Beira
(Canalmoz) – O presidente da República e presidente do partido Frelimo
inaugurou ontem a estátua de Samora Machel na Praça da Independência que
no período colonial se designava por Praça da Índia. Na cerimónia
Armando Guebuza disse que a estátua servirá para que os cidadãos se
lembrem dos feitos de Samora Machel. Destacou o contributo do presidente
da primeira República no processo que culminou com os Acordos de
Lusaka, que abriu caminho à transição para a independência nacional.
Destacou também a valorização do complexo ferro-portuário, o acesso à
educação por parte da maioria dos moçambicanos que não o puderam fazer
no tempo colonial. No geral, Guebuza destacou só aspectos positivos da
acção samoriana e do seu partido omitindo muitos aspectos que ainda hoje
ofendem e marcam pela negativa muitos beirenses.
O
discurso de Guebuza irritou muitos presentes no local o que chegou mesmo
a suscitar fricções entre simpatizantes da Frelimo e do MDM cujo líder é
agora o presidente do município. Damos conta disso noutra notícia nesta
edição.
Sobre
o memorial inaugurado ontem em homenagem ao primeiro presidente da
“República Popular de Moçambique”, Samora Moisés Machel, um ancião,
Joaquim Buere, diz que “marca o regresso do ditador à Beira”. Ele
lembrou, na lógica do excerto de umas canções preferidas do malagrado,
que a estátua vai permitir que “não vamos esquecer o tempo que passou”.
“Os onze anos de autoritarismo e nacionalismo demagógico”, lembra Buere, “assim nunca mais vai ser esquecido”.
O
descerramento da toga que cobria Samora Machel pôs fim à curiosidade que
reinava nos últimos quatro meses. Sobretudo dos mais jovens.
Samora
Machel chegou a Beira pela primeira vez a 14 de Junho de 1974, no
quadro da viagem triunfal do Rovuma a Maputo, a onze dias da proclamação
da independência nacional.
Buere
como muitos outros adultos presentes na cerimónia de ontem na praça da
independência recordaram que na sua chegada à Beira, em mais uma etapa
da viagem do “Rovuma ao Maputo”, iniciada em Nachingweia, na Tanzania,
Samora Machel apelidou a Beira de “centro da reacção”, onde viviam
muitos dos que tinham criado problemas na Frelimo, aquando da luta
armada pela independência.
Era
nos arredores da Beira, mais propriamente no Dondo, que estava
estabelecido o engenheiro Jorge Jardim, um homem de negócios muito
influente que tinha o seu grupo de tropas especiais.
Era na Beira que viva Joana Simeão.
Machel
mandou encerrar igrejas e mandou prendeu alguns padres e crentes de
várias confissões religiosas, inclusive membros das Testemunhas de
Jeová.
Samora
tinha uma relação conflituosa com a Beira, não só por factos que
antecederam a independência nacional, empreendidos por nacionalistas que
advogavam outra abordagem pós independência, como também por a
resistência nacional (Renamo), que combateu o partido Frelimo depois da
independência, ter tido as suas raízes mais profundas na província de
Sofala de que a Beira é capital.
A
Renamo acabaria por levar à capitulação da Frelimo em 1992, seis anos
após a morte de Machel em Mbuzini num acidente de aviação.
Samora
Machel já tinha morrido quando a Frelimo assinou o acordo geral de paz
em Roma, mas a sua aversão à Beira, bem como da Frelimo, derivava do
facto de André Matsaigaísse, Afonso Dhlakama, Orlando Cristina e Evo
Fernandes, entre muitos outros nacionalistas moçambicanos que não
subscreviam os ideais marxistas-leninistas subscritas por Machel,
Chissano, Guebuza e outros, serem da Beira.
Em
1980, num comício na Beira, Machel apelidou os beirenses de ‘cabeças de
galinha’, pois no auge da guerra civil a população local era
considerada cúmplice da Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO).
Mas
a Beira de então não era só o “centro de reacção”. Foi na Beira que
incidiu a máquina mais repressiva do regime machelista, lembraram ontem
muitos beirenses que preferiram anonimato mas que fizeram questão de
manifestar a sua indignação por ali estar a ser implantada a estátua de
“um ditador”.
Na
Beira residiram figuras como o Reverendo Uria Simango; Padre Mateus
Pinho Gwengere; Joana Simeão, entre outros que foram condenados
extra-judicialmente a fuzilamento pelo Comité Político Permanente da
Frelimo, já depois de proclamada a independência nacional, alegadamente
por serem “desertores” e “traidores do povo e da causa nacional”, como
alegou a direcção da Frelimo protagonizando um conflito ainda não
resolvido entre os beirenses e este partido.
