Sunday, September 2, 2012

Não tivemos capacidade para gerir as lojas do povo

Não tivemos capacidade para gerir as lojas do povo

Inácio Nunes
Inácio Nunes é um veterano de luta de libertação nacional e um dos fundadores da Frelimo, vindo da UNAMI. Para Nunes, Samora decidiu banir  as lojas do povo “porque realmente nós não conseguimos responder à grandeza e velocidade do povo. Ficámos ultrapassados...”
Inácio Nunes é co-fundador da Frelimo, vindo da União Nacional Africana para Moçambique Independente (UNAMI), criada em 1959. Como é que surgiu a UNAMI e como esta união chega à Frelimo?
Chamo-me Inácio António Nunes e sou, na verdade, um dos fundadores da UNAMI. Nós começámos em Tete, tínhamos a nossa organização que ainda não tinha nome. Tivemos de arranjar uma maneira para nos podermos comunicar e tivemos que criar um espaço para nos encontrarmos. não tínhamos outra maneira para nos encontrarmos, senão fazer um clube a que chamámos Clube Africano de Tete. É ali onde fazíamos os nossos encontros clandestinos, é onde começámos a fazer o nosso trabalho. No entanto, toda a gente julgava que íamos fazer um encontro simples, mas íamos angariando outros membros e tivemos quase metade de Tete com membros da UNAMI.
Estamos a falar de que número?
Entre duzentos e duzentos e pouco. Graças a Deus, eu tinha o controlo dos membros da UNAMI, porque era um dos braços direitos do Baltazar da Costa Tchagonga. Portanto, eu é que comunicava quanta gente entrou, qual a pessoa que estava com intenção, e combinávamos se podíamos admitir o fulano, o fulano não pode, se o fulano é traidor. eu sabia e tratava desses problemas. Era um dos braços da UNAMI. Por ser mais pequenino, na altura, as pessoas não percebiam que era uma pessoa intrometida, um intruso naquela instância. Foi assim que começámos a criar a nossa UNAMI. No Clube Africano de Tete, especificamente no fim-de-semana, que sabíamos que toda a rapaziada estava lá a passar o tempo, a tomar um refresco, vinho, fazíamos o nosso trabalho no escritório. Foi assim que até discutimos como iríamos chamar a nossa organização. E um dia, um dos nossos membros, entusiasmado, grosso, estava num dos bares, muito próximo do nosso clube - graças a Deus não estava no clube, mas no outro bar chamado Bar Melo - diz a um soldado português “Vocês têm de ir embora, estamos cansados de vocês, não vos queremos mais. A África é para nós e a Europa para vocês. Vocês não viram que o Banda já está a expulsar os outros? O que é que vocês estão a fazer? Comecem a arrumar as malas para irem embora”.
Isso significava que existia no seio da UNAMI a crença de que havia coragem suficiente para fazer dessa ameaça uma verdade?
Sim, havia essa ameaça. Penso que ele não tinha a dimensão do problema que estava a levantar. Ele estava a descarregar a raiva. Era ódio que ele tinha dos portugueses, era para fazer entender aos portugueses. O soldado não fez mais nada, telefonou logo para o quartel, e foi naquela noite que a UNAMI ficou desorganizada. Então, para salvarmos algumas pessoas, eu, pessoalmente, escondi a lista de todos os membros. Não sabia para onde levar, se me apanhassem na rua? Não fiz mais nada, fui ao clube e escondi a lata, de uns vinte litros, como ficava perto de casa, corri e fui buscar uma enxada, cavei, escondi a lata e tapei. Porque, realmente, as pessoas já estavam a ficar presas...
Hoje é possível ter acesso a um documento do género, saber quem foram os membros da UNAMI?
Tenho alguns que me ocorrem, mas o presidente tinha muitos documentos em casa dele. A primeira coisa que fizemos foi correr para a casa do presidente e contarmos o sucedido.
Mas, após a independência, não houve um processo de organização de todo o acervo, de toda esta informação que é histórica?
Não foi preciso ir-se até à independência, porque a UNAMI, a partir daquele dia, saiu de Tete e fizemos os possíveis de comunicar o presidente para sair de Tete.
