ao debate sobre os aspectos do desenvolvimento, mas igualmente em relação a outros aspectos sobre os quais Cabral reflectiu e trouxe alguma contribuição teórica, nomeadamente sobre o papel da luta de classes na história, o papel do campesinato na revolução, a luta de classes, etc.
Comparando o desenvolvimento dos povos africanos com o de outros povos, Cabral admitia que era possível queimar etapas, que qualquer que fosse o nível actual das forças produtivas e da sua estrutura social, uma sociedade poderia avançar rapidamente, através de etapas definidas e adequadas às realidades concretas locais, para uma fase superior de existência.
Este posicionamento pode ser considerado crítico à teoria de desenvolvimento linear de Rostow (1960), segundo a qual as sociedades teriam que passar por cinco estados diferentes.
Segundo Cabral, tal desenvolvimento, para além das possibilidades concretas de desenvolver as suas forças produtivas, é essencialmente condicionado pela natureza do poder político que dirige essa sociedade, pelo tipo de Estado e pela natureza da classe ou classes dominantes no seio dessa sociedade.
O desenvolvimento nacional tornara-se a paixão dos políticos e a grande expectativa dos povos nessa época (Shivji 2005). Este discurso punha o acento tónico na construção da nação o que fazia todo sentido nesse então, considerando a desarticulação que a política colonial tinha provocado nas sociedades africanas, não só como consequência da partilha arbitrária dos territórios.
Mas tanto a construção da nação quanto a formação do Estado transformaram-se numa obsessão dos políticos. Em nome da construção da nação e da unidade nacional, negligenciaram-se, ignoraram-se ou sacrificaram-se as diferenças, as clivagens e as contradições que marcavam as sociedades pós-coloniais. Em nome do Estado e da necessidade de implantação da sua autoridade construíram-se regimes autoritários e ditatoriais, que pouco tinham que ver com os interesses e as aspirações dos povos, quer tivessem feito uma luta armada de libertação ou não.
A Guiné-Bissau pode ser encarada como um exemplo paradigmático desta deriva autoritária que caracterizou o regime político de muitos países africanos durante os anos 70 e 80. Os regimes políticos do pós-independência em pouco se distinguiam um do outro quanto à possibilidade de uma participação livre e responsável dos cidadãos.
No que concerne à Guiné-Bissau, quando nos finais dos anos 70 se começaram a sentir os primeiros desvios, muitos intelectuais acusaram o então regime de desvio das linhas orientadoras de Cabral. Porém, o que no início parecia uma simples questão de inflexão em relação às linhas norteadoras de Cabral tornou-se um problema estrutural da economia e da sociedade guineense pós-colonial. Salvo raras excepções, a desarticulação tornou-se a marca principal das formações sociais africanas pós-coloniais, em parte fruto duma herança colonial, em parte resultado de políticas erróneas delineadas e praticadas pelas autoridades políticas : incompatibilidade entre teoria e prática, desencontro entre a agricultura e a indústria, agravamento da clivagem campo cidade, exacerbação das diferenças étnicas e das desigualdades sociais.
Na Guiné-Bissau o governo sempre priorizou a agricultura no seu discurso, mas este discurso não foi correspondido por uma prática consequente. Não se conseguiu delinear uma política rural coerente. Havia antes uma proliferação de projectos de « desenvolvimento » rural. O governo encomendou uma série de estudos sociológicos, antropológicos e multidisciplinares nas áreas rurais, mas nenhum deles fez uma análise de classe do campesinato nessas regiões.
Mais do que um simples desvio dos ensinamentos de Cabral, as políticas erróneas reflectiram um problema de contradição de classe. Os interesses da pequena burguesia revelaram ser antagónicos aos interesses dos camponeses e das classes trabalhadoras.

10 Os que assumiram o poder do Estado pós-colonial não foram capazes de continuar a revolução, como preconiza o nacionalismo desenvolvimentista.


