Mia Couto e a Memória *
Enviado por luisnassif, qua, 28/11/2012 - 20:45
Autor:
Urariano Mota
O texto que vocês vão ler saiu a fórceps. Primeiro porque existe, ou deveria haver, uma solidariedade natural entre escritores, que vem como um encontro de pacientes em uma sociedade oculta: é natural que nos protejamos do meio externo que não é bem acolhedor para a poesia e a escrita, essas coisas nada práticas. Segundo porque há mesmo uma solidariedade mais nobre entre literatos, ou um sentimento que nos faz sair da própria pele e caminhar além dos interesses mais particulares, mesquinhos: os companheiros de jornada expressam e vivem o que acreditamos estar entre os valores mais altos do homem - o enfrentamento, o gozo e a verdade da literatura. Se possível, na ordem inversa.
Agora vocês vão saber a razão do parágrafo anterior, que os manuais de redação dos jornais chamariam de “nariz de cera”. Quando Mia Couto veio a Pernambuco, pela primeira vez em 24 de outubro, fui a sua palestra na UFPE com muitas e grandes esperanças. Eu e mais leitores iríamos ganhar o prazer de um espetáculo melhor que o teatro ou o cinema, que vinha a ser a palestra de um escritor de reconhecimento universal. Ótimo, e passei a adiantar as tarefas do dia, pela manhã, para chegar a tempo. Mas já na saída de casa, o editor do Vermelho, o jornalista e escritor José Reinaldo, me sugeriu por email que eu poderia fazer uma entrevista com o grande moçambicano. Já estava ali, não era? Ao que lhe respondi: “eu imaginava que fosse me distrair, mas tudo bem, a gente descansa carregando pedra”. E assim fui, ledo e tarefado para ver Mia Couto e entrevistá-lo, se possível nessa ordem.
Apresentou-se no auditório lotado um escritor simpático, a falar baixo, no efetivo exercício de um ator experimentado com o seu papel. Ele, diante das inumeráveis manifestações de apreço, aplausos, sussurros irreprimíveis do público feminino, numa predisposição geral para aprovar o que ele houvesse de falar, me lembrava o tempo todo da frase de Borges, que assim falou ao receber saudações entusiasmadas nas ruas de Buenos Aires: “eles acenam para uma pessoa que pensam que sou eu”. Então anoto um rascunho enquanto o escritor fala, entre o tumulto e a unânime aprovação.
Mia Couto ao falar, como escritor, conta histórias, narra casos, em vez de organizar ideias abstratas. O que é do gênero de narradores, observo hoje, no texto presente. Mas criadores, bem sei também, são homens plenos, não são aleijões refratários a juízos que transcendam o enredo de pessoas e personagens. Pelo contrário, nos seus escritos se dá a iluminação de um pensamento que fortalece e dá substância eterna ao fato narrado, que seria um fato ultrapassável na crônica do tempo. Por isso agora me pergunto, ao refletir sobre a sua palestra: não seriam esses casos engraçados, jocosos, anedóticos, não seriam tais estímulos ao sorriso uma corte ao público? Voltemos então ao que anotei em 24 de outubro: Mia Couto conquista o auditório com o seu bom humor e ares de se dar pouca importância a si mesmo. O que é ótimo para a veste própria do escritor bom camarada. Pois o que ele escreve deve ser agradável como a sua pessoa, um ser a que chegamos sem as pompas e a gravidade que dizem merecer os autores de textos fundamentais. Não é? Um Camões com a camisa do Sport Clube do Recife. Um Saramago simpático chocarreiro. Pois. Então Mia Couto, entre a simpatia e a leveza, fala e constrói uma intervenção mais grave, que, apesar da aparência de convívio para a paz, me abala como um soco no estômago. Ele diz:
- Vi que anunciaram que eu falaria aqui sobre Literatura, Identidade e Memória. Mas não me preparei, não tive tempo de me preparar. Ou me enganei, ao pensar que me esperava um tema contrário. Penso que seria melhor eu falar sobre Esquecimento. Nisso eu me apoio nos recentes acontecimentos da história do povo moçambicano. Em Moçambique, achou-se melhor o esquecimento dos traumas da guerra. Isso foi uma estratégia para a paz. Para continuarmos a nossa caminhada sem mais guerra.
