Por: Carlos
Cardoso *
Introdução
Uma das facetas menos exploradas do legado teórico de Amílcar
Cabral prende-se com a sua contribuição ao conceito de desenvolvimento. Os
estudiosos e biógrafos deste grande pensador africano (Mário de Andrade, 1980,
Patrick Chabal, 1981, Ronald Chilcote, 1991) têm concentrado as suas análises
essencialmente nas dimensões política, social e cultural da sua obra. Uma certa
excepção a esse respeito constituem os trabalhos de Ronald Chilcote e Lars
Rudebeck. Os dois trataram em vários trabalhos alguns aspectos relacionados com
as questões de desenvolvimento, tal como Cabral as entendia
1. Por outro lado, embora
não sendo uma « especialista » de Cabral, e num interessante trabalho sobre o
desenvolvimento rural na Guiné-Bissau, Rosemary Galli analisou as ideias de
Cabral relativas à transformação rural na Guiné-Bissau, realçando os aspectos
atinentes à sua concepção de desenvolvimento2.
Para além dos escritos relacionados com aspectos políticos e
culturais, Amílcar Cabral deixou fragmentos dispersos que testemunham a grande
importância que atribuía às questões económicas e sociais, questões estas que
estão no centro do conceito de desenvolvimento
3.
Para o líder africano, a libertação do jugo colonial constituía,
certo, a prioridade número um para o movimento de libertação, mas à medida que a
luta anti-colonial avançava e o partido se esforçava para construir uma vida «
nova » nas « zonas libertadas », Cabral, como grande estratega e homem de visão
que era, desenvolveu um conjunto de reflexões que consubstanciam o seu
pensamento sobre o desenvolvimento social e económico dos povos africanos em
geral e da Guiné e de Cabo Verde em particular.
Baseando-se numa análise dos seus principais escritos, a
comunicação tenta identificar as contribuições deste líder susceptíveis de ser
inseridas na dimensão económica e social do seu pensamento. Um enfoque
particular é posto nas suas análises sobre
a estrutura social da Guiné e Cabo Verde, o papel do
campesinato e da pequena burguesia, a
resistência económica, bem como sobre os conceitos de libertação nacional, forças produtivas, imperialismo,
neocolonialismo, modo de produção
e Estado. Analisando
este corpo de textos, a comunicação tenta descortinar em que medida ele é capaz
de nos revelar o « nacionalismo desenvolvimentista » de Cabral, tal como
Chilcote o caracterizou1. Num segundo momento, o trabalho destaca o lugar, a
importância e os limites destas contribuições no quadro geral do pensamento
contemporâneo. Por último, ele analisa em que medida estas contribuições são
actuais e úteis ao equacionamento do desenvolvimento africano.
I. REVISITANDO O “NACIONALISMO DESENVOLVIMENTISTA” DE
CABRAL
Um dos mais conceituados biógrafos de Amílcar Cabral, Ronald
Chilcote, defende que, do ponto de vista teórico, o pensamento de Cabral se
aproxima de um modelo de «nacionalismo desenvolvimentista» (em ingl.
Developmental nationalism), um modelo que preconiza a resolução dos problemas de
um determinado país através de transformações estruturais e de desenvolvimento,
um processo que envolve alterações e modificações profundas das instituições
políticas, económicas, sociais e culturais (Chilcote 1968). Este estudioso parte
do princípio de que o nacionalismo deve ser analisado mais precisamente como «
nacionalismo desenvolvimentista » isto é, aquele que proporciona às nações em
vias de modernização uma crítica da velha ordem política, económica, social e
cultural. Fazendo eco desta teoria, Chilcote defende que, para ser efectivo,
este tipo de nacionalismo deve igualmente traçar as linhas gerais do substituto
ideal da velha ordem, e que a emancipação dos povos da subordinação política,
exploração económica e estratificação social deve trazer consigo uma nova ordem,
não necessariamente através de meios violentos, mas através de mudanças a nível
das forças institucionais que possibilitem mobilidade e um reconhecimento das
demandas da sociedade com vista a transformações estruturais e ao
desenvolvimento.
Analisando os vários textos de Cabral que abordam as questões de
desenvolvimento e confrontando-os com o postulado principal do modelo em causa,
chegamos à conclusão de que Chilcote não está longe da verdade. Com efeito, e
como iremos demonstrar mais abaixo, a corrente de nacionalismo que advoga Cabral
está muito próxima das considerações teóricas propostas pelo « nacionalismo
desenvolvimentista ».
É certo que Amílcar Cabral não teve a preocupação de desenvolver
uma teoria que pudesse servir de base à luta de libertação e, posteriormente à
construção do Estado nacional. Mas as exigências dessa mesma luta fizeram dele
um pensador de grande estatura, constituindo as suas análises e reflexões
contribuições valiosas à teoria geral de libertação nacional, da construção do
Estado e da nação em África. Não é fruto do acaso o facto de um dos textos que
melhor permite captar o pensamento de Cabral sobre questões de desenvolvimento
não ser um texto elaborado para fins de « consumo externo », muito menos
destinado a uma grande audiência ou a um debate teórico. É na
análise de alguns tipos de
resistência, um conjunto de textos
escritos em 1969 e destinados aos militantes e quadros do PAIGC, que Cabral
condensa o essencial do seu pensamento sobre os aspectos económicos da luta e
através do qual nos lega fragmentos de grande valor para a compreensão da
dimensão económica do seu pensamento.
Cabral parte do pressuposto de que a Guiné-Bissau é um país
subdesenvolvido. No texto escrito em 1969 em que ele fala dos
princípios do partido, nomeadamente sobre a realidade económica, ele admite que a Guiné de então era uma terra atrasada
economicamente, « sem desenvolvimento quase nenhum » isto é, um país sem
indústria a sério, com uma agricultura atrasada e do tempo dos nossos avós, em
que a exploração das riquezas nacionais depende essencialmente do trabalho dos
homens e em que as infraestruturas portuárias eram precárias (Cabral, 1976 :
136).