Segundo esta teoria, as transformações que devem ocorrer a nível das instituições herdadas da velha ordem (colonial) são acompanhadas por uma nova consciência entre os sectores da sociedade que são alienados do e opostos à ordem tradicional, sector este que é considerado mais « esclarecido » e que normalmente está imbuído da vontade de transformar a sociedade como um todo. Segundo ainda esta teoria, os líderes teriam a tarefa de mobilizar estes sectores emergentes para trabalhar juntos para os objectivos e fins nacionais e para escapar ao atraso tradicional.
Neste processo, os valores tradicionais linguísticos e culturais seriam afectados pela rápida e intensiva comunicação a nível nacional, enquanto permitem a assimilação de valores transnacionais ou modernos. As autoridades tradicionais seriam eclipsadas, enquanto que os símbolos nacionais seriam forjados. A migração das pessoas das áreas rurais para as áreas urbanas seria acompanhadas de uma mobilização social, que serviria de elemento galvanizador dos indivíduos e grupos e incutiria neles a consciência da necessidade de obedecer aos símbolos de identidade nacional. Neste processo as economias de troca substituiria a agricultura de subsistência; os mercados nacionais absorveriam os sistemas de mercado local. A mobilização da força de trabalho « hastens » a divisão social de trabalho necessária à acumulação de recusros económicos. A sociedade em modernização desenvolveria uma capacidade para redireccionar ou formar novas combinações de recursos económicos, sociais e humanos. Deste modo as sociedades aceitariam a modernização e adquiririam uma viabilidade política, um sentido de justiça social e uma orientação com vista à mudança e ao desenvolvimento político, económico social e cultural (Chilcote 1961).
Por seu turno, Cabral admitia que no momento em que a pequena burguesia africana assumisse o poder veríamos manifestar-se de novo as contradições internas da realidade económica e social. Mas em vez de admitir que essa contradição se resolveria pela via da confrontação de interesses, postula que a pequena burguesia cometeria um suicídio, e que a revolução se encarregaria de a eliminar do poder, submetendo-a ao controle dos operários e dos camponeses, pondo cobro ao seu regresso à etapa de burguesia propriamente dita (Cabral 1976).
Uma coisa são as teorias e os modelos e outra são as realidades. O contexto de emergências da teoria de nacionalismo, bem como o dos escritos de Chilcote e Cabral é o dos princípios dos anos 60. Os remarcáveis êxitos dos movimentos nacionalistas na Ásia era de memória fresca. Em África vivia-se a conjuntura das independências em que a vitória sobre as forças colonialistas dava lugar a todos os tipos de utopia social. Foi necessário decorrer apenas uma década após as primeiras independências para que os estudiosos se dessem conta do grau de desfasamento entre as teorias e a realidade.
Na Guiné-Bissau, por exemplo, não se concretizou o sonho do suicídio da pequena burguesia.
Mas também não se desenvolveu uma burguesia nacional. O fosso entre a cidade e o campo aumentou em vez de diminuir. A consciência nacional e o espírito patriótico foram sol de pouca dura. Tanto na Guiné-Bissau como em muitos outros países Africanos as ajudas e os empréstimos bilaterais, nos casos considerados « sucess stories » mais não fizeram do que empoderar uma classe de empresários ligados ao capital internacional, mas falharam na sua missão de desenvolver verdadeiramente o país e com ele uma burguesia verdadeiramente comprometida com as questões de desenvolvimento. O capital internacional também não foi capaz de desenvolver o neo-socialismo, que Cabral preconizava (Cabral 1976:106)
Apesar de o seu desejo para o socialismo ter sido largamente moral na inspiração, ele encontrou eco na sua crença marxista no que diz respeito ao desenvolvimento da sociedade e da humanidade para um futuro melhor. A liderança do pós-independência na Guiné-Bissau teve um namoro com o socialismo, embora nunca o tivesse declarado como ideologia do Estado.
Cabral postulou mudanças e desenvolvimento em termos de controlo das forças produtivas pelo Estado. Mas não parece ter problematizado o Estado como um terreno contestado de luta entre as diferentes classes, camadas ou facções da sociedade pelo seu controle. Ele admitiu que com a expulsão do colonialismo se regressaria à história e que as contradições se desenvolveriam de novo. Mas acreditou demasiado na potência revolucionária da pequena burguesia.
Cabral acreditou demasiado na força da liderança política. Partia do princípio de que vencendo as suas fraquezas, a vanguarda revolucionária poderia continuar fiel aos interesses das classes trabalhadoras. Durante a guerrilha e apesar da grande diversidade que caracterizava o movimento de libertação nacional Cabral e seus camaradas que constituíam a direcção da luta foram capazes de assegurar uma certa coesão do movimento e uma confluência de interesses dos que tinham aderido à luta, mas essa capacidade rapidamente se desvaneceu no pós-independência. A revolução e o socialismo eram para Cabral mais uma questão moral do que uma questão instrumentalmente política (Chabal. Numa clara inclinação para a concepção leninista, os atributos humanos e morais dos quadros do partido eram mais importantes do que a adesão a uma ideologia proletária.
Na sua análise do desenvolvimento rural Rosemari Galli admite que Cabral teria errado na sua apreciação da relação entre o Estado e o campesinato porque naquilo que ela considera uma análise demasiado simplificada da realidade Cabral teria identificado a principal contradição pós-independência como aquela que opõe os Fulas aos outros grupos étnicos. Segundo esta economista, a contradição principal em termos da sua transformação material seria aquela entre o Estado e o campesinato.
É uma crítica injusta, pois Cabral nunca disse que a contradição principal do pós independência seria aquela entre os chefes tribais fulas e os camponeses, mas creio que a crítica ao papel e lugar do Estado no processo de desenvolvimento continua justa se a aplicarmos à sobrevalorização que Cabral faz desse papel do Estado e da liderança política na promoção do desenvolvimento social e económico.