Isso ainda em 1959?
Em 1959. para sair de Tete para qualquer canto. Em Tete não podia ficar mais. E ele, sem mais nem menos, pegou em algumas pessoas e entrou no carro de um dos membros e fugiu para Malawi
É por isso que se confunde e diz-se que a UNAMI nasceu em Malawi?
É por causa disso. Então, está a imaginar, 51 a 58, os principais membros morreram. Ficaram presos. Aquele que falou naquele bar, que insultou os portugueses, acabou morrendo.
Quem era?
É o Ricardo, um dos nossos membros. Era um membro de grande confiança, mas que quando bebia não tinha travões, era rancoroso. Quando as pessoas ficam presas, começam os massacres na prisão. Então, vão denunciando as pessoas e, se tivessem acesso à lista, acho que metade de Tete morria. Mas, graças a Deus, ele falou daquelas pessoas que conviviam com ele, não conhecia toda a lista, porque estava comigo. As cópias todas estavam com o presidente, e penso que este, quando estava no Malawi, se serviu daqueles documentos para reiniciar a UNAMI. Eu fiquei preso e, graças a Deus, fui o último a entrar na prisão.
Por quanto tempo?
Fiquei nove meses. Vou contar-te essa história que é muito bonita. Eu entro na prisão quando o Baltazar da Costa já estava no Malawi, com alguns membros, incluindo o secretário-geral. Nós ficámos presos, e o meu pai, pacientemente, foi falar com um dos irmãos, que era um dos conselheiros do intendente de Tete, que tinha estudado com  Salazar, um senhor chamado Gabriel Maria Nunes. Era um branco que foi expulso de Portugal, formado em Administração Ultramarina. O meu pai foi falar com ele para me soltarem. E o intendente julgou que eu era branco, por causa do nome, e mandou-me soltar, sem se aperceber que era um preto que estava lá. seis meses depois, quando fui ao gabinete do intendente, porque o meu tio disse para esperá-lo lá, ele ordenou a secretária para que eu entrasse. Quando entro no gabinete, ele pergunta: “quem és tu?”. Eu respondo sou Nunes. “És Nunes, preto? Suca daqui, como é que você é Nunes?”. E eu sai, parece que o meu tio se enganou, não era comigo. Mas, pouco tempo depois, chegou o meu tio e foi ter com ele. E ele disse: “Oh! Gabriel, é esse o Nunes de que estavas a falar?”, e ele disse “sim, é esse”. “Mas como é que vocês nasceram pretos uma parte?”. E ele disse “essa é a razão do meu pedido. tenho um irmão um pouco assim. É um mulato que casou com uma preta, e está a nascer esse grupo de gente. Este miúdo é inocente, genuíno, por isso que penso que se juntou com os pretos. Mas ele tem sido bom rapaz”. Foi assim que eu escapei do grupo que foi evacuado para Lourenço Marques. Um dos nossos melhores membros, o engenheiro Mujongo, morreu no avião, foi largado no meio do mar e desapareceu. E muitos morreram no avião, quando vinham para Lourenço Marques. Então, eu mudo de residência, estava já cansado de ouvir “tu és branco, de sangue de cor, por que te estás a juntar aos pretos?”. Então, eu disse desculpe, foi um engano, eu não sabia a quem realmente devia juntar-me (...) e ele disse “Não, tu não podes juntar-te aos pretos. tens sangue branco a correr-te nas veias, tu és branco.” E eu disse sim, eu sei. Então, libertam-me a dizerem que sou descendente deles.
Quando sai da prisão, que rumo toma?