Admitia ainda que o imperialismo, na sua condição de capital, não
tinha cumprido sequer a missão histórica que lhe era reservada nos países
atrasados isto é a aceleração do processo de desenvolvimento das forças
produtivas e transformação, no sentido das complexidades, das características do
modo de produção, aprofundamento da diferenciação das classes com o
desenvolvimento da burguesia e intensificação da luta de classes ; aumento
significativo do standard geral médio do nível de vida económica, social e
cultural das populações (Cabral 1976 : 206).
Ao olhar para as condições económicas da Guiné e Cabo Verde,
Cabral não ignorava as condições sociais, políticas e sociais que caracterizavam
a vida das populações desses territórios. Antes pelo contrário. Ele via-as como
fazendo parte do conjunto de uma situação que caracterizava o subdesenvolvimento
e o atraso em que se encontravam mergulhados esses povos. Foi aliás o conjunto
dessas situações que Cabral considerava degradantes para a pessoa humana, que
serviram de base ao desencadeamento da luta e alimentaram o seu espírito
revolucionário e o dos seus companheiros
4.
Para Cabral havia uma ligação estreita entre a luta pela
independência, a construção da nação e o desenvolvimento. Um era inconcebível
sem os outros. Para poder trilhar o caminho de desenvolvimento era necessário,
antes de mais nada, libertar o território do jugo estrangeiro e criar uma nação.
A conquista dos direitos cívicos e da soberania pressupunham a conquista da
independência nacional. Os pressupostos que estão na base dessa assumpção
prendem-se com a própria natureza do colonialismo que « é em primeiro lugar uma
dominação económica » (Cabral 1979 : 34). « …o primeiro objectivo, no fundo, da
nossa resistência e da nossa luta é libertar a nossa terra economicamente,
embora antes tenhamos que passar pela libertação política » (Cabral 1979 : 34).
O fim da dominação política é assim uma condição
sine qua non do
desenvolvimento económico e do desenvolvimento tout court. « A
nossa luta armada é uma forma de luta política, que procura libertar a nossa
terra da exploração económica colonial e imperialista. Este é que é o nosso
objectivo fundamental. Libertar as forças produtivas da nossa terra, da
opressão, da dominação colonial imperialista » (Cabral 1979 :124)
Por outras palavras, Amílcar Cabral partia do princípio de que sob
dominação política não é possível desenvolver a capacidade de trabalho, de
produção, das riquezas naturais já reais ou em potência, bem como os meios de
produção. Utilizando um conceito caro a Marx e aos marxistas, no fundo do que se
tratava era de eliminar todas as barreiras que pudessem obstaculizar ou
dificultar o livre desenvolvimento das forças produtivas.
Esta libertação devia passar por uma desconstrução ao mesmo tempo
política e económica.
Do ponto de vista político, era necessário, entre outras tarefas,
acabar com as concepções erradas que o colonialismo português tinha propalado ao
longo dos tempos, nomeadamente sobre a missão civilizadora do colonialismo e
sobre a incapacidade dos Africanos em construir uma vida mais condigna para si,
para os seus filhos e para o seu povo. No aspecto económico impunha-se destruir
a economia dos portugueses e construir a economia do novo Estado. Esta
dialéctica de construção versus desconstrução tinha também uma carga simbólica,
pois significava igualmente lutar contra as concepções erróneas sobre os
objectivos da luta e o comportamento dos dirigentes.
De nada serve a libertação do território da dominação do
colonialismo português se ela não se traduzisse numa melhoria das condições de
vida das populações, desse mesmo território, principalmente das camadas menos
favorecidas. Esta era a convicção de Cabral, antes de rematar que “a nossa luta
na Guiné é para a nossa gente do mato, em primeiro lugar, gente que viveu
durante séculos e séculos dentro duma tabanca, sem conhecer para além de 5
quilómetros da sua casa, gente que não sabe o que é uma escola, o que é um
medicamento para curar as doenças que lhe enchem o corpo » (Cabral 1979 :
19/20).
O objectivo de desenvolvimento era expresso desta maneira por
Cabral : « Nós estamos a lutar para o progresso da nossa terra, temos que fazer
todos os sacrifícios para conseguirmos o progresso da nossa terra, na Guiné e em
Cabo Verde. Temos que acabar com todas as injustiças, todas as misérias, todos
os sofrimentos. Temos que garantir às crianças que nascem na nossa terra, hoje e
amanhã, a certeza de que nenhum muro, nenhuma parede será posta diante delas.
Elas têm que ir para a frente, conforme a sua capacidade, para darem o máximo,
para fazerem o nosso povo e a nossa terra cada vez melhores, servindo não só os
nossos interesses mas também os interesses da África, os interesses da
humanidade inteira » (Cabral, 1976 : 157/158). Este postulado pode parecer
abstracto, mas reflecte o pensamento profundo.
Cabral estava mais do que convencido de que era possível vencer a
miséria, e de esta não era uma fatalidade, mas fruto de relações de dominação e
de exploração impostas pelo colonialismo português. « …convencer cada um na sua
consciência de que hoje há miséria, amanhã a miséria vai acabar … » (Cabral 1979
: 38). Mas também estava convencido de que a erradicação da miséria não podia
resultar dum milagre ou de nenhuma força externa ou mesmo extra-terrestre, mas
sim de um trabalho árduo, com muitos sacrifícios tanto dos dirigentes como do
próprio povo. Tudo indica que Cabral tinha consciência da dimensão ideológica do
atraso do povo guineense.
No diálogo que mantinha com os combatentes conseguiu surpreender o
que os
experts hoje considerariam a dimensão subjectiva da pobreza isto é, ele
considerava que aquele que pensa que se trabalhar bem pode vencer a miséria já é
rico por vocação e por convicção, pois ao aspirar ao progresso tem meio caminho
aberto para alcançar a felicidade (Cabral 1979). Num texto que não sugere de
todo a abordagem da temática, Cabral aborda longamente os trabalhos que o
Partido devia desenvolver para melhorar a vida das populações nas zonas
libertadas5.
Passando em revista o trabalho dos comissários políticos, a
organização das forças armadas e de segurança, o ensino (Escola Piloto), a
agricultura, o comércio (Armazéns do Povo), a assistência sanitária, Cabral
estabelece todo um programa de trabalho que abrange todos os sectores essências
das populações.