II. A ACTUALIDADE E A UTILIDADE DO PENSAMENTO DE CABRAL





Há sensivelmente dez anos atrás, por ocasião do vigésimo aniversário do assassinato de Amílcar Cabral, a prestigiada

Review of African Political Economy organizara um tributo à sua personalidade, tendo considerado o momento oportuno para revisitar as suas conquistas práticas e teóricas e interrogar sobre a relevância das mesmas em relação ao que acontece actualmente em África. A revista considerava que os seus escritos continuavam a ser importantes fontes de inspiração, na medida em que proporcionavam uma vasta gama de ideias e análises11.


Volvidos mais de três décadas após o seu assassinato e tendo-se alterado em consequência o contexto político, social e económico que viu nascer as suas ideias e reflexões, podemos perguntar que valor têm os escritos de Cabral hoje em dia para a Guiné-Bissau, a África e o mundo em geral? Que inspiração podem as ideias de Cabral trazer para um hipotético modelo social?
Dois dos seus respeitáveis biográfos (Rudebeck 1974, 1993; Chabal 1981) consideram que Amílcar Cabral teria evitado de abordar a questão da situação do pós-independência na Guiné-Bissau, nomeadamente a questão de como é que um país tão pequeno, pobre e economicamente subdesenvolvido seria capaz de gerir sozinho a tarefa de vencer o subdesenvolvimento, mesmo tendo tido êxito no estabelecimento de regimes revolucionários independentes. Rudebeck (1993) defende que nunca saberemos se se Cabral tivese sobrevivido teria tido tempo e força para desenvolver a sua análise. Mas se isso tivesse acontecido teria sido na área da economia política. Segundo este estudioso, na sua obra, tal como a conhecemos, há um vazio óbvio em relação à ligação entre a transformação da economia e a democratização das estruturas políticas.
Segundo Chabal (1981), uma das razões que levaram Cabral a adoptar esta posição de cepticismo quanto ao futuro prende-se com o facto de ele pensar que era desnecessário e inútil traçar um plano para o desenvolvimento futuro da Guiné-Bissau. Cabral rejeitava sistematicamente a ideia de que haveria “modelos” de desenvolvimento a seguir e que o socialismo não passava de um ideal para o qual era legítimo lutar, mas cujos contornos concretos seriam determinados pelos constrangimentos objectivos que se colocam a um país pequeno e subdesenvolvido como a Guiné-Bissau. E por isso cada sociedade devia encontrar o seu caminho próprio para a resolução dos principais problemas de desenvolvimento.
Estamos perante uma dimensão do pensamento de Cabral onde as opiniões divergem. A leitura das suas obras sugere-nos que não obstante o facto de ele ter sido contra a importação de modelos, Cabral preocupou-se o suficiente com o futuro da Guiné e Cabo Verde e, consequentemente com o modelo de sociedade que estes adoptariam após a conquista da independência, não obstante o facto de não ter conseguido desenvolver planos precisos e acabados para o seu desenvolvimento.
O facto de Cabral, já nos anos 60, falar de um “programa” para a resistência económica é revelador do carácter estratégico e prospectivo que queria conferir as suas reflexões. Este « programa » que, de acordo com as circunstâncias, se podia resumir na palavra de ordem « destruir a economia do inimigo e construir a nossa própria economia » consistia, entre outros aspectos, no desenvolvimento dos diversos sectores através da diversificação da produção (agricultura, artesanato e pequena indústria), no aumento da produção dos bens de primeira necessidade pelos próprios guerrilheiros e no combate à emigração da mão de obra.
Ele referia-se obviamente e em primeira linha aos tempos da luta armada, mas ao mesmo tempo advertia que « temos que adaptá-lo às nossas condições » à medida que a luta avança (Cabral 1979 : 41).
Cabral parecia já antever, vagamente, a necessidade de um plano para o desenvolvimento da
Guiné independente. Algumas das suas intervenções junto dos companheiros de luta deixam decifrar isso mesmo. Na sua conhecida « análise de alguns tipos de resistência », Cabral dizia : “E desde já temos que preparar os nossos planos para a economia da nossa terra na independência » (Cabral 1979 : 54). Para a elaboração desse plano um conhecimento minucioso da realidade económica da Guiné se fazia indispensável. Ele advogava que esse plano devia basear-se na ciência, uma referência recorrente nos seus discursos (Cabral 1976 : 191, 193, 204). Estava convencido de que era preciso « estabelecer uma política económica para a nossa terra » (Cabral 1979 :54), na medida em que « os problemas grandes estão é para frente » (Cabral 1979 :61). Sempre imbuído de um espírito realista, que aliás elegeu num dos princípios fundamentais da luta e da prática política do PAIGC, Cabral considerava que se devia « evitar desde já, como amanhã, toda a mania dos planos grandiosos, devemos fazer aquilo que é possível em cada fase da nossa vida… » (Cabral 1979 : 63), evitar extremismos, « desvio para esquerda e desvio para a direita » (Cabral 1979 : 69).