O meu pai toma a decisão de eu viver fora da cidade de Tete. Pensei em ir ao Malawi, mas, a conselho de alguns amigos, fiquei para fazer mais algum trabalho (...). Fui para Beira e empreguei-me ao Dr. Palhinha, que era um advogado. Mas o Palhinha tinha acesso aos cadastros de qualquer pessoa e descobriu que eu era prisioneiro político e disse: “tu não podes trabalhar comigo. Não quero problemas com a PIDE, não quero nada contigo”. Dispensou-me. Fui trabalhar na Sucel, onde também tive problemas. Ali eles provocavam-me. Talvez por causa da raiva, ódio, não resisti àquela brincadeira com um dos colegas com quem trabalhava. bati-lhe. Fui preso novamente, mas, graças a Deus, não chegou aos ouvidos da PIDE, porque, no terceiro dia, o engenheiro das obras apareceu. Quando lhe contei a história, ele disse “não, esse tem direito. Você não é assimilado?”. Eu disse sou assimilado. Mostrei a minha identificação de assimilação. Portanto, tinha direito ao julgamento, antes de ir à PIDE. Foi a minha sorte. Fui absolvido e tinha razão. Mas não continuei na Sucel, fui expulso (...). Fui trabalhar na companhia Cimento de Moçambique, em Dondo. Ali trabalhei sem problemas, só que, durante esse tempo, eles perguntam se eu me apresento todas as semanas à PIDE, na Beira. Eles disseram que não tinham nenhum Nunes. E eles recomendam a minha procura na companhia dos cimentos. Então, aparece um carro idêntico ao que me levou em Tete e percebi que era um perigo. Eu estava a trabalhar nas compras, vinha da Beira. Quando desço do carro, o engenheiro dá-me um sinal para eu me dirigir à varanda, onde estava com um homem da PIDE. Olhei e disse para mim mesmo: “Aquele carro é da PIDE. Aquele senhor, tenho certeza que é da PIDE”. Meti-me na fábrica de cimento, saltei até Mandruce, e foi o último dia de emprego em Moçambique. Foi assim que viajei para Malawi. Juntei-me aos meus companheiros e encontrei as coisas já maduras (...). Já tinham muitos membros, idos da Zambézia, Niassa Tete...
A UNAMI já tinha o sonho de um Moçambique independente, tal como a própria sigla sugere. Como é que se juntam à UDENAMO e a MANU para a constituição da Frelimo?
A própria sigla, nós sempre pensamos na união e sabíamos que não era possível fazer uma independência só em Tete. Estávamos a ver a dimensão do país em si. Estávamos a pensar em procurar uma sede no centro do país. esse era o nosso sonho, porque Tete ficava deslocado do centro para uma organização de Moçambique inteiro. Aliás, tínhamos membros já muito instruídos, tínhamos engenheiros, o Mujungo era engenheiro (...). Tínhamos - parece já ouviu falar - o Cangela, que já morreu, era um dos nossos membros. Era uma pessoa instruída. As nossas reuniões, realmente, tinham visão de nação, não tinham visão local, nem provincial. Porque não víamos uma independência às metades e não víamos as possibilidades de dividirmos Moçambique. Era necessário abranger todo o Moçambique.
Isso para dizer que a UNAMI, quando tomou conhecimento de outros movimentos, houve essa iniciativa de fusão. Estava muita clara dos benefícios que essa união traria...
Muita clara. Aliás, tínhamos contactos com a UDENAMO, nós não sabíamos da existência da MANU. quem nos conta sobre a existência da MANU é o próprio presidente, que nos diz que “existe um outro partido lá em Tanganhica, e que se nos juntarmos, a nossa força será maior”. Nas nossas reuniões, falávamos sempre da união e não só. ele já tinha contacto com o presidente Mondlane. Ele acompanhou as visitas que o presidente Mondlane fez a Moçambique.
A união da UNAMI e UDENAMO aconteceu antes ou depois do encontro com o presidente Mondlane?
Depois do contacto com o presidente Mondlane, todos fomos a Tanganhica para fazermos o I Congresso. A UNAMI foi a última a chegar em Tanganhica. Primeiro, foi a UDENAMO, e nós fomos os últimos. O que fizemos quando chegámos foi a conferência de preparação do congresso.
Qual foi o seu papel para a unificação destes movimentos?
O que eu fiz foi incentivar a união. Sentia a necessidade da união. O próprio Chagona incentivou muito a união e referia-se à importância da união. Com a nossa deslocação a Tanganhica, estávamos a ver o aproximar do início da guerra. Já que acompanhávamos todas as viagens que o presidente fazia, todos os apoios que o presidente angariava com as organizações mundiais, víamos um futuro bom dirigente de Moçambique. Nós sabíamos que ele foi professor, e Nyerere chegou a dizer-nos: “Vocês vão ter um bom professor na vossa união”.