Ou como registrariam os jornais do outro dia:
“Bem-humorado, o escritor contou que pensava que o tema da palestra tratava de Literatura e Esquecimento, ao invés de Identidade e Memória. ‘Cheguei a certo ponto de minha vida que penso ser melhor esquecer que lembrar’, declarou ele, citando como o processo de esquecimento havia sido importante para que Moçambique superasse a Guerra Civil que assombrou o país durante 16 anos, no sentido de não se manter antigas rivalidades. Ao dizer que o passado era uma construção do que as pessoas inventavam para si próprias, Mia destacou o esquecimento como um caminho para a formação de identidades, deixando claro que cada indivíduo possui identidades plurais”.
Uma frase tão dura, esta de esquecer para alcançar a paz, era mais que um soco, eram balas contra um coração essencial. Por um lado, ela bem mostrava que Mia Couto não era só o bom anunciador de um novo tempo. Por outro, pior, a frase vinha contra o poder de criação da identidade da literatura, no mesmo passo em que introduzia a pacificação entre ofensores e ofendidos, depois da guerra. Se é que o fogo lento entre brasas ocultas não continuasse a velha guerra, entre minas a explodir. Daí que ao ser franqueada a palavra ao público, que se esperava ser tão só de admiradores, pedi o microfone. E com um tom sem pontuações e desorganizado, vi-me obrigado a romper o clima de confraternização do encontro na universidade. E nervoso, falei mais ou menos o que se segue:
- Mia, você afirmou que no processo de reconstrução de Moçambique se adotou o esquecimento como estratégia para a paz. Você, como escritor, deve escrever melhor do que fala. A sua frase, de esquecer para a paz, é muito perigosa neste momento do Brasil. Aqui estamos em pleno instante da Comissão da Memória e da Verdade. Nós não podemos esquecer, Mia. Note que mesmo o esquecimento, qualquer esquecimento, não é absoluto. Como poderemos esquecer os crimes da ditadura? Pelo que você fala, não teria havido o Tribunal de Nuremberg, nem mais caça aos criminosos nazistas, porque estariam todos esquecidos. Talvez você tenha querido dizer outra coisa, e não foi feliz. É isso.
E voltei ao meu lugar, sob um pesado silêncio e consternação do público. Lembro que o escritor, em resposta, reconsiderou na hora o que ele havia dito, que não havia feito um juízo de valor sobre o processo de Moçambique, apenas contara o que houve e mais nada. E passou para outra intervenção dos fãs, que eram em número absoluto. Mas não esqueceu a divergência, porque na consideração seguinte brincou:
- Eu tenho que ter muito cuidado com o que falo.
A mesa, a condução da mesa, sorriu e riu alto, por mais uma tirada espirituosa do brilhante escritor. Que foi para assuntos mais “humanos” e amenos, enquanto eu me guardava na obscuridade de onde não deveria ter saído, pelo clima do auditório e da mesa. Mas eu tinha que cumprir a tarefa de José Reinaldo, o editor do Vermelho. E fui e consegui a entrevista, num esforço máximo.
O problema é que a entrevista com Mia Couto depois não se fez sem um certo embaraço. Pior para mim. Vocês sabem aquela situação em que uma pessoa comete uma falta, e a vergonha maior é nossa? Então entendem que eu me sentia sem forças de escrever e publicar a breve entrevista que ele me deu, em meio à tietagem e ruídos e fotos de todos os lados. O que ele me disse ali, depois da palestra, no pátio da Escola de Educação, se tornou irrelevante, absurdo, diante do fato maior, do esquecimento que deveria haver para se conseguir uma paz duradoura. Voltei à pergunta que lhe fiz no auditório, e ele, cordato, admitiu que havia sido infeliz, e falamos de coisas menos definitivas e definidoras. Entre outras, eu lhe perguntei sobre escritores brasileiros que mais o influenciaram, a que ele deu a resposta “João Cabral de Melo Neto”. Estávamos em Pernambuco.
E o texto até aqui, até hoje engasgado sem sair. Eu seria falso, mentiroso, se escrevesse e publicasse as suas palavras sem o incidente da palestra. Eu seria esquecido, digamos. Por outro lado, o escritor é tão camarada, tão pacífico, tão .... indefeso, que seria uma injustiça tremenda revelar, relevar uma frase errada, numa hora errada, num contexto errado. Frase que era uma coisa menor, uma contradição no seu ofício. Por que destacar o tropeço? Ele caiu e se levantou. Um acidente superado, eu pensava. Mas o conflito não se resolvia: publicar esquecendo? Publicar ocultando?