O optimismo de Cabral relativamente às possibilidades de
desenvolvimento resultava do seu profundo conhecimento das potencialidades do
país e do continente. Num texto datado de 1960 e cujo título é « a verdade sobre
as colónias de Portugal »
6, Cabral inventariou algumas das riquezas de que
dispunha o continente, pondo a tónica no facto de os africanos terem sido
impedidos de explorar e desfrutar destas riquezas por causa dos diversos tipos
de dominação e exploração a que estiveram sujeitos ao longo da sua história.
Neste mesmo texto Cabral enfatiza o facto de os africanos e suas respectivas
organizações políticas quererem « que o povo beneficie de um verdadeiro
desenvolvimento social, baseado num trabalho produtivo e no progresso
económico…” (Cabral 1976: 65).
Cabral parecia ter consciência da necessidade de encarar o
desenvolvimento da Guiné e Cabo Verde num quadro regional e continental. Num
relatório apresentado na Conferência das Organizações nacionalistas da Guiné e
das Ilhas de Cabo Verde, realizada em Dakar de 12 a 14 de Julho de 1961, ele
dizia : « Somos pela unidade africana, à escala regional ou continental, como
meio necessário para a construção do progresso dos povos Africanos, para
garantir a segurança e a continuidade deste progresso” (Cabral 1976: 193).
Embora seja difícil aferir em que a medida o pensamento ortodoxo
teria influenciado neste aspecto as ideias de Cabral, a verdade é que por essa
altura (inícios dos anos 60), alguns escritores ortodoxos, ao lado de outros
heterodoxos, tinham começado a apelar a maior integração económica entre grupos
regionais de países em desenvolvimento no sentido de ultrapassar o
constrangimento maior em relação à indústria de substituição da importação, que
viram como procura insuficiente nos países individualmente para atingir um nível
eficiente de resultados nas indústrias de substituição de importação
7. A grande
aceitação da ideia do benefícios a retirar da integração regional estava
reflectido na formação de grandes agrupamentos regionais como a Associação de
Comércio Livre Latino Americana (1961), a Comunidade Oeste Africana (1967), a
Associação das Nações do Sudeste Asiático (1968).
Muitos desses agrupamentos tinham encontrado muitas dificuldades
na prática, tais como a falta de infraestruturas físicas e comerciais requeridas
para o crescimento do comércio e a falha de fornecimento para responder ao
mercado alargado até a tendência de alguns países beneficiarem mais do que
outros da união. E como resultado disso, muitos desses arranjos falharam em
satisfazer as expectativas originais. Não obstante isso, o ímpeto politico para
integração regional tinha-se mantido forte. Cabral não ficou indiferente a estas
ideias e correntes de pensamento
II.
O LUGAR, A IMPORTANCIA E OS LIMITES DA
CONTRIBUIÇÃO DE CABRAL AO PENSAMENTO CONTEMPORANEO
Seria exagerado querer sugerir que Cabral tinha ideias claras e
precisas sobre o que seria o desenvolvimento da Guiné-Bissau e Cabo Verde após a
conquista da independência. Mas também não se pode negar o facto de ele ter
deixado fragmentos, embora rudimentares, do que seria esse desenvolvimento no
pós-independência, nomeadamente sobre o lugar da agricultura na economia
independente, a relação desta com o artesanato e a pequena indústria, o papel
económico do Estado, o lugar e o papel do plano enquanto instrumento de
coordenação e de gestão dos recursos económicos, etc.
E se esses fragmentos se revelassem insuficientes para nos dar uma
ideia da clarividência de Cabral, a prática do PAIGC nas chamadas zonas
libertadas, sobretudo na fase mais avançada na fase avançada da luta poderia
contribuir para elucidar algumas dessas problemáticas. As estruturas e
orientações emanadas, por exemplo, do Congresso de Cassacá (1964) relativos aos
aspectos políticos, económicos, culturais e militares testemunham o engajamento
de Amílcar Cabral e das estruturas superiores do PAIGC em transformar de verdade
as condições de vida das populações numa perspectiva de progresso. Neste
contexto, um retorno à história não faria mal nenhum às sucessivas lideranças
que o país conheceu, que foi incapaz de traçar e seguir uma estratégia de
desenvolvimento claramente definida.
Os Comités de Tabanca-uma estrutura composta por cinco elementos
entre os quais dois de sexo feminino-tinham funções claramente definidas em
várias áreas de actividade económica, política e social
8. Segundo Chabal, estes
comités fizeram muito para traduzir na prática o slogan do PAIGC
segundo o qual libertação significa « poder nas mãos do povo » (Chabal 1981).
Mas mais do que isso, o seu eficaz funcionamento nessa época fornece-nos
elementos suficientes quanto à orientação e o discurso de desenvolvimento
subjacentes à sua criação. Os observadores foram unânimes em considerar os
Comités de Tabanca como órgãos efectivos de gestão e de modernização. Eles
introduziram transformações importantes no modo de vida dos aldeias. Foi à volta
de e sob orientação dos Comités de Tabanca que se estabeleceram as novas
instituições económicas e sociais criadas pelo PAIGC (Chabal 1991).
Por volta dos anos 70 o PAIGC considerava que o desenvolvimento
das estruturas administrativas, sociais, económicas, políticas e judiciais nas
zonas libertadas (cerca de 70% do território e mais de 50% da população)
justificava a sua reclamação de ser um partido- Estado
9. Entre 1971 e 1973
Cabral dedicou uma certa atenção à criação de novas estruturas políticas e à
preparação para a independência (Chabal 1981). Isto requeria algum pensamento
sobre o modelo de desenvolvimento a seguir. Talvez influenciado pela sua
profissão de agrónomo e pelo profundo conhecimento que possuía da realidade
agrícola, mas também pelas excelentes condições que a natureza oferecia, Cabral
priorizou a agricultura face a todos os outros sectores de desenvolvimento
económico da Guiné. Segundo a sua visão, era da agricultura que se devia partir
para promover o desenvolvimento doutros sectores, uma agricultura baseada na
diversificação da produção e no respeito escrupuloso do equilíbrio
ecológico.