Que papel desempenhou assim que se constituiu a Frelimo?
Quando chego a Tanganhica, curiosamente, quis conhecer Mondlane, porque até os portugueses o temiam. Queria saber que tipo de preto é esse. Queria conhecê-lo e fiz os possíveis para o conhecer. A primeira vez, estávamos eu e ele, e perguntou: “quem és tu?”. Eu disse sou Inácio Nunes. De seguida questionou: “também és delegado?”. Eu disse sim. Voltou a perguntar: “De onde vens?”. E eu disse de Tete. Ele disse “Você é da UNAMI”. E eu disse “sou da UNAMI”. E disse: “Olha, eu tenho um trabalho para ti. Tens tempo para a gente falar? Respondi “Estou cá precisamente para fazer trabalho”. Então disse: “Tens uma audiência marcada. Amanhã a qualquer hora venha falar comigo”. Foi assim como comecei o meu trabalho. No dia seguinte, fui, e ele já estava à minha espera e disse: “nós precisamos de um trabalho organizativo, de organização. brevemente, vamos mandar os nossos soldados treinar. Vamos precisar de pessoas que possam dirigir soldados. Precisamos da população para receber os soldados. Tu podes voltar para Moçambique?”. Eu disse “não, estou com medo, porque acabo de sair do buraco. Sr. Dr. não posso”. E ele disse “não me chame Dr., chame-me camarada Eduardo”. E eu disse: desculpe camarada Eduardo, eu vou chamar-lhe camarada presidente”. Ele disse: “está bem, pode chamar-me camarada presidente, menos Dr.”. Foi assim que ele disse “não se põe muito à vista, porque eu quero que você volte para Moçambique, para fazer o trabalho que te vou dar”.
Então, foi por essa razão que, durante a luta de libertação nacional, teve de trabalhar clandestinamente em Tete e na Beira. Em que consistia esse trabalho?
Está a imaginar entrar na mina e não saber se a mina está segura ou não. Era esse o trabalho. O meu trabalho em Moçambique era procurar saber quantos presos existiam, quem ficou preso, de que organização pertencia. Eu fazia esse trabalho quase todos os dias. Fiz isso até 1965.
Teve alguma preparação para isso?
Tive uma preparação. Havia um amigo do presidente Mondlane, chamado Milas, era muito competente no assunto de segurança (...). Conhecia bem o trabalho da CIA. É ele que me prepara como clandestino e, graças àquela participação, escapei de muitos e muitos perigos em Moçambique.
E qual foi o sentimento que teve quando mais tarde veio a descobrir-se que Leo Milas, o homem de confiança de Mondlane, era um agente infiltrado na Frelimo?
Eu agradeci, porque, realmente, apesar de ter feito aquele trabalho, não me denunciou à CIA, não me ligou mais. E não só. depois dessa preparação, eu tive preparação militar em Kónguè e Nachingwea. É engraçado que eu fui do segundo batalhão que foi a Nachingwea. Depois dessa formação, voltei a fazer trabalho clandestino em Moçambique. Mas, nessa altura, já estava muito preparado.
Não chegou de ter uma participação militar durante a luta armada?
Tive. Estive na companhia do grupo do Silva, ia para a Zambézia, passava por Niassa. Mas esse grupo foi desfeito, por razões muito simples. o nosso comandante não teve muita cautela.
Quem era o comandante?
Silva. Não teve muita cautela. É por isso que o grupo não chegou a Zambézia. Saímos do caminho, fomos atacados e corremos... mas eu voltei a apresentar-me lá. Fui falar com o meu chefe, Sigaúque, apresentei o problema, porque mesmo nesse grupo, ia para lá trabalho clandestino.
Qual foi o seu maior contributo nesse trabalho clandestino?
Muita salvação que proporcionei; muita informação que a Frelimo teve; alguns anúncios que a Frelimo fazia eu é que trazia. Eu sabia quanta gente é que entrou na prisão, porquê(...). O grupo de Josina, quando ficou preso, antes de toda a gente saber, fui o primeiro a saber.
