CAPITULO X
CONSEQUÊNCIAS Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos. - Charles Dickens, A Tale of Two Cities O senhor Embaixador Reino passou uma boa parte do nosso voo entre Dar es Salam e Zurique a tentar fazer-me uma lavagem ao cérebro, embora com uma grande subtileza diplomática, para que mantivesse calado a respeito das nossas experiências recentes e horrendas. Pediu-me para me recordar que o futuro de Portugal jazia nas suas ex-colónias, que precisava de pensar nos meus filhos e netos, e que estes podiam muito bem desejar regressar a essas mesmas ex-colónias. Quanto mais falava, mais eu ficava a ferver por dentro. Achei que era uma tristeza ver aquele homem, uma pessoa educada e viajada, a advogar o comportamento cobarde do Portugal pós-colonial. Esteve em curso uma conspiração de silêncio pós-colonial, do tipo da mudez induzida pela vergonha que era vulgar entre as vítimas de violação até há muito pouco tempo. Ninguém tinha a coragem de se opor, de dizer a verdade e de enfrentar Lisboa. A minha família, eu e toda uma geração de moçambicanos, negros e brancos, havíamos sido sujeitos a uma sublevação de que muitos não iriam ser capazes de recuperar por ter acontecido demasiado tarde nas suas vidas. Fui informado dos planos para sermos alojados na residência do senhor Embaixador, para aí passarmos a noite. A sua esposa, a senhora Embaixatriz mandaria preparar uma refeição tradicional portuguesa em nossa honra e poderíamos recuperar o fôlego antes de voarmos para Lisboa no dia seguinte. Aterrámos em Zurique ao fim da tarde e fomos levados para o salão dos VIP, onde o senhor Embaixador Reino fez diversos telefonemas. Encontrava-me sentado suficientemente perto para o poder ouvir. Falou com a Presidência da República, com o gabinete do primeiro--ministro e com o Ministério dos Negócios Estrangeiros. O Embaixador Reino assegurou a todos eles que tínhamos chegado em segurança, mas admitiu que "temos um problema." O senhor Dr. Reino, um homem agradável que mais tarde foi Embaixador de Portugal em Espanha e que acabei por conhecer bastante bem, limitava-se a seguir a linha diplomática oficial e eu compreendia esse facto. Não tenho a menor ideia sobre o que Lisboa terá aconselhado o nosso Embaixador Reino a fazer, mas a verdade é que ele não voltou a tocar no assunto. Eu, pela minha parte, não tinha palavras para desperdiçar. O meu irmão mais novo, José Augusto, fora a Genebra ao nosso encontro e informou-nos pormenorizadamente a respeito dos acontecimentos durante os nossos cinco meses de encarceramento, bem como sobre o que poderíamos esperar em Lisboa. Ele e a família tinham reunido extensos livros de recortes cheios de artigos de jornais, apontamentos, relatórios, cartas, postais, bem como alguma outra documentação não pública relacionada com a nossa provação e que tenho em meu poder. O meu irmão aparecera na televisão portuguesa para nos defender das acusações de terrorismo, tráfico de armas, actividades de resistência e tudo o mais que as imaginações férteis e fétidas dos nossos inimigos tinham conseguido sonhar. Ficámos cada vez mais desanimados ante as revelações do José Augusto. Ele, o Tim-Tim o Caju e o Rui seguiam num carro à nossa frente; o Embaixador e eu num segundo carro enquanto éramos levados para a residência diplomática para lá passarmos a noite. De súbito o carro da frente parou e vi o meu filho deitado no chão gelado de uma rua de Genebra. Todos nós continuávamos a usar roupas de Verão. O meu filho parecia ter sofrido qualquer espécie de indisposição no carro, perdera a consciência e fora por isso que o motorista parara. Tim-Tim não reagiu quando tentámos reanimá-lo, pelo que nos precipitámos para um hospital, onde foi admitido em grave estado de choque. A sua condição estabilizou passadas algumas horas, e teve alta na manhã seguinte, a tempo de voar connosco para Lisboa. Que se passara? José Augusto começara por dizer ao meu filho