O pensamento e o discurso desenvolvimentistas desenvolvidos por
Amílcar Cabral nos anos 60 e princípios de 70 convergiam em alguns pontos com o
discurso em voga na altura, mas também divergia noutros. O discurso em voga que
perdurou até aos finais dos anos 70 centrava-se na necessidade de construção de
uma nação una dentro das fronteiras deixadas pelo colonialismo e cujo actor
principal devia ser o Estado. Estávamos em plena « era desenvolvimentista »
(Shivji 2005). Cabral estava igualmente convencido que após a conquista da
independência competiria ao Estado herdado pela pequena burguesia liderar o
processo de desenvolvimento ou, no mínimo, ser o seu actor principal. Por sua
vez, competia ao Estado construir a nação no estrito respeito das fronteiras
herdadas da colonização, tal como preconizava a Organização de Unidade
Africana.
Os finais dos anos 60 e princípios de 70 foram também uma época
marcada por aquilo que alguns autores consideram o pensamento ortodoxo sobre o
desenvolvimento (Oman & Wignaraja 1991). Enquanto que o modelo de « economia
dual » dos anos 50 e 60 sublinhava e coexistência, nos países em
desenvolvimento, de um sector « moderno » capitalista e outro « tradicional » ou
rural de subsistência, este apontava a acumulação de capital e a
industrialização como o caminho conducente ao desenvolvimento, sendo o sector
rural aquele que fornece o excedente de mão-de-obra e parte do capital
necessário à industrialização. A acumulação de capital e a industrialização eram
percebidos por muitos escritores e políticos como o veículo através do qual os
países desenvolvidos conseguiram o crescimento e o desenvolvimento e por isso
eram vistos por muitos como o caminho através do qual os países em
desenvolvimento podiam alcançar o desenvolvimento.
Teria Cabral sido ultrapassado por ou teria ele ultrapassado as
doutrinas dominantes ? É uma pergunta difícil de responder e para a qual não
temos uma resposta lapidar. Contudo, importa lembrar que, em termos de
princípio, Cabral sempre defendeu a necessidade de se respeitar escrupulosamente
a realidade de cada sociedade.
Apenas nos finais dos anos 60 e particularmente durante os anos 70
se conseguiu ultrapassar este pensamento que punha uma pesada ênfase na
industrialização, substituindo-o por um enfoque na agricultura e na necessidade
de desenvolver o sector rural por direito próprio. Uma das causas dessa mudança
de atitude foi a crescente desilusão com a estratégia e as políticas de
industrialização centradas na substituição da importação. Muitos países
atingiram o limite da fase « fácil » de substituição e crescimento estava a ser
fortemente limitado pela ineficiência na indústria, dependência de importação de
alimentos e défices na balança de pagamentos. Uma outra causa foi a chegada das
técnicas de produção de « revolução verde » e a sua aparente , embora
controversa aplicabilidade às condições dos pequenos produtores rurais.
Se por um lado Amílcar Cabral pode ser visto como criança dessa
época, por outro lado é inquestionável que a defesa intransigente de certos
princípios, permitiram-lhe escapar às ratoeiras do pensamento dominante. Podemos
constatar este facto não só em relação ao debate sobre os aspectos do
desenvolvimento, mas igualmente em relação a outros aspectos sobre os quais
Cabral reflectiu e trouxe alguma contribuição teórica, nomeadamente sobre o
papel da luta de classes na história, o papel do campesinato na revolução, a
luta de classes, etc.
Comparando o desenvolvimento dos povos africanos com o de outros
povos, Cabral admitia que era possível queimar etapas, que qualquer que fosse o
nível actual das forças produtivas e da sua estrutura social, uma sociedade
poderia avançar rapidamente, através de etapas definidas e adequadas às
realidades concretas locais, para uma fase superior de existência.
Este posicionamento pode ser considerado crítico à teoria de
desenvolvimento linear de Rostow (1960), segundo a qual as sociedades teriam que
passar por cinco estados diferentes.
Segundo Cabral, tal desenvolvimento, para além das possibilidades
concretas de desenvolver as suas forças produtivas, é essencialmente
condicionado pela natureza do poder político que dirige essa sociedade, pelo
tipo de Estado e pela natureza da classe ou classes dominantes no seio dessa
sociedade.
O desenvolvimento nacional tornara-se a paixão dos políticos e a
grande expectativa dos povos nessa época (Shivji 2005). Este discurso punha o
acento tónico na construção da nação o que fazia todo sentido nesse então,
considerando a desarticulação que a política colonial tinha provocado nas
sociedades africanas, não só como consequência da partilha arbitrária dos
territórios.
Mas tanto a construção da nação quanto a formação do Estado
transformaram-se numa obsessão dos políticos. Em nome da construção da nação e
da unidade nacional, negligenciaram-se, ignoraram-se ou sacrificaram-se as
diferenças, as clivagens e as contradições que marcavam as sociedades
pós-coloniais. Em nome do Estado e da necessidade de implantação da sua
autoridade construíram-se regimes autoritários e ditatoriais, que pouco tinham
que ver com os interesses e as aspirações dos povos, quer tivessem feito uma
luta armada de libertação ou não.
A Guiné-Bissau pode ser encarada como um exemplo paradigmático
desta deriva autoritária que caracterizou o regime político de muitos países
africanos durante os anos 70 e 80. Os regimes políticos do pós-independência em
pouco se distinguiam um do outro quanto à possibilidade de uma participação
livre e responsável dos cidadãos.
No que concerne à Guiné-Bissau, quando nos finais dos anos 70 se
começaram a sentir os primeiros desvios, muitos intelectuais acusaram o então
regime de desvio das linhas orientadoras de Cabral. Porém, o que no início
parecia uma simples questão de inflexão em relação às linhas norteadoras de
Cabral tornou-se um problema estrutural da economia e da sociedade guineense
pós-colonial. Salvo raras excepções, a desarticulação tornou-se a marca
principal das formações sociais africanas pós-coloniais, em parte fruto duma
herança colonial, em parte resultado de políticas erróneas delineadas e
praticadas pelas autoridades políticas : incompatibilidade entre teoria e
prática, desencontro entre a agricultura e a indústria, agravamento da clivagem
campo cidade, exacerbação das diferenças étnicas e das desigualdades
sociais.