Cabral deixou alguns elementos desse plano, que consistiriam no seguinte: desenvolver e estabilizar o mercado nacional ; Desenvolver o máximo a troca com outros países ; Estabelecer todo um sistema de comércio exterior ; Estudar o problema dos preços nacionais.
Pode-se dizer que estes elementos, para além de serem susceptíveis de reflectir uma situação conjuntural, se limitam a apenas alguns aspectos do que se poderia considerar um Plano de Desenvolvimento. Mas não restam dúvidas de que as preocupações neles consubstanciadas nos projectam para lá dos limites exigidos pelas condições da luta armada.
Quando era interrogado sobre como é que um país pequeno e pobre como a Guiné –Bissau poderia sobreviver, Cabral respondia que se outros o conseguiram a Guiné-Bissau também poderia consegui-lo. O seu optimismo baseava-se na convicção de que após a independência o país poderia contar com uma liderança esclarecida, moralmente forte e engajada a promover o desenvolvimento. Apesar de ter a consciência de que a luta era essencialmente política, Cabral acreditava que as circunstâncias políticas, económicas e sociais em que se estrutura e desenvolve o movimento de libertação nacional, conferem aos problemas de natureza moral uma particular importância, devido principalmente às fraquezas próprias do movimento, ao oportunismo ou às possibilidades de oportunismo que o caracterizam, às pressões e manhas utilizadas pelo imperialismo, assim como à dificuldade, mesmo a impossibilidade de um controle do movimento e dos seus líderes pelas massas populares nacionalistas (Cabral 1976: 214). Se há um domínio em que as reflexões de Cabral se tornam pertinentes para actualidade este constitui um dos principais.
A hegemonia do pensamento neo-liberal e até ultra-liberal, em que a regulação social é deixada ao critério das forças do mercado, em que os valores morais são subalternizados a favor duma mentalidade centrada no lucro e no ganho fáceis, em que o ter se sobrepõe ao ser, em que os políticos africanos não olham aos meios para se enriquecerem, fazendo do continente africano um dos mais corruptos do globo e onde a problema da governação se coloca com maior acuidade; Um olhar às advertências de Cabral poderia contribuir para equacionar em moldes críticos a conduta das lideranças chamadas a liderar os processos de desenvolvimento em África.
A actualidade do pensamento de Cabral expressa-se na visão global que ele tinha de desenvolvimento, concebendo-o antes de mais nada como algo centrado no homem; Uma concepção em que o homem é o “valor supremo” do universo, devendo os benefícios de qualquer conquista tecnológica e científica servir, em primeira linha, os seus interesses.
Segundo esta concepção o homem seria igualmente o sujeito principal desse desenvolvimento, fazendo dele, sejam quais forem os factores materiais e sociais que condicionam a sua evolução “o elemento essencial e determinante” (Cabral 1976:215).
Tal como as concepções correntes de desenvolvimento, Cabral concebia desenvolvimento na sua multidimensão. Ele alertava que “devemos lembrar que não chega produzir, ter a barriga cheia, fazer boa política e fazer a guerra. Se o homem, a mulher, um ser humano faz tudo isso, sem ele próprio avançar como ser inteligente, como primeiro ser na natureza; sem ele próprio sentir que cada dia aumentam na sua cabeça os conhecimentos do meio, como do mundo em geral, quer dizer, sem ele avançar no plano cultural, tudo aquilo que faz produzir, fazer boa política, combater-não dá resultado nenhum (Cabral 1979: 71). Estamos em presença de uma problemática de extrema actualidade, cujo equacionamento as reflexões de Cabral são de uma utilidade inquestionável. O conceito de de desenvolvimento humano usado por várias agências internacionais, nomeadamente pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) inspira-se deste tipo de concepção, encarando desenvolvimento não só na sua dimensão material, mas igualmente na sua dimensão cultural e espiritual, incluindo o direito à educação, à participação cívica e à livre expressão da liberdade religiosa.
O tão propalado desenvolvimento equilibrado que dominou muitos dos manuais nos anos 80 é outro tópico que Cabral abordou, à sua maneira, em 1969, quando falava aos quadros do PAIGC. Ele defendia que não só era necessário comparar a cidade com o mato, como trabalhar no sentido de fazer progredir o campo cada dia mais, tanto no plano cultural como noutros planos. Este postulado continua a ser uma exigência actual para a maioria dos países em desenvolvimento e dos africanos em particular. Fiel ao modelo de desenvolvimento centrado no Estado-nação, Cabral não podia conceber que certas partes do território nacional fossem negligenciadas na promoção do desenvolvimento, sob pena de perigar o processo de construção nacional. « Nós estamos a libertar a nossa terra para avançarmos como outros povos no mundo, para o progresso, para uma vida de dignidade, para a unidade da nossa terra, nacionalmente, para ajudarmos a levantar uma Africa nova e melhor. Esse é que é o objectivo da nossa luta, no quadro do mundo, da humanidade, a qual pertencemos como seres humanos » (Cabral 1979 : 124)