e aos outros que se encontravam no carro que uma das principais razões - numa curiosa sintonia com o caso Potgieter - porque tínhamos sido apanhados, raptados, torturados e metidos na cadeia durante cinco meses fora por causa do acto traiçoeiro de um certo Mário Ferro, um jornalista a trabalhar em Maputo. O facto deixou-me sem palavras. Ferro andara na escola com o meu filho e era um velho amigo da família que em 1975 escolhera ficar para trás em Moçambique, na altura em que a maior parte dos brancos se fora embora. Ferro, tal como foi publicado nos meios de comunicação em Portugal, tornara-se num aprendiz de agente da SNASP. Fora nessa capacidade que visitara Portugal em Junho de 1984, onde contactara com a minha irmã, Maria José, a mãe do Caju, e vira outros membros da família. Muito convenientemente, encontrou Tim-Tim e Caju "por acaso", quando estes iam a caminho de Madrid e da Tanzânia, para se juntarem a mim na nossa nova operação de caça. Como éramos ex-moçambicanos, pareceu natural que ficasse satisfeito por encontrar pessoas de Moçambique que ele conhecia havia anos. Ferro ficou até tarde depois do jantar em casa da Maria José e de repente perguntou se a família o podia receber para a noite. A minha ex-esposa ofereceu-lhe com satisfação o quarto do nosso filho, que já partira para a Tanzânia. Como é natural, Ferro ouviu tudo a respeito dos planos em nome da Hunters África, que iríamos pôr em prática nesse país. Não tínhamos nada a esconder. Pois bem, para justificar a visita perante os seus amos espiões, com o zelo de um recém-convertido ansioso por ser aceite, esse tal Ferro elaborou um relatório secreto para o Presidente Samora Machel, datado de 24 de Junho de 1984. Houve uma fuga de informações no gabinete de Machel e uma cópia desse relatório acabou por ser enviada - por um moçambicano negro desiludido que tinha acesso aos segredos de Estado e cuja identidade conheço -, à minha família em Lisboa durante o nosso cativeiro. O relatório menciona um certo número de pessoas consideradas como perigosas para Moçambique tendo ido ao ponto de sujar o nome da família Serras Pires. Trata-se de um relatório repleto de mentiras e imprecisões, que afirma, por exemplo, que a operação de caça na Tanzânia pertencia a um italiano. Diz que as concessões de caça da empresa se iriam situar perto da fronteira entre Moçambique e a Tanzânia, enquanto as mesmas se encontravam a mais de 1600 quilómetros dessa fronteira. Para além disso, acusa-nos, ao meu filho e a mim, de pertencermos a bandos armados, o que era ridículo. Para além disso, o relatório declara que a minha família estava "enraizada na era colonial na região de Guro", como se isso fosse um crime contra a humanidade. É um tanto fértil de imaginação em particular vindo de um ex-comando do Exército Português que foi empregado de Jorge Jardim, o homem de Salazar em Moçambique, e aceitava alegremente o salário mensal das suas mãos. Até o facto de o meu filho ter obtido uma licença de piloto nos Estados Unidos é exibido como prova de subversão no conto de fadas inventado por este aprendiz da SNASP. O relatório também declara que a nossa família tinha "fugido" de Moçambique. Ferro excede-se a si mesmo quando menciona a minha amizade com "o antigo presidente da França, Valéry Giscard D'Es-taing", numa linguagem que sugere algo de sinistro. Para concluir esse exercício de sabotagem, que quase nos matou a todos, Ferro encerra o relatório com a sugestão de que a nossa presença nas concessões de caça da Tanzânia se destinava a "agitar os moçambicanos que vivem na Tanzânia a fim de os recrutar". Foi com estes factos a rodopiar na minha cabeça que o senhor embaixador Reino nos acompanhou até ao Aeroporto de Genebra e durante todo o voo para Lisboa. Lisboa foi outra história. No aeroporto havia uma enorme multidão de membros da família, amigos, funcionários do Estado, jornalistas e equipas de televisão à nossa espera. Contei