O grupo da Josina era também o de Armando Guebuza?
Era, sim, de Armando Guebuza. Então, a primeira pessoa que disse a Mondlane fui eu. Portanto, penso que tive um papel preponderante, porque a minha defesa era auto-individual. Não podia contar com mais ninguém (...). o que fiz foi evitar dormir em casa de alguém, preferia dormir no cemitério, a dormir em casa de alguém.
Em algum momento sofreu consequências por causa do trabalho clandestino que desenvolvia?
Quase ia ficar preso pelo chefe do posto de Zóbuè. Nesse dia estava a tirar os alunos da missão, no seminário. A PIDE descobre que tinha entrado alguém no seminário. Só não caí não mão dele porque coragem eu sempre tive. Nunca esperei que alguém me apanhasse na mão, corria. não tinha desculpa. Bastasse alguém me perguntar quem és tu? Corria, preferia morrer (...)
Como é que eram orquestrados os ataques militares em Tete?
Quando acabei de fazer os treinos, voltei para Malawi, para o trabalho de organização. Eu pertencia ao Departamento de Organização no Interior (DOI). Foi nessa altura que comecei a criar mais bases. O primeiro meu grupo foi para Chilide, que fica ao Sul do Malawi, ou seja, Norte ou Sudoeste da Zambézia, próximo da margem esquerda do rio Chire e também da margem esquerda do rio Zambeze. A escassos metros ficava Mutarara. É lá onde ficámos a fazer o trabalho. Aconteceu que o meu chefe, que era o Lemos Gouveia, saiu da base com intuito de ir procurar outro trabalho (...). No meu caso, velava pela logística, comida para soldados. O trabalho ou a função dele era de comandante-militar. Nessa viagem é preso, e o português perseguiu-nos até à base. Foi na base onde tentou matar-nos e disparou. Recuámos até à fronteira. Refugiámo-nos na casa de um membro, ficámos ali. O português perseguiu-nos, mas não morreu ninguém, porque a casa estava bem protegida e assim escapámos. Mas voltámos a fazer o ataque. Foi assim que atacámos o posto de Inhagoma e o posto de Mutarara. Parámos porque não tínhamos material suficiente. Estávamos à espera de reforço. E o reforço, pelo caminho, ficou preso no Malawi, pelas autoridades malawianas. Fui um homem de sorte na vida...
Em Niassa, participou num combate onde quase foi alvejado. Foi também numa situação de sorte...
Sim, foi essa brincadeira de sorte. Isso foi contra o comandante Silva. Naquele ataque, fui o único que ficou ferido. E só me apercebi quando quis levantar, e senti o meu braço pesado. Regressei e fui tratado em Dar-es-salaam. Não foi nada grave.
Em algum momento, sacrificou a família pela causa nacional?
Uma das pessoas que foi sacrificada é o meu pai. O meu pai sempre ficou do meu lado, sempre me protegeu. O meu pai sempre me aconselhou a fazer algo de género. A PIDE apercebeu-se do assunto e o meu pai foi preso por um tempo, massacrado. Quando eles viram que ele já estava débil, tiraram-no. Ele veio morrer fora. Foi o massacre que o matou.
Assim que se alcançou a independência, qual foi o papel que desempenhou no Moçambique independente?
Eu, no Moçambique independente, fui o primeiro caixeiro das lojas do povo. Ou melhor, fui o primeiro director da Fundação das Lojas do Povo, em Moçambique
Isso, primeiro, em Cabo Delgado?
Em Cabo Delgado, nós não chamávamos lojas do povo. Era o Departamento de Produção e Comércio das zonas libertadas. Fiz parte da primeira equipa enviada para Moçambique para salvar o comércio que estava nas mãos de Kavandame. Ele estava a fazer o comércio como algo individual. Quando ela chega à fase de fugir da Frelimo, deixou o comércio de qualquer maneira. Foi o meu grupo que foi salvar. Nessa altura, o meu chefe era Joaquim de Carvalho. Fomos salvar a nudez da população de Cabo Delgado. Fizemos esse trabalho até à altura da independência, por isso, a Frelimo indigitou-me para salvar a população que estava a ser abandonada pelos comerciantes nos subúrbios. Não havia comida em Lourenço Marques. E a primeira pessoa que vendeu a comida em cima do camião fui eu, nos subúrbios de Lourenço Marques.