12. Não obstante o facto de muitos dos projectos de desenvolvimento (construção de estradas, pontes e barragens, redes de telecomunicações) implicarem uma dimensão regional e transnacional, é inquestionável que a construção de unidades transnacionais e regionais se torna inviável sem a consolidação de unidades políticas nacionais.


Uma outra dimensão em relação à qual os intelectuais africanos são chamados e reflectir e a encontrar respostas prende-se com o desafio que a globalização das economias, mas também doutras esferas da sociedade, coloca. Qual é a margem de manobra que possuem os países de economia em desenvolvimento e os africanos em particular face à globalização? Terá a globalização tornado sem sentido qualquer distinção das sociedades em termos de modelo de desenvolvimento? Se sim, precisaremos doutros modelos que ultrapassem a velha dicotomia entre países de orientação socialista e outras de orientação capitalista?
Perante estas e outras perguntas da actualidade teremos que reconhecer os limites de pensadores africanos como Cabral, Mondlane, Nkrumah e outros, que viveram outra época.
Mas estamos em crer que o seu pensamento pode ser útil e actual quando alerta para a possibilidade de uma neocolonização dos territórios e para o facto de que “uma terra só é libertada de verdade se se conseguir tirar toda a dominação estrangeira sobre a economia do país, principalmente em relação às riquezas naturais”. (Cabral 1976: 2002). A distinção entre o socialismo e o capitalismo, que parecia ocupar sobremaneira à esquerda europeia, não fazia muito sentido para ele. Costumava dizer que o modelo de sociedade para a Guiné-Bissau podia ser encontrado nas zonas libertadas. Considerava possível receber ajuda dos países capitalistas, desde que esses não impusessem condições a essa ajuda. Para Cabral, o mais importante era libertar o povo e os seres humanos de todas as formas de opressão, uma opressão que na concepção de Cabral provavelmente não era encarada apenas como o resultado de relação sociais, mas como algo intrínseco à própria natureza humana, uma vez que num dos seus mais ambiciosos textos teóricos (A arma da teoria)

13, Cabral postula que « o homem sobreviverá às classes e continuará a produzir e a fazer história, porque não pode libertar-se do fardo das suas necessidades, das suas mãos e do seu cérebro, que estão na base do desenvolvimento das forças produtivas » (Cabral, 1976 : 204).


Referências bibliográficas





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1 Cf. Chilcote, R. (1968), « The political thought of Amílcar Cabral ”.