os factos, nus e crus, logo na primeira de várias entrevistas com a imprensa. As minhas palavras a respeito do rapto, tortura e grosseiros maus tratos encheram os cabeçalhos de vários jornais no dia seguinte, sobrepondo-se aos relatórios altamente prejudiciais que haviam circulado a nosso respeito durante meses, não apenas em Portugal mas também noutros pontos da Europa, nos Estados Unidos e também, como é evidente, em países africanos. Revelei o que eu próprio acabara de saber: que no princípio de Setembro de 1984 Caju conseguira enviar clandestinamente um bilhete para a mãe, em Lisboa, com a ajuda de um guarda da Prisão de Machava, em Maputo, dizendo que havíamos sido raptados e levados para Moçambique. Para aumentar ainda mais o drama, o bilhete fora escrito numa carta com o timbre da SNASP! Para além disso, o sobrescrito exibia o carimbo dos correios de Maputo. Lisboa fora imediatamente informada pela minha irmã de que nos encontrávamos cativos em Moçambique, mas as autoridades nada fizeram. A minha família foi deixada mergulhada na angústia enquanto os seus membros, e a comunidade internacional da caça, se esforçavam pela nossa libertação antes que morrêssemos. O Governo português fora impelido à acção graças apenas à constante tenacidade de estrangeiros, a começar por John e Vicki Ray, de Dálias, no Texas, que foram abandonados em pleno sa-fari quando os membros da minha família tinham sido raptados na concessão de Ugalla. Os Ray voaram para Lisboa e começaram a abanar o barco antes de regressarem à América para prosseguirem com a sua campanha. O meu filho conseguira entregar a Vicki o número do telefone da mãe em Lisboa quando já estava a ser metido no Land Rover. Vicki foi a estrela por ter sido ela quem alertou o mundo a respeito do nosso rapto. Gordon Cundhill, da Hunters África, juntou-se à batalha. Voou para Lisboa para ver a minha família e estabeleceu uma ligação pessoal e contínua com pessoas altamente influentes de vários países, a fim de pôr as coisas a mexer em Portugal, na Tanzânia e em Moçambique para conseguir a nossa libertação. Foi uma fonte de tremendo conforto para toda a minha família. A fraternidade internacional da caça também participou na luta. Numa convenção mundial em Madrid, em Outubro de 1984, os caçadores de todos os continentes assinaram uma petição em massa e depois, num esforço muito publicitado, enviaram-na a Nyerere, na Tanzânia, proclamando o nosso bom nome de há muito e exigindo que nos pusessem em liberdade. Houve um par de indivíduos que se recusou a assinar... e estou a recordar-me, muito em particular, do espanhol de olhos azuis com uma habilidade incomparável para se auto-engrandecer a fim de mascarar a sua profunda sensação de insegurança. A todos os outros caçadores que se mantiveram a nosso lado e nunca desistiram, manifestamos o nosso apreço até ao fim por tudo o que fizeram colectiva e individualmente para tentarem ajudar--nos. Foi uma ajuda que contou... e contou muito. Um dos manipuladores de segunda linha responsáveis pela divulgação de relatos durante o nossos cativeiro foi um certo Alves Gomes, outros dos que ficaram para trás em 1975. Trabalhava para a Agência de Informação Moçambicana, a AIM. Gomes teve a audácia de me receber como se eu fosse um velho amigo quando regressei à Beira em 1995, depois de uma ausência de 20 e tal anos muito difíceis. É um dos boys da Frelimo e os seus relatórios vieram à superfície nos jornais The Observer e The Guardian, em Inglaterra, por exemplo, e numa grande variedade de publicações em todo o mundo. Em Janeiro de 1985 fiquei surpreendido ao ver alusões com-pletamente erróneas a nosso respeito no África Notes, uma publicação do Centro para os Estudos Estratégicos e Internacionais, da Universidade de Georgetown, em Washington DC, uma instituição que se supõe ser um dos mais prestigiados centros dedicados aos assuntos internacionais no mundo Ocidental. Outros jornais