Na Guiné-Bissau o governo sempre priorizou a agricultura no seu
discurso, mas este discurso não foi correspondido por uma prática consequente.
Não se conseguiu delinear uma política rural coerente. Havia antes uma
proliferação de projectos de « desenvolvimento » rural. O governo encomendou uma
série de estudos sociológicos, antropológicos e multidisciplinares nas áreas
rurais, mas nenhum deles fez uma análise de classe do campesinato nessas
regiões.
Mais do que um simples desvio dos ensinamentos de Cabral, as
políticas erróneas reflectiram um problema de contradição de classe. Os
interesses da pequena burguesia revelaram ser antagónicos aos interesses dos
camponeses e das classes trabalhadoras.
10
Os que assumiram o poder do Estado
pós-colonial não foram capazes de continuar a revolução, como preconiza o
nacionalismo desenvolvimentista.
Segundo esta teoria, as transformações que devem ocorrer a nível
das instituições herdadas da velha ordem (colonial) são acompanhadas por uma
nova consciência entre os sectores da sociedade que são alienados do e opostos à
ordem tradicional, sector este que é considerado mais « esclarecido » e que
normalmente está imbuído da vontade de transformar a sociedade como um todo.
Segundo ainda esta teoria, os líderes teriam a tarefa de mobilizar estes
sectores emergentes para trabalhar juntos para os objectivos e fins nacionais e
para escapar ao atraso tradicional.
Neste processo, os valores tradicionais linguísticos e culturais
seriam afectados pela rápida e intensiva comunicação a nível nacional, enquanto
permitem a assimilação de valores transnacionais ou modernos. As autoridades
tradicionais seriam eclipsadas, enquanto que os símbolos nacionais seriam
forjados. A migração das pessoas das áreas rurais para as áreas urbanas seria
acompanhadas de uma mobilização social, que serviria de elemento galvanizador
dos indivíduos e grupos e incutiria neles a consciência da necessidade de
obedecer aos símbolos de identidade nacional. Neste processo as economias de
troca substituiria a agricultura de subsistência; os mercados nacionais
absorveriam os sistemas de mercado local. A mobilização da força de trabalho «
hastens » a divisão social de trabalho necessária à acumulação de recusros
económicos. A sociedade em modernização desenvolveria uma capacidade para
redireccionar ou formar novas combinações de recursos económicos, sociais e
humanos. Deste modo as sociedades aceitariam a modernização e adquiririam uma
viabilidade política, um sentido de justiça social e uma orientação com vista à
mudança e ao desenvolvimento político, económico social e cultural (Chilcote
1961).
Por seu turno, Cabral admitia que no momento em que a pequena
burguesia africana assumisse o poder veríamos manifestar-se de novo as
contradições internas da realidade económica e social. Mas em vez de admitir que
essa contradição se resolveria pela via da confrontação de interesses, postula
que a pequena burguesia cometeria um suicídio, e que a revolução se encarregaria
de a eliminar do poder, submetendo-a ao controle dos operários e dos camponeses,
pondo cobro ao seu regresso à etapa de burguesia propriamente dita (Cabral
1976).
Uma coisa são as teorias e os modelos e outra são as realidades. O
contexto de emergências da teoria de nacionalismo, bem como o dos escritos de
Chilcote e Cabral é o dos princípios dos anos 60. Os remarcáveis êxitos dos
movimentos nacionalistas na Ásia era de memória fresca. Em África vivia-se a
conjuntura das independências em que a vitória sobre as forças colonialistas
dava lugar a todos os tipos de utopia social. Foi necessário decorrer apenas uma
década após as primeiras independências para que os estudiosos se dessem conta
do grau de desfasamento entre as teorias e a realidade.
Na Guiné-Bissau, por exemplo, não se concretizou o sonho do
suicídio da pequena burguesia.
Mas também não se desenvolveu uma burguesia nacional. O fosso
entre a cidade e o campo aumentou em vez de diminuir. A consciência nacional e o
espírito patriótico foram sol de pouca dura. Tanto na Guiné-Bissau como em
muitos outros países Africanos as ajudas e os empréstimos bilaterais, nos casos
considerados « sucess stories » mais não fizeram do que empoderar uma classe de
empresários ligados ao capital internacional, mas falharam na sua missão de
desenvolver verdadeiramente o país e com ele uma burguesia verdadeiramente
comprometida com as questões de desenvolvimento. O capital internacional também
não foi capaz de desenvolver o neo-socialismo, que Cabral preconizava (Cabral
1976:106)
Apesar de o seu desejo para o socialismo ter sido largamente moral
na inspiração, ele encontrou eco na sua crença marxista no que diz respeito ao
desenvolvimento da sociedade e da humanidade para um futuro melhor. A liderança
do pós-independência na Guiné-Bissau teve um namoro com o socialismo, embora
nunca o tivesse declarado como ideologia do Estado.
Cabral postulou mudanças e desenvolvimento em termos de controlo
das forças produtivas pelo Estado. Mas não parece ter problematizado o Estado
como um terreno contestado de luta entre as diferentes classes, camadas ou
facções da sociedade pelo seu controle. Ele admitiu que com a expulsão do
colonialismo se regressaria à história e que as contradições se desenvolveriam
de novo. Mas acreditou demasiado na potência revolucionária da pequena
burguesia.
Cabral acreditou demasiado na força da liderança política. Partia
do princípio de que vencendo as suas fraquezas, a vanguarda revolucionária
poderia continuar fiel aos interesses das classes trabalhadoras. Durante a
guerrilha e apesar da grande diversidade que caracterizava o movimento de
libertação nacional Cabral e seus camaradas que constituíam a direcção da luta
foram capazes de assegurar uma certa coesão do movimento e uma confluência de
interesses dos que tinham aderido à luta, mas essa capacidade rapidamente se
desvaneceu no pós-independência. A revolução e o socialismo eram para Cabral
mais uma questão moral do que uma questão instrumentalmente política (Chabal.
Numa clara inclinação para a concepção leninista, os atributos humanos e morais
dos quadros do partido eram mais importantes do que a adesão a uma ideologia
proletária.
