Ao Balcão da Cantina
(17)
Por: José Pimentel Teixeira
Acabo de receber um novo livro do historiador José Capela.
Trata-se da publicação, por ele organizada e comentada, de “Caldas Xavier. Relatório dos acontecimentos havidos no prazo Maganja aquém Chire, Moçambique, 1884”. Desde há décadas que José Capela vem publicando sobre a história e a sociedade moçambicana. Um trabalho que continua em azáfama, com múltiplas publicações (e, felizmente, também em registo electrónico), agora sediado no Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto após quase quarenta anos de vida em Moçambique, como jornalista no período colonial e, depois, como conselheiro cultural na embaixada portuguesa em Maputo - José Capela é o pseudónimo usado por José Soares Martins na sua vertente de historiador.
Símbolos aqui das suas publicações, sempre lembrados, são o fundacional “Moçambique pelo seu povo”, editado em 1971 e que coligia cartas de leitores ao jornal “Voz Africana”, inaugurando a expressão publicada da palavra popular, e “O Vinho para o Preto. Notas e Textos sobre a exportação do Vinho para África”, texto tantas vezes evocado, mesmo por aqueles que nunca o leram, dada a temática, por um lado singular e por um outro tão identitária (o peso do consumo de “vinho português” nas modalidades de ascensão social e de urbanização), e o seu tão sonante título, que o torna curioso aos leigos, ainda que apenas ecoando uma linguagem administrativa de época.
Por: José Pimentel Teixeira
Acabo de receber um novo livro do historiador José Capela.
Trata-se da publicação, por ele organizada e comentada, de “Caldas Xavier. Relatório dos acontecimentos havidos no prazo Maganja aquém Chire, Moçambique, 1884”. Desde há décadas que José Capela vem publicando sobre a história e a sociedade moçambicana. Um trabalho que continua em azáfama, com múltiplas publicações (e, felizmente, também em registo electrónico), agora sediado no Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto após quase quarenta anos de vida em Moçambique, como jornalista no período colonial e, depois, como conselheiro cultural na embaixada portuguesa em Maputo - José Capela é o pseudónimo usado por José Soares Martins na sua vertente de historiador.
Símbolos aqui das suas publicações, sempre lembrados, são o fundacional “Moçambique pelo seu povo”, editado em 1971 e que coligia cartas de leitores ao jornal “Voz Africana”, inaugurando a expressão publicada da palavra popular, e “O Vinho para o Preto. Notas e Textos sobre a exportação do Vinho para África”, texto tantas vezes evocado, mesmo por aqueles que nunca o leram, dada a temática, por um lado singular e por um outro tão identitária (o peso do consumo de “vinho português” nas modalidades de ascensão social e de urbanização), e o seu tão sonante título, que o torna curioso aos leigos, ainda que apenas ecoando uma linguagem administrativa de época.
Capela tem-nos dado um importante conjunto
de textos sobre a história do país, para os quais julgo avisado convocar os leitores.
Neles surgem três grandes eixos, ainda que neles não se esgotando o seu
contributo, e os quais se cruzam nas análises:
a) uma abordagem às formas como os
processos de formação do capitalismo português (então proto-metropolitano)
moldaram as políticas assumidas na colonização de Moçambique e, como tal, as
interacções com as populações locais;
b) um cuidado trabalho, assente sobre
um exaustiva pesquisa arquivística, sobre o tráfico internacional transoceânico
de escravatura no actual território moçambicano. Durante o período pré-colonial
e mesmo durante as primeiras décadas do efectivo colonialismo, até à sua
erradicação no início de XX. Uma vertente na qual Capela agrediu ideias
superficiais: as que anunciam o precoce regime colonial português (isso dos “cinco
séculos de colonialismo”, partilhado pelo mitos coloniais portugueses e pelos
discursos nacionalistas moçambicanos); a da precoce proibição efectiva do tráfico
nos territórios africanos reclamados em XIX por Portugal, bem como a ideia de
que o referido tráfico esclavagista ter sido um fenómeno totalmente exógeno;
c) e, finalmente, um olhar atento
sobre a especificidade e complexidade histórica das formações sociais na bacia
do Zambeze, desde o estabelecimento do regime dos “Prazos”.
É esta última realidade que o precioso
“Relatório de Caldas Xavier”, recentemente publicado, vem ilustrar. O seu autor
foi um oficial que trabalhou na instalação dos caminhos-de-ferro em Lourenço
Marques e nas obras públicas de Inhambane, sob o célebre Joaquim José Machado.
E veio a morrer na campanha de ocupação do sul do país. O texto que agora se publica
evoca o período em que dirigiu a Companhia de Cultura e Comércio de Ópio, com
base em Mopeia, e na qual enfrentou a revolta de Massingire, que devastou a
referida companhia em 1884. Capela traz-nos o texto, consciente
do tom interessado, nada neutral, do seu autor. Mas recupera-o como marco
fundamental para se entender a efectiva natureza do conflito que então brotou,
que denotava as relações dos grupos sociais presentes.
No fundo o que este texto nos mostra é
a reacção desses grupos sociais, comungados sob o velho regime dos Prazos, esse
que deixou memória através dos seus agentes “muzungos”, “donas”, “achicunda”, “colonos”,
e tantas outras categorias. E como todo esse espectro social conflituou diante
da chegada da Companhia do Ópio, a primeira empresa capitalista, de plantação, a
estabelecer-se na Zambézia, afrontando o sistema socioeconómico vigente e que
ali decaía face ao novo período histórico que assim se inaugurava.
Como nos diz Capela a teia de
conflitos e alianças que este “Relatório” desvenda, mostra como o que então se
confrontou não foram entidades políticas, uma “resistência” ao invasor colonial
ou uma mera confrontação racial. Nem tampouco se confrontavam grupos regionais ou
mesmo “étnicos”, sob diversas alianças. O que a revolta de Massingire permite
ver é a pobreza desses essencialismos, dessa forma de entender as entidades sociais
como eternas e naturais. Ali, em 1884, em torno de Mopeia, o ataque e a defesa da
“Companhia do Ópio” foram regidos pelos interesses económicos em choque. As perspectivas
de acesso à produção e distribuição da riqueza e do poder que a ela conduz.
É sabido que a história não se repete.
Mas também se sabe que convém entendê-la, para entender as suas dinâmicas.
Por isso mesmo parece-me óbvia a
visceral actualidade deste texto. E a urgência em lê-lo. Que os livreiros nacionais
cumpram o seu papel: encomendem-no.
(José
Pimentel
Teixeira/ www.ma-schamba.co/ Canal de
Moçambique)
12.09.2012