quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Opinião de Francisco Assis: Atravessamos o mais perigoso dos tempos

 
27.09.2012 - 11h38 Francisco Assis
1. Atravessamos o mais perigoso dos tempos, esse em que os cidadãos vagueiam entre a proclamação do seu desespero individual e a inocente vontade de diluição numa multidão onde se projecta a ilusão utópica de um unanimismo comunitário puro e primordial. Épocas destas, não nos iludamos, apelam ao triunfo dos cínicos, dos redentores, dos demagogos, dos proclamadores de simplismos ideológicos. A verdade é que, num contexto em que a informação circula tão livremente, se poderá assistir, se tudo correr bem, a uma revalorização da democracia, entendida como uma sábia combinação de participação e representação.
As sociedades democráticas contemporâneas, em particular nalguns países europeus, estão confrontadas com um problema que extravasa largamente as dimensões da eficiência prática e da legitimidade formal, e se coloca num plano mais radical que tem que ver com uma crise do próprio sentido da acção colectiva. Vivemos em sociedades pós-religiosas, pós-ideológicas e, até mesmo, pós-cientificistas. Os grandes acontecimentos estruturadores da Modernidade, quer no plano filosófico-científico quer no domínio político, questionaram a premência do fenómeno religioso enquanto inspirador de mecanismos de coerção comunitária e abriram as portas para uma versão secular do mesmo, onde conviviam a paixão ideológica e a crença positivista e cientificista. No final do século XX, com a afirmação daquilo que se convencionou designar por pós-modernidade, assistimos à desvalorização desses novos modelos de representação das sociedades e da História. A abrupta queda dos regimes comunistas, assentes numa inequívoca filiação revolucionária e democrática, assinalou a derrota de uma determinada linha de orientação doutrinária subsidiária de alguns dos valores fundadores da Modernidade ocidental. Pensar o contrário é negar a realidade. Subsistiam, felizmente, outras correntes de opinião que, assumindo parte substancial da herança moderna, nas suas vertentes racionalista, democrata e liberal, apontavam para um outro caminho no plano político. O pós-guerra europeu, mercê de um entendimento histórico, nem sempre conscientemente compreendido, entre a democracia-cristã, o liberalismo social e o socialismo democrático, caracterizou-se pela afirmação vitoriosa de um novo modelo de organização das sociedades, estribado na associação entre um Estado de direito de origem liberal e um Estado social de proveniência democrática. Sem essa construção histórica, as sociedades ocidentais ter-se-iam provavelmente perdido no culto de um niilismo incompatível com qualquer perspectiva de vida comunitária. As democracias, pelo menos, não teriam provavelmente resistido a uma situação dessa natureza.

O que hoje se está a passar em grande parte da Europa, porque justamente põe em causa este equilíbrio que configura um verdadeiro avanço civilizacional, reveste-se de uma importância ímpar e remete para um plano que nada tem que ver com a disputa política normal. Nessa perspectiva, estamos confrontados com um verdadeiro estado de excepção, que em lugar de conduzir para a restrição das ordens constitucionais vigentes, deve levar a um especialmente exigente debate na esfera pública de cada uma das democracias ocidentais. Isso implica a reconstituição de mecanismos de mediação e representação que estão a ser, no presente momento, objecto de profundas críticas. Algumas justas, outras absolutamente infundadas.

É certo que os partidos políticos se têm vindo progressivamente a desqualificar aos olhos da opinião pública, já porque não concorrem para uma adequada representação das aspirações sociais, já porque não são capazes de acolher novas necessidades de debate cívico. Os partidos estão, em grande parte, aprisionados por aparelhos burocráticos, de escasso talento, e insuficiente capacidade de compreensão da realidade envolvente. Não seria, porém, sério, e constituiria até manifestação de cobardia, circunscrever ao universo partidário os males que caracterizam o nosso espaço público na sua globalidade. Ousemos dizer o que raramente se diz: jornais como o Jornal de Notícias e o Correio da Manhã, com as suas actuais linhas editoriais, constituem verdadeiros inimigos da democracia. Ao apelarem às piores pulsões populares, tais órgãos de comunicação social contribuem para a degradação de um espaço público que é indispensável para a afirmação de um verdadeiro debate democrático. Bem sei ao que me estou a expor ao fazer este tipo de afirmações, mas sempre tive repugnância pelos políticos incapazes de enfrentar a demagogia primária de uma certa forma de jornalismo. Isso faz-me sempre lembrar a afirmação de um intelectual francês que questionado sobre quem teria sido responsável pela derrota francesa perante a Alemanha nazi, se os militares ou os políticos, respondeu da seguinte forma: inequivocamente os políticos, porque antes de se renderem aos alemães, já se tinham rendido aos jornalistas.

Diante das gigantescas manifestações, que merecem o nosso respeito, é essencial que não cedamos à tentação da anulação do pensamento crítico. A rua, em democracia, deve ser respeitada e ouvida, mas estão profundamente equivocados aqueles que, por cegueira ou oportunismo, entendem que ela deve ser linearmente seguida. Talvez não seja muito popular afirmar isto nas presentes circunstâncias, mas há alturas em que é preciso saber correr o risco da incompreensão.

2. O país está confrontado com uma verdadeira situação de impasse. O Governo actual, politicamente inepto e doutrinariamente sectário, atingiu um estatuto de irrelevância que o condena a uma agonia inexorável. A inconsistência da coligação, que nenhum número de circo consegue mascarar, só tem paralelo na descredibilização da figura do próprio primeiro-ministro. O cenário de crise política já não constitui apenas uma ameaça latente, instalou-se mesmo como o único horizonte de referência na vida nacional. Alguém acredita na capacidade de resistência deste Governo perante um novo episódio de agitação social? O actual primeiro-ministro dispõe ainda de condições mínimas para tomar medidas difíceis e geradoras de alguma conflitualidade pública? Os ministros, vaiados em todo o lado, podem aspirar a qualquer iniciativa dotada de maior ousadia? Não creio. Este Governo está demasiado enfraquecido para poder enfrentar tempos tão difíceis.

É altura de começarmos a pensar com seriedade e rigor em alternativas sérias na vida política portuguesa. Nos próximos tempos tenderão a confrontar-se duas linhas de orientação: aquela que valoriza a afirmação de uma espécie de compromisso histórico entre as principais forças políticas, e aquela que apontará para uma antagonização radical assente na distinção tradicional entre esquerda e direita. A primeira opção só poderá prevalecer se entretanto a actual solução governativa for devidamente removida, já que pelo seu radicalismo o executivo de Pedro Passos Coelho gerou clivagens em lugar de promover compromissos. A segunda opção só teria viabilidade se o Bloco de Esquerda e o PCP estivessem disponíveis para um aggiornamento que se não afigura previsível.

Por isto mesmo, uma figura pode vir a ter um papel absolutamente determinante nos próximos tempos na nossa vida pública: o Presidente da República. Mas há mais personalidades que importa seguir com atenção, dado o contributo que podem vir a dar para a superação do impasse em que nos encontramos. Uma dessas personalidades é José Silva Peneda, que preside ao Conselho Económico e Social. Acho que ainda vamos ouvir falar muito dele.

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