Journal of Modern African Studies, 6


(October).
2 Veja Galli, R. (1986), “Amílcar Cabral and Rural Transformatioon in Guine-Bissau: A Preliminary Critique”, Rural Africana, 25-26 (Spring-Fall 1986), pp. 55-73.
3 O conceito de desenvolvimento utilizado neste trabalho é o proposto recentemente pelo sistema das Nações Unidas para medir o índice de desenvolvimento humano dos países isto é, um conceito multidimensional, que toma em consideração não só o aspecto material, mas igualmente os relativos aos direitos cívicos e à liberdade religiosa.
4 Ver a esse propósito o texto escrito em 1960 intitulado “a verdade sobre as colónias africanas de Portugal”, A Arma da Teoria, Unidade e Luta, Lisboa, Seara Nova, 1976, pp. 57-66.
5 O texto chama-se « para a melhoria do nosso trabalho politico” e faz parte do conjunto de textos denominados “Os princípios do partido e a prática política”, in Arma da Teoria, Unidade e Luta I, Seara Nova, Lisboa, 1976.
6 Cf. A Arma da Teoria, Unidade e Luta I, p. 57.
7 Os detalhes do argumento económico por detrás do apelo dos escritores ortodoxos para integração regional entre países em desenvolvimento podem ser encontrados em P. Robson, The Economics of International Integration, London, 1972, e M. Carnoy, ed., Industrialisation in a Latin American Common Market, Brooking Institution, Washington, DC., 1972.
8 O Presidente do Comité de Tabanca era responsável pela produção agrícola, o Vice-Presidente pela segurança e defesa local, o terceiro membro pela saúde, educação e outros serviços sociais, o quarto pelo abastecimento e distribuição de alimentos para as Forças Armadas e o quinto pela recenseamento, registo civil e contabilidade (Rudebeck 1974).
9 Por partido_Estado o PAIGC entendia um partido que tem todos os atributos de um Estado governamental excepto reconhecimento internacional.
10 Sobre a divergência de interesses entre o Estado e o campesinato na Guiné-Bissau, ver Rosemary Galli (1986).
11 Trata-se do No. 58, de Novembro de 1993.
12 O sublinhado é nosso.
13 Discurso pronunciado, em nome dos povos e das organizações nacionalistas « das colónias portuguesas, na I Conferencia de solidariedade dos Povos da Africa e da América Latina (Havana, 3 a 14 de Janeiro de 1966), nasessão plenária de 6 de Janeiro.


Dados biográficos

*CARLOS EUGÉNIO MONTEIRO CARDOSO

INFORMAÇÕES PESSOAIS
Nacionalidade: guineense
Estado civil: casado
Local de nascimento: Fajonquito, Região de Bafatá, Rep. Guiné-Bissau
Residência: Dakar, Ouest Foire
HABILITAÇÕES LITERÁRIAS
-Doutoramento em Filosofia, pela Universidade Friedrich- Schiller, Jena, RFA. Tema: Religião e Reprodução Social. Estrutura, Função e Modo de Funcionamento da Religião Balanta.
-Mestrado em Antropologia Social e Etnologia, pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais-EHESS, Paris, França. Tema: Problemas fundiários na Guiné-Bissau. O caso dos Balantas.
-Mestrado em Filosofia, pela Universidade Friedrich Schiler, Jena, RFA. Tema: Mito, Religião e Pensamento Filosófico na Guiné-Bissau.
EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL
Investigador do INEP
Director Geral do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa
Director Geral da Educação de Base e Alfabetização
Consultor de várias instituições internacionais, nomeadamente da UNESCO, PNUD, Banco Mundial, USAID e ASDI, bem como do Instituto da Cooperação Portuguesa
Investigador do Centro de Estudos Africanos do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), Lisboa
Professor de Sociologia Política na Universidade Lusófona de Lisboa
Desde 2004, Administrador de Programas no Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em Ciências Sociais em África (CODESRIA), Dakar, Senegal
PUBLICAÇÕES
Autor e Co-autor de vários livros e artigos versando sobre temas relacionados com a Guiné-Bissau, África e com as disciplinas de História, Sociologia Política e Antropologia Social
FILIAÇÃO EM INSTITUIÇÕES ACADÉMICAS

-Membro do Comité Científico do CODESRIA (Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em Ciências Sociais em África)

-Membro da Associação Portuguesa de Sociologia
-Membro (direcção) da Associação de Ciências Sociais e Humanas em Língua Portuguesa

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