Tuesday, September 4, 2012

Moçambique, terra queimada (xiii)

Escrito por Jorge Pereira Jardim


Juízo Final
Escrito aquilo que vivi e testemunhei, apoiado em documentos e citações irrefutáveis, poderia talvez dispensar-me de o condensar num juízo final.

Só o faço por entender que possa estar em melhor posição de relacionar factos e interpretar atitudes do que o observador eventualmente menos atento ou, por causas diversas, menos sensível à informação prestada.

Procurarei ser sucinto e claro.

Não ignoro que agravo, ainda mais, os riscos da minha posição pessoal.

Espero-o serenamente. Nada me pode deter quando tenho imperioso dever de consciência a cumprir.

Estratégia soviética
A estratégia soviética visava, prioritariamente os dois grandes territórios portugueses de África (Angola e Moçambique), cuja resistência se opunha ao controle das rotas do Índico e do Atlântico e ao assalto aos recursos da África Austral.

Pouco preocupava o envolvimento americano nessa zona. Sabiam que o neutralizariam na altura própria.

Alarmava-os a crescente influência chinesa que se consolidaria, a partir de 1975 como também não o ignoravam os serviços de informações ocidentais. Os soviéticos, actuando sobre minorias destinadas a dominar os movimentos nacionalistas, não podiam deixar que se alcançasse o limite de confrontação directa com os chineses. Conheciam a sua capacidade de retaliação se a esse extremo se chegasse. Tinham de antecipar-se.

O encaminhamento das guerras nos territórios portugueses não lhes permitia obter uma solução urgente. Por isso se impunha actuar em Portugal em termos de conduzir à queda desses bastiões africanos.

Essa estratégia foi entendida pelos defensores que, no entanto, se deixaram iludir por excessivas preocupações quanto à infiltração chinesa e nela concentraram atenções. Isso serviu os propósitos soviéticos.

Por outro lado, muitos dos responsáveis não entenderam que só a efectiva independência dos territórios ultramarinos, enquanto era tempo de o fazer em condições de preservar o equilíbrio da sua vida, poderia abortar a manobra comunista.

Portugal, liberto das guerras que enfrentava, fortalecer-se-ia em termos de não ser vulnerável à subversão. Engrandecia-se como condutor de uma vasta "Comunidade Lusíada" em que se associavam países de equilibrada tendência ideológica e beneficiários de uma explosão de progresso apoiada pelas forças ocidentais.

A agilidade de uns e as hesitações de outros conduziram ao êxito soviético.

Emboscada em Abril
Na imagem: Otelo Saraiva de Carvalho e Vasco Gonçalves

O assalto político em Portugal só era viável através de um golpe militar. A avaliação da capacidade dos partidos, feita em sucessivas campanhas eleitorais, havia-o demonstrado.

Para isso, era indispensável motivar os quadros, cuja agitação se iniciara explorando razões de ordem profissional. A carência de politização dos militares, mesmo que infiltrados pelos oficiais milicianos doutrinados, não consentia desencadear qualquer golpe sob a bandeira de uma ideologia revolucionária. Isso ficara demonstrado nas reuniões de oficiais integrados no "Movimento dos Capitães".

Com o fito de a todos mobilizar, arrastando os mais influentes e que eram os menos sensíveis à doutrinação subversiva, havia que provocar uma afronta à sua honra militar e fazê-los crer que se transformavam, perante a nação, em culpados de faltas que não lhes pertenciam.

Por isso se provocaram os incidentes da cidade da Beira, em Janeiro de 1973.

Importa recordar que o crime atribuído à "Frelimo" para agitar a população, ainda hoje é duvidoso que tenha sido por esse movimento cometido. Lembro que o Dr. Kaunda me assegurou que tal procedimento não se enquadrava na actuação da "Frelimo", mas que admitiu poder ter sido realizado por algum grupo actuando à margem das ordens superiores.

O que não oferece dúvidas é que o frio assassinato duma mulher europeia foi executado em termos revoltantes e em zona onde pudesse causar a reacção civil, afrontosa para os militares, que os "democratas" comunistas fizeram desencadear.

O Gen. Costa Gomes surge em Moçambique, e concretamente na Beira, e exactamente na altura dos incidentes. Numa viagem programada antecipadamente.

A viva emoção causada nos oficiais levou-os às atitudes drásticas que relatei, com a complacência dos comandos superiores em cujo vértice o Gen. Costa Gomes se encontrava. A partir daí o "Movimento dos Capitães" amplia-se e motiva-se para derrubar o regime que responsabilizava pelos insultos recebidos. Nascera o "Movimento das Forças Armadas".