Na sua análise do desenvolvimento rural Rosemari Galli admite que
Cabral teria errado na sua apreciação da relação entre o Estado e o campesinato
porque naquilo que ela considera uma análise demasiado simplificada da realidade
Cabral teria identificado a principal contradição pós-independência como aquela
que opõe os Fulas aos outros grupos étnicos. Segundo esta economista, a
contradição principal em termos da sua transformação material seria aquela entre
o Estado e o campesinato.
É uma crítica injusta, pois Cabral nunca disse que a contradição
principal do pós independência seria aquela entre os chefes tribais fulas e os
camponeses, mas creio que a crítica ao papel e lugar do Estado no processo de
desenvolvimento continua justa se a aplicarmos à sobrevalorização que Cabral faz
desse papel do Estado e da liderança política na promoção do desenvolvimento
social e económico.
II. A ACTUALIDADE E A UTILIDADE DO PENSAMENTO DE
CABRAL
Há sensivelmente dez anos atrás, por ocasião do vigésimo
aniversário do assassinato de Amílcar Cabral, a prestigiada
Review of African Political Economy organizara um tributo à sua personalidade, tendo considerado o
momento oportuno para revisitar as suas conquistas práticas e teóricas e
interrogar sobre a relevância das mesmas em relação ao que acontece actualmente
em África. A revista considerava que os seus escritos continuavam a ser
importantes fontes de inspiração, na medida em que proporcionavam uma vasta gama
de ideias e análises11.
Volvidos mais de três décadas após o seu assassinato e tendo-se
alterado em consequência o contexto político, social e económico que viu nascer
as suas ideias e reflexões, podemos perguntar que valor têm os escritos de
Cabral hoje em dia para a Guiné-Bissau, a África e o mundo em geral? Que
inspiração podem as ideias de Cabral trazer para um hipotético modelo
social?
Dois dos seus respeitáveis biográfos (Rudebeck 1974, 1993; Chabal
1981) consideram que Amílcar Cabral teria evitado de abordar a questão da
situação do pós-independência na Guiné-Bissau, nomeadamente a questão de como é
que um país tão pequeno, pobre e economicamente subdesenvolvido seria capaz de
gerir sozinho a tarefa de vencer o subdesenvolvimento, mesmo tendo tido êxito no
estabelecimento de regimes revolucionários independentes. Rudebeck (1993)
defende que nunca saberemos se se Cabral tivese sobrevivido teria tido tempo e
força para desenvolver a sua análise. Mas se isso tivesse acontecido teria sido
na área da economia política. Segundo este estudioso, na sua obra, tal como a
conhecemos, há um vazio óbvio em relação à ligação entre a transformação da
economia e a democratização das estruturas políticas.
Segundo Chabal (1981), uma das razões que levaram Cabral a adoptar
esta posição de cepticismo quanto ao futuro prende-se com o facto de ele pensar
que era desnecessário e inútil traçar um plano para o desenvolvimento futuro da
Guiné-Bissau. Cabral rejeitava sistematicamente a ideia de que haveria “modelos”
de desenvolvimento a seguir e que o socialismo não passava de um ideal para o
qual era legítimo lutar, mas cujos contornos concretos seriam determinados pelos
constrangimentos objectivos que se colocam a um país pequeno e subdesenvolvido
como a Guiné-Bissau. E por isso cada sociedade devia encontrar o seu caminho
próprio para a resolução dos principais problemas de desenvolvimento.
Estamos perante uma dimensão do pensamento de Cabral onde as
opiniões divergem. A leitura das suas obras sugere-nos que não obstante o facto
de ele ter sido contra a importação de modelos, Cabral preocupou-se o suficiente
com o futuro da Guiné e Cabo Verde e, consequentemente com o modelo de sociedade
que estes adoptariam após a conquista da independência, não obstante o facto de
não ter conseguido desenvolver planos precisos e acabados para o seu
desenvolvimento.
O facto de Cabral, já nos anos 60, falar de um “programa” para a
resistência económica é revelador do carácter estratégico e prospectivo que
queria conferir as suas reflexões. Este « programa » que, de acordo com as
circunstâncias, se podia resumir na palavra de ordem « destruir a economia do
inimigo e construir a nossa própria economia » consistia, entre outros aspectos,
no desenvolvimento dos diversos sectores através da diversificação da produção
(agricultura, artesanato e pequena indústria), no aumento da produção dos bens
de primeira necessidade pelos próprios guerrilheiros e no combate à emigração da
mão de obra.
Ele referia-se obviamente e em primeira linha aos tempos da luta
armada, mas ao mesmo tempo advertia que « temos que adaptá-lo às nossas
condições » à medida que a luta avança (Cabral 1979 : 41).
Cabral parecia já antever, vagamente, a necessidade de um plano
para o desenvolvimento da
Guiné independente. Algumas das suas intervenções junto dos
companheiros de luta deixam decifrar isso mesmo. Na sua conhecida « análise de
alguns tipos de resistência », Cabral dizia : “E desde já temos que preparar os
nossos planos para a economia da nossa terra na independência » (Cabral 1979 :
54). Para a elaboração desse plano um conhecimento minucioso da realidade
económica da Guiné se fazia indispensável. Ele advogava que esse plano devia
basear-se na ciência, uma referência recorrente nos seus discursos (Cabral 1976
: 191, 193, 204). Estava convencido de que era preciso « estabelecer uma
política económica para a nossa terra » (Cabral 1979 :54), na medida em que « os
problemas grandes estão é para frente » (Cabral 1979 :61). Sempre imbuído de um
espírito realista, que aliás elegeu num dos princípios fundamentais da luta e da
prática política do PAIGC, Cabral considerava que se devia « evitar desde já,
como amanhã, toda a mania dos planos grandiosos, devemos fazer aquilo que é
possível em cada fase da nossa vida… » (Cabral 1979 : 63), evitar extremismos, «
desvio para esquerda e desvio para a direita » (Cabral 1979 : 69).