O
regime da Frelimo ainda no poder nunca se esforçou nem nunca lançou um
processo de reconciliação com as famílias das vítimas de Samora Machel e
do Bureaux Político do partido Frelimo.
As
ossadas de dezenas de políticos e intelectuais vítimas de fuzilamento
ordenado no tempo de Machel permanecem escondidas em lugar só conhecido
por figuras da cúpula do partido Frelimo, num segredo fechado a sete
chaves, mas que continua a suscitar imensa indignação nos beirenses.
Há
dias, numa entrevista à Televisão de Moçambique representada pelo
jornalista Simeão Ponguana o ex-presidente Joaquim Chissano afirmou que a
morte dos ‘contra-revolucionários’ tinha ocorrido à revelia de Machel.
Chissano afirmou que se receava que os presos políticos caíssem nas mãos
da RNM (designação na altura da Renamo), que começou as suas acções
contra o regime da Frelimo depois da evasão de André Matasangaísse do
campo de Sacuzo, em Gorongosa.
A inauguração da estátua de Machel ontem na Beira fez ressuscitar toda a revolta ainda transportada do passado.
Comentava-se
ontem que a Frelimo nunca atendeu aos pedidos de clemência lançados
pela Amnistia Internacional, nem quer permitir que se abra um inquérito
em torno daquelas mortes que para muitas famílias moçambicanas exige
procedimentos como os que o mundo tem adoptado para esclarecimento de
crimes perpetrados por outros ditadores, designadamente Charlles Taylor.
Na
década 80 muitos moçambicanos foram fuzilados por decisão do Tribunal
Militar Revolucionário (TMR), então encabeçado por Joaquim Munhepe, um
general agora na reserva e que ontem assistiu tranquilamente ao regresso
de Machel à Beira.
Há
ainda hoje familiares de vítimas que reclamam a devolução dos restos
mortais dessas vítimas de Machel e dos seus acólitos. Muitos jovens
desconheciam factos históricos relativos aos “reaccionários” omitidos
oficialmente, mas a inauguração da estátua de Samora Machel ontem na
Beira levou a que agora até os jovens não escondam a sua indignação.
“O
cinismo da plêiade de autores da barbárie, e a hipocrisia da comunidade
internacional pretende esconder os assassinatos”. “Os diplomatas e
governos ocidentais agora servidos pelos recursos minerais, fazem de
conta que Haia é só para outros”. Todos vão fazendo ouvidos moucos e
vista grossa aos crimes de Estado praticados fora do âmbito da guerra
civil e que antes a suscitaram. A procuradoria da República, chefiada
por Augusto Paulino, mantém-se muda a petições e reclamações de
moçambicanos que requereram junto dela a responsabilização do Estado por
assassinatos protagonizados pelo regime de Machel e o dia de ontem,
mais do que uma simples data de inauguração de uma estátua de Samora
Machel, serviu para acordar velhas questões que são ao fim e ao cabo,
como registámos de vários presentes às cerimónia de ontem, “crimes de
sangue”, “crimes de Estado” que “continuam impunes”.
Intervindo
na cerimônia do descerramento do manto que cobria a estátua, o
presidente do Conselho Municipal da Beira, Daviz Simango, também filho
de duas vítimas dos fuzilamentos de Nachingweia (Uria Simango e Celina
Muchanga), lançou um repto a Armando Guebuza e a Joaquim Chissano, ambos
presentes: “Temos esperança de que a presença deste monumento
impulsione os munícipes da Beira e os jovens em particular, de uma forma
isenta, a se interessarem pelas obras do malogrado presidente, pela
história da resistência da dominação colonial, pela história de luta de
libertação nacional, pelo processo do acordo de Lusaka, pela história de
Moçambique pós-independência, pela guerra civil”.
A
inauguração do memorial de Samoral Machel trouxe de novo à memória dos
beirenses e das famílias de muitas vítimas do regime, os rostos de
“figuras tristemente célebres” e que governaram Sofala a partir da
cidade da Beira, como dirigentes nomeados por Machel: governador Alberto
Cangela de Mendonça (1974-1975); governador Tomé Eduardo (1975-1978),
governador Fernando Matavele (1978-1980); Mariano de Araújo Matsinhe
(1980-1982) Ministro-Residente; Armando Emílio Guebuza (1982-1983),
Ministro-Residente, Marcelino dos Santos (1983-1986), Dirigente da
Província. Todos eles dirigiram a província de Sofala com mão-de-ferro.
Samora
Machel, num processo de viragem com vista a contornar a impopularidade
da Frelimo, em 1986, pouco antes de morrer no acidente em Mbuzini,
apostou em Francisco Masquil (1986-1995), uma figura então jovem, sem
relação militar, economista de formação, que viria a revelar-se um
acérrimo opositor do regime. (Adelino Timóteo)