A minha intervenção tinha evitado que a agitação popular alcançasse as dimensões planeadas, mas não impediu que fosse suficiente para se realizarem esses objectivos.

O Gen. Costa Gomes regressou de Moçambique dispondo de todos os elementos necessários: a revoltada motivação dos militares, a excitada disposição das populações e os contactos locais a utilizar no futuro.

Sabia, porque o levara consigo, o que representaria como estandarte aglutinador, o livro do Gen. Spínola. Servido por um nome prestigioso enquadrava-se, perfeitamente, na exploração das condições criadas. Não podia ter dúvidas sobre os resultados que o seu lançamento causaria.

Apressa-se, então, o Gen. Costa Gomes a dar ao governo um parecer tranquilizador e procura, mesmo, convencer o Doutor Marcello Caetano de ser indispensável a sua permanência no poder.

Como fruto desta hábil manobra surgiu uma revolução a que ninguém se opôs e em que os militares apresentavam uma frente unida.

O "Programa do MFA", cuja elaboração se confia ao Maj. Melo Antunes, é redigido em termos de congregar as vontades que ainda se encontrassem dispersas, de obter a adesão de todas as correntes políticas e, mesmo, a contemporização das camadas conservadoras da sociedade portuguesa.

O "Programa" fora, porém, habilmente redigido em termos de vir a consentir leituras e interpretações diversas daquelas que inicialmente aparentava.

Uma "descolonização original"
Na imagem: Junta de Salvação Nacional (da esq. para a dir.: Rosa Coutinho, Pinheiro de Azevedo, Costa Gomes, António de Spínola, Jaime Silvério Marques, Carlos Galvão de Melo

Com a vitória da revolução, mantêm-se o Gen. Spínola como figura adormecedora das preocupações internas ou externas que pudessem esboçar-se. No elenco da "Junta de Salvação Nacional" participam outros nomes que a todos justificam confiança.

Havia, porém, que iniciar a tarefa descolonizadora. Para isso se fizera a revolução.

Não era fácil conduzi-la para os propósitos da estratégiaa soviética sobre a presidência do Gen. Spínola apesar do domínio influente que sobre ele exercia o Gen. Costa Gomes.

Tudo teve de ser feito com método e de acordo com os planos delineados.

O Gen. Costa Gomes volta a deslocar-se a Moçambique. Dali traz o Dr. Almeida Santos para Ministro da Coordenação Interterritorial, dali envia emissários a Samora Machel e ali reforça a posição dos "democratas". Servindo-se do Dr. Almeida Santos impede que o Gen. Silvino Silvério Marques assuma as funções de governador-geral e comandante-chefe em Moçambique. Em seu lugar, instaura o governo provisório do Dr. Soares de Melo, escolhido pelas sua docilidade obediente e incapacidade governativa.

Tendo confirmado a minha influência e as minhas ligações moçambicanas, consegue reter-me em Lisboa. Com isso, também o Gen. Costa Gomes impede os meus contactos com o Dr. Banda e o Dr. kaunda (evitando a possibilidade de negociações imediatas com a "Frelimo"), denunciando-se ao documentar por escrito o seu propósito de arredar a Zâmbia e o Malawi da acção mediadora que tinham oferecido. Quando se inteira da firmeza daqueles paaíses africanos em meu favor, recorre à cilada para tentar prender-me.

Para minar resistências deixa Moçambique resvalar para o caos, a anarquia e a bancarrota. Agrava-se a instabilidade interna fomentando a incerteza das soluções e promovendo a confrontação tribal.

Envolve o Dr. Mário Soares em negociações destinadas ao insucesso, mas que fariam recair sobre os socialistas, ávidos de alcançarem prestígio político, as maiores responsabilidades aparentes da descolonização.

Na imagem: da esq. para a dir.: Agostinho Neto, o Almirante Vermelho (Rosa Coutinho) e Jonas Savimbi

Quando me escapo às suas malhas, o Gen. Costa Gomes lança campanha de descrédito calunioso que iria até à invenção de acções subversivas, ataques de mercenários e propósitos de racismo colonialista. Impede Otelo Saraiva de Carvalho de se encontrar comigo para se esclarecer sobre os problemas moçambicanos e, mais tarde, haveria de repetir a manobra com Rosa Coutinho.

Sucedem-se os mandatos de captura, o congelamento das contas bancárias e o anúncio de rigoroso inquérito aos meus actos. Multiplicam-se as pressões diplomáticas e chega-se ao corte de relações com o Malawi.