Cabral deixou alguns elementos desse plano, que consistiriam no
seguinte: desenvolver e estabilizar o mercado nacional ; Desenvolver o máximo a
troca com outros países ; Estabelecer todo um sistema de comércio exterior ;
Estudar o problema dos preços nacionais.
Pode-se dizer que estes elementos, para além de serem susceptíveis
de reflectir uma situação conjuntural, se limitam a apenas alguns aspectos do
que se poderia considerar um Plano de Desenvolvimento. Mas não restam dúvidas de
que as preocupações neles consubstanciadas nos projectam para lá dos limites
exigidos pelas condições da luta armada.
Quando era interrogado sobre como é que um país pequeno e pobre
como a Guiné –Bissau poderia sobreviver, Cabral respondia que se outros o
conseguiram a Guiné-Bissau também poderia consegui-lo. O seu optimismo
baseava-se na convicção de que após a independência o país poderia contar com
uma liderança esclarecida, moralmente forte e engajada a promover o
desenvolvimento. Apesar de ter a consciência de que a luta era essencialmente
política, Cabral acreditava que as circunstâncias políticas, económicas e
sociais em que se estrutura e desenvolve o movimento de libertação nacional,
conferem aos problemas de natureza moral uma particular importância, devido
principalmente às fraquezas próprias do movimento, ao oportunismo ou às
possibilidades de oportunismo que o caracterizam, às pressões e manhas
utilizadas pelo imperialismo, assim como à dificuldade, mesmo a impossibilidade
de um controle do movimento e dos seus líderes pelas massas populares
nacionalistas (Cabral 1976: 214). Se há um domínio em que as reflexões de Cabral
se tornam pertinentes para actualidade este constitui um dos principais.
A hegemonia do pensamento neo-liberal e até ultra-liberal, em que
a regulação social é deixada ao critério das forças do mercado, em que os
valores morais são subalternizados a favor duma mentalidade centrada no lucro e
no ganho fáceis, em que o ter se sobrepõe ao ser, em que os políticos africanos
não olham aos meios para se enriquecerem, fazendo do continente africano um dos
mais corruptos do globo e onde a problema da governação se coloca com maior
acuidade; Um olhar às advertências de Cabral poderia contribuir para equacionar
em moldes críticos a conduta das lideranças chamadas a liderar os processos de
desenvolvimento em África.
A actualidade do pensamento de Cabral expressa-se na visão global
que ele tinha de desenvolvimento, concebendo-o antes de mais nada como algo
centrado no homem; Uma concepção em que o homem é o “valor supremo” do universo,
devendo os benefícios de qualquer conquista tecnológica e científica servir, em
primeira linha, os seus interesses.
Segundo esta concepção o homem seria igualmente o sujeito
principal desse desenvolvimento, fazendo dele, sejam quais forem os factores
materiais e sociais que condicionam a sua evolução “o elemento essencial e
determinante” (Cabral 1976:215).
Tal como as concepções correntes de desenvolvimento, Cabral
concebia desenvolvimento na sua multidimensão. Ele alertava que “devemos lembrar
que não chega produzir, ter a barriga cheia, fazer boa política e fazer a
guerra. Se o homem, a mulher, um ser humano faz tudo isso, sem ele próprio
avançar como ser inteligente, como primeiro ser na natureza; sem ele próprio
sentir que cada dia aumentam na sua cabeça os conhecimentos do meio, como do
mundo em geral, quer dizer, sem ele avançar no plano cultural, tudo aquilo que
faz produzir, fazer boa política, combater-não dá resultado nenhum (Cabral 1979:
71). Estamos em presença de uma problemática de extrema actualidade, cujo
equacionamento as reflexões de Cabral são de uma utilidade inquestionável. O
conceito de de desenvolvimento humano usado por várias agências internacionais,
nomeadamente pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)
inspira-se deste tipo de concepção, encarando desenvolvimento não só na sua
dimensão material, mas igualmente na sua dimensão cultural e espiritual,
incluindo o direito à educação, à participação cívica e à livre expressão da
liberdade religiosa.
O tão propalado desenvolvimento equilibrado que dominou muitos dos
manuais nos anos 80 é outro tópico que Cabral abordou, à sua maneira, em 1969,
quando falava aos quadros do PAIGC. Ele defendia que não só era necessário
comparar a cidade com o mato, como trabalhar no sentido de fazer progredir o
campo cada dia mais, tanto no plano cultural como noutros planos. Este postulado
continua a ser uma exigência actual para a maioria dos países em desenvolvimento
e dos africanos em particular. Fiel ao modelo de desenvolvimento centrado no
Estado-nação, Cabral não podia conceber que certas partes do território nacional
fossem negligenciadas na promoção do desenvolvimento, sob pena de perigar o
processo de construção nacional. « Nós estamos a libertar a nossa terra para
avançarmos como outros povos no mundo, para o progresso, para uma vida de
dignidade, para a unidade da nossa terra, nacionalmente, para ajudarmos a
levantar uma Africa nova e melhor. Esse é que é o objectivo da nossa luta, no
quadro do mundo, da humanidade, a qual pertencemos como seres humanos » (Cabral
1979 : 124)
12. Não obstante o facto de muitos dos projectos de
desenvolvimento (construção de estradas, pontes e barragens, redes de
telecomunicações) implicarem uma dimensão regional e transnacional, é
inquestionável que a construção de unidades transnacionais e regionais se torna
inviável sem a consolidação de unidades políticas nacionais.
Uma outra dimensão em relação à qual os intelectuais africanos são
chamados e reflectir e a encontrar respostas prende-se com o desafio que a
globalização das economias, mas também doutras esferas da sociedade, coloca.
Qual é a margem de manobra que possuem os países de economia em desenvolvimento
e os africanos em particular face à globalização? Terá a globalização tornado
sem sentido qualquer distinção das sociedades em termos de modelo de
desenvolvimento? Se sim, precisaremos doutros modelos que ultrapassem a velha
dicotomia entre países de orientação socialista e outras de orientação
capitalista?
Perante estas e outras perguntas da actualidade teremos que
reconhecer os limites de pensadores africanos como Cabral, Mondlane, Nkrumah e
outros, que viveram outra época.