Qual foi a filosofia que norteou a criação das lojas do povo?
Foi da transformação das zonas libertadas...
Como estava estruturada a cadeia de produção?
Pertencíamos ao Ministério da Coordenação Económica. Com o Ministério, fizemos o programa sobre como fazermos o trabalho no subúrbio. Chegámos a criar lojas por cada zona. Em cada loja abandonada, colocávamos alguém para vender à população, por isso, todo o subúrbio tinha loja e tínhamos um preço especial, porque a população estava a sair de uma guerra, de uma desgraça...
Como é que se explica que, mesmo com a existência das lojas de povo, existisse ainda fome e carência de produtos e até houvesse situações em que os produtos pereciam por uma questão de gestão política dos mesmos, uma vez que dependiam de uma decisão do governo central?
O problema daquela altura é que os portugueses continuavam a sabotar a nossa economia. E também não tínhamos capacidade humana para cobrir todos os cantos necessários. Tentávamos fazer o trabalho mais honesto (...) chegámos a um período em que oportunistas roubavam as coisas...
E como é que reagiam às ofensivas de Samora Machel, sobretudo quando fazia as visitas que deixavam em pânico as pessoas que estavam à frente das instituições do Estado, no caso concreto as lojas do povo? Várias vezes lançou críticas sobre a forma como eram geridos os recursos.
Eu fui elogiado pelo presidente Samora, não tive grandes problemas com ele. E algumas críticas que ele fazia eu é que denunciava. Eu sabia onde é que havia problemas e onde não havia. Mas, naquela ofensiva organizacional, eu já não estava nas lojas do povo. Já tinha sido transferido para Mademo, para ir socorrer uma situação de alguns roubos que se faziam, ligados à sobrefacturação de madeira que ia para exterior. Quando o camarada Mariano é indigitado para Mademo, eu fui com ele. Eu é que era director da Mademo da cidade de Maputo. Naquela altura das lojas do povo, eu é que estava a dar as denúncias todas. Razão pela qual algumas coisas ficaram minimizadas
Por que razão, volvidos alguns anos, se notou que as lojas do povo não estavam a responder àquilo que eram os objectivos para os quais haviam sido criadas? A fome continuava a afectar a maior parte da população. Hoje sente que houve um erro na criação das lojas do povo?
Não foi bem um erro. Talvez foi falta de preparação (...). Não organizámos quadros para gerir as lojas do povo. Aquilo ficou grande num pequeno espaço de tempo e nós ficamos ultrapassados, de forma a que não conseguimos controlar. Os nossos responsáveis das lojas do povo esqueceram que deviam abastecer. Tiraram e tiraram até ficar vazio. Razão pela qual Samora decidiu banir, porque, realmente, nós não conseguimos responder à grandeza e velocidade do povo. Ficámos ultrapassados...
A fome continua a ser uma realidade hoje. Olhando para as estatísticas de 2002 a esta parte, mais do que melhorar, piorou. Como é que acha que deve ser preparada a resposta para este mal que afecta a maior parte da população, tendo esta experiência das lojas do povo e olhando para aquilo que foram os fracassos dessa experiência?
Continua a ser a principal riqueza o homem. Não estamos responder ao desenvolvimento, estamos a ser ultrapassados pela velocidade do desenvolvimento. É necessário que voltemos à base e preparemo-nos para atacarmos com muita força a fome que existe, até porque a palavra de ordem hoje é acabar com a pobreza. Temos mais comida, mas temos mais fome em termos da organização, não porque falte dinheiro e comida. Há muita comida. Falta preparação para atacarmos aquilo que já temos. Precisamos de nos preparar para atacarmos a fome, e é fácil fazer isso, se todos voltarmos a ver o que é necessário fazer para acabar com a fome.
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