Neste processo intimidador, o Gen. Costa Gomes transmitiu a ordem para as tropas me abaterem se cruzasse a fronteira de Moçambique.

Perante nada recuava quando era necessário retardar a solução do caso descolonizador moçambicano.

Consegue-o, levando as unidades militares ali presentes ao desespero e frustração.

Só nessa altura surge o Maj. Melo Antunes como o negociador que tudo salvaria. Ultrapassa o Dr. Mário Soares e o Dr. Almeida Santos (parceiros já de secundária ordem) depois destes terem desempenhado o papel que neste complexo jogo lhes estava atribuído.

O Maj. Melo Antunes não negoceia. Confraterniza.

Entende-se com os extremistas da "Frelimo" e com eles concerta as fórmulas que correspondiam aos comuns propósitos. Também os nacionalistas daquele movimento haviam sido ultrapassados.
Perante a resistência do Gen. Spínola utiliza-se o argumento de que as tropas em Moçambique não estão dispostas a sustentar posições que ainda ali mantinham. O Gen. Costa Gomes, como chefe do Estado Maior General, confirma-lhe que assim é. Admite-se o perigo da capitulação militar.

O velho soldado, traído, acaba por transigir e o acordo "Samora Machel-Melo Antunes" é assinado em Lusaka, em 7 de Setembro de 1974.

As Forças Armadas ficariam, para sempre, como "bode expiatório" desse compromisso vergonhoso. Ninguém explica a verdade da situação e a forma como os militares haviam sido minados por longos meses de propositado retardamento das soluções e premeditada deterioração das condições de Moçambique.

Com o "Movimento Moçambique Livre", para que foi arrastada uma população que planeadamente se conduziu a extremos de desespero, estão encontradas todas as justificações para se acelerar a saída das camadas humanas mais válidas de que Moçambique dispunha. Dessa tarefa se encarrega o Com. Vítor Crespo, nomeado Alto Comissário. Sem preparação para cargo tão responsabilizante, tinha determinação política para levar a cabo essa missão.

A resignação do Gen. Spínola, que tarde descobriu a traição enleadora do Gen. Costa Gomes, deixa o caminho facilitado à "descolonização original" que se aceleraria com o seu afastamento (Setembro de 1974) e com o exílio, agravado pela prisão de muitos oficiais desiludidos (Março de 1975).

Na imagem: os comunistas Vasco Gonçalves e Costa Gomes

Com Vasco Gonçalves no governo (onde Costa Gomes o manteria até a reacção popular forçar, meses depois, o seu afastamento) aniquilam-se as estruturas portuguesas em termos de nenhum reflexo poderem ter nos territórios ultramarinos em vias de descolonização. O vazio estava criado para que a estratégia soviética pudesse alcançar os objectivos fixados.

Foi Vasco Gonçalves o instrumento da entrega de Moçambique à falsa "Frelimo" que os extremistas controlavam.

Agravava-se, em termos incomportáveis, a situação dos portugueses e dos moçambicanos que ali viviam e conviviam. Por isso foram saindo às dezenas de milhar, como se pretendia que acontecesse. Ali ficaram milhões escravizados a uma democracia popular.

O Gen. Costa Gomes havia realizado a sua missão.

Como veio a realizar em Angola, onde tudo se preparou para ser possível a esmagadora intervenção soviética.

Para a culminar haveria de tomar a iniciativa e a responsabilidade de reconhecer o regime do "MPLA" (Fevereiro de 1976) aproveitando a ausência do Primeiro-Ministro, do chefe do Estado Maior da Armada, do chefe do Estado Maior da Força Aérea, do ministro da Administração Interna e do ministro da Cultura.

Nessa capitulação desnecessária (a que a ameaçada Zâmbia resistiu) o Gen. Costa Gomes teve o apoio aberto e previsível do Maj. Melo Antunes. O binómio descolonizador ficou, só por isso, claramente identificado.

Melo Antunes atreveu-se a declarar que essa decisão merecera a inteira solidariedade do Conselho da Revolução e do MFA.

Valeu-lhe isso o desmentido público e corajoso do Gen. Morais e Silva em termos que não deixam dúvidas sobre a manobra do Maj. Melo Antunes que se atrevera a acrescentar: "estamos longe de considerar que tenhamos reconhecido um governo pró-soviético"!

Só um comunista poderia afirmar essa convicção.

Com as tropas cubanas e os tanques russos a ocuparem Angola!