Eis que ele volta a Pernambuco para a Fliporto em novembro. No dia 17 ele esteve em um encontro e palestrou ao lado do escritor Agualusa. O auditório mais uma vez lotado. Assisto à sua palestra em um telão exterior. E sem aviso, eis que Mia Couto volta ao tema da memória, aquela que esquece para obter a paz. Ou como o traduziu o portal G1:
“Durante a conversa, respondendo a diversas perguntas da plateia, o único ponto em que houve discordância foi a respeito da memória. Para Mia, há a possibilidade de ela ser esquecida para evitar erros do passado. Para Agualusa, ela precisa ser encarada de frente.
Mia se justifica lembrando da Guerra Civil de Moçambique, que durou 16 anos e deixou 1 milhão de pessoas mortas. ‘Depois, nunca mais se falou no assunto, como uma esponja que tirou isso da memória. [...] As pessoas decidiram colocar a tampa, para os demônios não regressarem. Isso é um desejo maior, que era o desejo da paz’, comentou. ‘Não faço apologia do esquecimento, mas no caso de Moçambique foi a solução encontrada. A literatura resgata esse tempo e pode fazer essa visita sem apontar dedos ou culpas”, completou.
Mia se justifica lembrando da Guerra Civil de Moçambique, que durou 16 anos e deixou 1 milhão de pessoas mortas. ‘Depois, nunca mais se falou no assunto, como uma esponja que tirou isso da memória. [...] As pessoas decidiram colocar a tampa, para os demônios não regressarem. Isso é um desejo maior, que era o desejo da paz’, comentou. ‘Não faço apologia do esquecimento, mas no caso de Moçambique foi a solução encontrada. A literatura resgata esse tempo e pode fazer essa visita sem apontar dedos ou culpas”, completou.
Na hora de 17 de novembro faço anotações no papel. Escrevo:
“A memória é mulher. Ela não esquece. Mia assume a deslembrança de Moçambique. Mia faz relativismo quando fala que a memória recorda também mentiras. Tese cara à mídia reacionária. ‘A lembrança da África é fundada sobre estereótipos vitimistas..’, ele fala, como se fosse um português envergonhado do passado colonial. Mia confirma a palestra da UFPE também, quando faz declarações com frases de efeito, dignas de um artista do entretenimento. ‘A ditadura da realidade é a pior ditadura que podemos ter’, ele diz. A fantasia do distinto público vai ao delírio”.
E aqui chego ao fim, ou melhor, faço uma pausa à maneira de terminar. Creio que o leitor deve compreender a esta altura a razão de não ter publicado antes a entrevista. Atravessada, há mais de dois meses. Somente espero não ter me tornado também, nestas linhas, um esquecido.
*No Blog da Boitempo, http://boitempoeditorial.wordpress.com/2012/11/27/mia-couto-e-a-memoria/
"Os moçambicanos escolheram o esquecimento. Quem hoje viaja pelo país não sente sinal nenhum dessa guerra. Esse esquecimento é uma sabedoria, uma percepção de que os demônios do passado ainda não foram enterrados. Mas é um falso esquecimento, como quase sempre sucede com os lapsos de memória".
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2306200913.htm
Abraço,
Nara
http://www.facebook.com/pages/Mia-Couto/298257536887970
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Recordo-me - logo a seguir à Independência, nos grandes comícios - dos grandes chefes anunciarem: “agora, vai entrar a cultura”. E subiam ao palco os dançarinos. A cultura era isso, a dança. O serviço da dança era abrilhantar o evento político. E ficava bem claro que a dança era um serviço e os dançarinos eram servidores. Talvez este exercício fosse apenas a memória de um universo em que o político, o religioso e o cultural eram uma única e inseparável esfera? Pode ser que sim. Mais do que inércia de um tempo, aquele modo de usar uma manifestação cultural era uma conveniência.
A invocação da tradição é outra estratégia para a legitimação do discurso político. Recorrer à tradição pega sempre bem. Ainda que ninguém saiba exactamente o que é a tradição. Mesmo que se suspeite que aquilo que hoje invocamos como valor tradicional tenha sido ontem uma provocadora modernidade.
É uma questão cultural, dizia-se no chamado tempo da revolução para justificar fosse o que fosse. O fulano maltratava a mulher. Era uma questão cultural. O polícia abusava do poder? Era uma questão cultural. A frase feita sugeria uma acção desfeita. De outro modo: a culturalidade de uma prática era suficiente para a legitimar. E estávamos isentos de fazer fosse o que fosse. O dirigente suspirava de alívio: não se lhe era exigido fosse o que fosse. A sua passividade perante as tantas questões culturais era, ela mesmo, uma questão cultural.