Mas estamos em crer que o seu pensamento pode ser útil e actual
quando alerta para a possibilidade de uma neocolonização dos territórios e para
o facto de que “uma terra só é libertada de verdade se se conseguir tirar toda a
dominação estrangeira sobre a economia do país, principalmente em relação às
riquezas naturais”. (Cabral 1976: 2002). A distinção entre o socialismo e o
capitalismo, que parecia ocupar sobremaneira à esquerda europeia, não fazia
muito sentido para ele. Costumava dizer que o modelo de sociedade para a
Guiné-Bissau podia ser encontrado nas zonas libertadas. Considerava possível
receber ajuda dos países capitalistas, desde que esses não impusessem condições
a essa ajuda. Para Cabral, o mais importante era libertar o povo e os seres
humanos de todas as formas de opressão, uma opressão que na concepção de Cabral
provavelmente não era encarada apenas como o resultado de relação sociais, mas
como algo intrínseco à própria natureza humana, uma vez que num dos seus mais
ambiciosos textos teóricos (A arma da teoria)
13, Cabral postula que « o
homem sobreviverá às classes e continuará a produzir e a fazer história, porque
não pode libertar-se do fardo das suas necessidades, das suas mãos e do seu
cérebro, que estão na base do desenvolvimento das forças produtivas » (Cabral,
1976 : 204).
Referências bibliográficas
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da Teoria. Unidade e Luta I, Lisboa,
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_____(1974),
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Africa »,
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224,
pambazuka-news@pambazuka.org.
1 Cf. Chilcote, R. (1968), « The political thought of Amílcar
Cabral ”.
Journal of Modern African
Studies, 6
(October).
2 Veja Galli, R. (1986), “Amílcar Cabral and Rural Transformatioon
in Guine-Bissau: A Preliminary Critique”, Rural Africana, 25-26 (Spring-Fall
1986), pp. 55-73.
3 O conceito de desenvolvimento utilizado neste trabalho é o
proposto recentemente pelo sistema das Nações Unidas para medir o índice de
desenvolvimento humano dos países isto é, um conceito multidimensional, que toma
em consideração não só o aspecto material, mas igualmente os relativos aos
direitos cívicos e à liberdade religiosa.
4 Ver a esse propósito o texto escrito em 1960 intitulado “a
verdade sobre as colónias africanas de Portugal”, A Arma da Teoria, Unidade e
Luta, Lisboa, Seara Nova, 1976, pp. 57-66.
5 O texto chama-se « para a melhoria do nosso trabalho politico” e
faz parte do conjunto de textos denominados “Os princípios do partido e a
prática política”, in Arma da Teoria, Unidade e Luta I, Seara Nova, Lisboa,
1976.
6 Cf. A Arma da Teoria, Unidade e Luta I, p. 57.
7 Os detalhes do argumento económico por detrás do apelo dos
escritores ortodoxos para integração regional entre países em desenvolvimento
podem ser encontrados em P. Robson, The Economics of International Integration,
London, 1972, e M. Carnoy, ed., Industrialisation in a Latin American Common
Market, Brooking Institution, Washington, DC., 1972.
8 O Presidente do Comité de Tabanca era responsável pela produção
agrícola, o Vice-Presidente pela segurança e defesa local, o terceiro membro
pela saúde, educação e outros serviços sociais, o quarto pelo abastecimento e
distribuição de alimentos para as Forças Armadas e o quinto pela recenseamento,
registo civil e contabilidade (Rudebeck 1974).
9 Por partido_Estado o PAIGC entendia um partido que tem todos os
atributos de um Estado governamental excepto reconhecimento internacional.
10 Sobre a divergência de interesses entre o Estado e o
campesinato na Guiné-Bissau, ver Rosemary Galli (1986).
11 Trata-se do No. 58, de Novembro de 1993.
12 O sublinhado é nosso.
13 Discurso pronunciado, em nome dos povos e das organizações
nacionalistas « das colónias portuguesas, na I Conferencia de solidariedade dos
Povos da Africa e da América Latina (Havana, 3 a 14 de Janeiro de 1966),
nasessão plenária de 6 de Janeiro.
Dados biográficos
*CARLOS EUGÉNIO MONTEIRO CARDOSO
E-mail: carlos.cardoso@codesria.sn
INFORMAÇÕES PESSOAIS
Nacionalidade: guineense
Estado
civil: casado
Local de
nascimento: Fajonquito, Região de Bafatá, Rep. Guiné-Bissau
Residência:
Dakar, Ouest Foire
HABILITAÇÕES
LITERÁRIAS
-Doutoramento em Filosofia, pela
Universidade Friedrich- Schiller, Jena, RFA. Tema: Religião e Reprodução Social.
Estrutura, Função e Modo de Funcionamento da Religião Balanta.
-Mestrado
em Antropologia Social e Etnologia, pela Escola de Altos Estudos em Ciências
Sociais-EHESS, Paris, França. Tema: Problemas fundiários na Guiné-Bissau. O caso
dos Balantas.
-Mestrado
em Filosofia, pela Universidade Friedrich Schiler, Jena, RFA. Tema: Mito,
Religião e Pensamento Filosófico na Guiné-Bissau.
EXPERIÊNCIA
PROFISSIONAL
Investigador do INEP
Director
Geral do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa
Director
Geral da Educação de Base e Alfabetização
Consultor
de várias instituições internacionais, nomeadamente da UNESCO, PNUD, Banco
Mundial, USAID e ASDI, bem como do Instituto da Cooperação Portuguesa
Investigador do Centro de Estudos
Africanos do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE),
Lisboa
Professor
de Sociologia Política na Universidade Lusófona de Lisboa
Desde 2004,
Administrador de Programas no Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em
Ciências Sociais em África (CODESRIA), Dakar, Senegal
PUBLICAÇÕES
Autor e Co-autor de vários
livros e artigos versando sobre temas relacionados com a Guiné-Bissau, África e
com as disciplinas de História, Sociologia Política e Antropologia Social
FILIAÇÃO
EM INSTITUIÇÕES ACADÉMICAS
-Membro do Comité Científico do CODESRIA (Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em Ciências Sociais em África)
-Membro
(direcção) da Associação de Ciências Sociais e Humanas em Língua
Portuguesa
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