chegaram mesmo a inventar histórias sobre a minha suposta prisão no Zaire por tráfico de armas, antes de ter sido "preso" em Arusha. Éramos suspeitos de estarmos ligados ao envio clandestino de armas para a Renamo, a partir da Arábia Saudita e Omã, via Somália e Comores, onde teriam sido embarcadas para o Norte de Moçambique, e daí a suposta ligação ao mercenário francês Bob Denard. Estas alegações surgiram na altura em que a África do Sul estava, de facto, a fornecer assistência militar clandestina à Renamo, tal como acabou por ser revelado. Graças a uma coincidência funesta, Theo Potgieter estava muito atarefado a espalhar boatos a nosso respeito no interior da Tanzânia para os seus próprios fins nefastos. Tudo isto resultou numa mistura letal de associação fortuita de acontecimentos e insinuações malévolas que nos arrastaram para uma provação de cinco meses. Hoje, ainda há indivíduos que acreditam que fui sempre culpado das acusações que nos fizeram... e alguns desses indivíduos têm assento no Parlamento português. O meu filho também foi torturado em Moçambique durante acusações falsas e repetidas de que fizera parte do ataque de Agosto de 1976 a Nyadzonya, em Moçambique, pêlos Selous Scouts, durante o qual morreram mais de mil guerrilheiros. Nos dias imediatamente após a nossa libertação iria tomar conhecimento de cada vez mais pormenores chocantes relacionados com o nosso rapto e tortura. O telefone nunca parou de tocar durante vários dias, enquanto eu folheava o volumoso maço de documentação relacionada com a nossa provação. Anne Aymone, a esposa de Giscard d'Estaing, telefonou-me para me expressar o seu alívio por estarmos vivos e fora da Tanzânia. Fora uma das celebridades que defendera a nossa causa e a sombra do seu marido pairara sobre os nossos interrogatórios. A esposa do presidente Eanes também telefonou, tal como fizeram muitas personalidades proeminentes de vários países logo que a notícia se espalhou. Devíamos as nossas vidas a esforço internacional e concertado que acabou por também envolver a Liga da Cruz Vermelha e as sociedades do Crescente Vermelho, a Internacional Hunting and Game Conservation, com sede em Paris, bem como a Amnistia Internacional. Para além disso, os serviços secretos de vários países também foram arrastados para o escândalo. O gabinete do rei de Espanha demonstrou um interesse directo e activo no nosso destino graças à intervenção da família Aznar, por intermédio da mãe, Loli, marquesa de Lamiaco, a quem este livro é dedicado. Fomos formalmente convidados para um encontro com o presidente de Portugal e aceitámos, porque o deputado José Gama me assegurou que o presidente interviera, fizera tudo o que pudera e recebera garantias da nossa absoluta inocência em face do falso communiqué tanzaniano divulgado quando da nossa libertação. José Gama apresentou-nos, os quatro, ao presidente Eanes. No fim, uma típica audiência presidencial de dez minutos, no máximo, transformou-se em hora e meia de conversa sem a presença de outros funcionários. Recusei um encontro com o senhor Dr. Mário Soares, o primeiro-ministro português, autor da infame expressão "descolonização exemplar", e não quis estar na sua companhia nem sequer por cinco segundos. Não tinha qualquer desejo de lhe apertar a mão depois da nossa viagem ao inferno. Agora, a vida era demasiado preciosa para ser desperdiçada em formalidades com alguém que não fizera absolutamente nada por nós. Ele e os seus associados socialistas/comunistas tinham pura e simplesmente entregue as colónias portuguesas aos revolucionários comunistas, destruindo muitas vidas durante esse processo e causando prejuízos a longo prazo a milhões de pessoas simples, na sua maioria negras, que foram abandonadas ao seu destino. Também me recusei a ver o ministro dos Negócios Estrangeiros porque também ele nada fizera e sujeitara a minha família e amigos a meses da mais negra das angústias. Regressei à sede