Moçambique é um mosaico de culturas. À força de ser repetida, esta frase (que é absolutamente correcta) corre o risco de não significar nada. Mas pode ser ainda mais grave: pode ser palavreado que encobre uma outra mensagem. E essa mensagem pode equipar a cultura a um mosaico enquanto objecto inerte. Isto é, uma realidade material unidimensional.
E esse complexo de inferioridade ficou explícito na maneira de abordagem feita ao escritor.
"Você, como escritor, deve escrever melhor do que fala."
Pra que ser agressivo em sua pergunta? Pela vontade de querer impactar com o pouco espaço de tempo para se manifestar? Para aparecer mais do que o palestrante?
Não vou julgar o jornalista, mas me pareceu que quis aproveitar aquele curto espaço de tempo para se destacar na multidão.
Não acredito que seja fácil para ninguém que não conhece a realidade moçambicana querer discutir esse tema com um moçambicano, mas falando em tese e comparando com
...Ver maisnossa realidade, a ditadura militar no Brasil é um quase nasa perto da guerra civil moçambicana.
A gente tenta esquecer o que não consegue enfrentar, enquanto não consegue. Chega o dia em que não conseguimos mais conviver com o esquecimento. Chegou para nós, chegará para a África.
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Autor não tem sido visto em público nos últimos anos FOTO: ELIANA APONTE/REUTERS
O escritor colombiano Gabriel García Márquez não vai voltar a escrever, depois de ter sido diagnosticado com demência. O anúncio foi feito pelo irmão do escritor, Jaime García Márquez, numa conferência em Cartagena das Índias, Colômbia. Visivelmente emocionado contou que o Nobel da Literatura está bem em termos físicos, mas que perdeu a memória.
Nos últimos tempos, muito se tem especulado sobre o estado de saúde do escritor, que tem 85 anos. Em Junho, um amigo tinha contado à imprensa que Gabriel se andava a esquecer de muitas coisas e até já nem conhecia
...Ver maisos amigos e familiares.
Agora, o irmão mais novo falou sobre a situação pela primeira vez e confirmou o estado de saúde do escritor, para que acabem os rumores. “O facto é que se têm feito muitos comentários. Alguns são verdadeiros mas vêm sempre acompanhados de detalhes mórbidos. Às vezes parece que preferiam que ele estivesse morto, como se a morte fosse uma grande notícia”, disse Jaime, citado pelo El Mundo, criticando as notícias que têm vindo a público. “Ele tem problemas de memória”, acrescentou, sem esconder a tristeza. “As vezes choro porque sinto que o estou a perder.”
Jaime explicou que existem casos de demência na família, mas que com Gabriel a situação se complicou depois dos tratamentos ao cancro em 1999. “A quimioterapia salvou-lhe a vida mas também acabou com muitos dos neurónios, das defesas e células e acelerou o processo”, atestou.
Ainda assim, o autor de “Cem Anos de Solidão” continua a “conservar o humor, a alegria e o entusiasmo”, garantiu Jaime, explicando que Gabriel teve de parar de escrever, não devendo sequer voltar a fazê-lo mais. “Infelizmente acho que não vai ser possível, mas oxalá esteja equivocado”, notou Jaime, lamentando que o irmão não possa escrever a segunda parte do seu livro de memórias, “Vivir para contarla”.
O escritor colombiano, que vive no México desde a década de 1980, publicou o último livro, “Yo No Vengo a Decir Un Discurso”, em 2010, depois de uma pausa de seis anos, uma vez que já não publicava nenhuma obra desde 2004, quando lançou “Memória das minhas putas tristes”. “Cem Anos de Solidão”, escrita pelo colombiano em 1967, é uma das obras mais lidas e traduzidas – cerca de 30 idiomas – em todo o mundo.
Notícia corrigida às 16h26: a conferência aconteceu em Cartagena das Índias (Colômbia) e não em Cartagena (Espanha)
http://www.publico.pt/cultura
...Ver maisndico foi muito mais intensa do que do lado do Atlântico; o trauma social em Moçambique, com maior densidade demográfica e uma área geográfica 1/3 menor do que Angola, deve ainda ser mais difícil de suportar e, por isso mesmo, de encarar. Assim, o silêncio moçambicano pode ser compreendido como uma espécie de estado de choque histórico que ainda perdura. Quanto aos "estereótipos vitimistas", apesar da mídia reacionária, qual historiador, hoje, negaria o papel ativo de africanos na captura, no transporte e na venda dos escravos - a "mão interna" de que falou Mia Couto? Não quero com isso diminuir e sequer relativizar a responsabilidade dos comerciantes ou dos proprietários de escravos europeus ou nativos de norte a sul do nosso continente!
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