da Hunters África em Midland, no Texas, durante algum tempo. Clayton Williams, o proprietário, mostrou-se ansioso por ver publicado um livro que narrasse as minhas experiências. Contudo, não era o momento apropriado para um tal empreendimento. A raiva era ainda demasiado forte para me permitir ver as coisas numa perspectiva correcta. De qualquer modo, só alguém que conhecesse a África por dentro, que há muito estivesse interessado sobre as políticas subsarianas e compreendesse as complexidades da minha vida estaria em condições de enfrentar uma tal tarefa. Teria de ser alguém que "sentisse" o assunto e em quem eu pudesse confiar, porque seria necessário levar a cabo muitas conversas off-the-record. A vida é feita de interlúdios. Em Outubro de 1986 já estava de volta a Espanha havia algum tempo, e encontrava-me de facto em Barcelona quando ouvi a notícia de que Samora Machel, o presidente de Moçambique, morrera na queda de um avião perto da fronteira entre Moçambique e a África do Sul. A queda do aparelho nunca foi devidamente esclarecida e as alegações a respeito de sabotagem pelos sul-africanos, de uma tripulação russa bêbeda e de misteriosos faróis programados para desviar o aparelho do seu curso e fazê-lo cair ainda continuam a surgir à superfície. Agora surgiu uma nova teoria, que veio nada mais, nada menos, do que da própria viúva de Machel, Graça, que em 1999 falou de certos elementos dentro da Frelimo suspeitos de terem planeado a morte do marido. Bem, bem... Decidi voar para a África do Sul. Não vira a minha irmã Lucinda e a sua família desde 1979, por ocasião do funeral da minha mãe, em Lisboa. O nascimento iminente de uma sobrinha--neta era também uma boa razão para nos reunirmos. Passara pela África do Sul em muitas ocasiões e fizera visitas fugidias ao país em anos passados, mas já se passara uma boa década desde que lá estivera pela última vez. Enquanto estive na África do Sul surgiu-me uma nova oportunidade quando me envolvi no lançamento de uma propriedade destinada à caça no Estado Livre de Orange, a zona central do país. Viajei frequentemente entre a Espanha e a África do Sul por causa dessa operação e consegui contratos com uma muito razoável lista de clientes da Europa. O meu filho e o Rui Monteiro também participaram na operação, que envolvia caçadas em ranchos de outras partes da África do Sul, desde a fronteira com o Botswana, a oeste, até ao Zimbabwe, ao norte, e desde o Natal, no sudeste, até à província do Cabo, a leste. Em anos tão recentes, como a década de 1960. A África do Sul não teria sido considerada como um destino de caça pêlos desportistas internacionais. Hoje, graças a uma campanha sustentada e cientificamente apoiada para reclamar terras aos campos de milho e ao gado, para reintroduzir e reproduzir as espécies indígenas da zona, a África do Sul pode gabar-se de possuir as propriedades destinadas à caça grossa melhor geridas em todo o Continente africano, e atrai mais caçadores anualmente do que qualquer outro país africano. Depois dos mundos sem vedações, de lugares como Moçambique, Angola, Rodésia, República Centro Africana, Sudão e Zaire, por exemplo, acabámos por concluir que as vedações dos ranchos de caça não nos agradavam. Havia um certo elemento de "enlatado" em algumas caçadas, o que nos perturbava. Por isso, e também por uma variedade de outras razões, decidi regressar a Espanha em 1988, onde dirigi uma agência de marcação de safa-ris a partir de Madrid, mas também tinha em mente outras questões, tais como o Movimento Nacional de Resistência de Moçambique Na esteira da nossa provação de 1984-85, todas as notícias a respeito de Moçambique passaram a ter para mim muito mais interesse do que teriam numa situação normal. Parti à descoberta, numa tentativa para saber com exactidão quais os recursos de que a Renamo dispunha em termos de representação no estrangeiro, e não fiquei surpreendido ao concluir que esses guerrilheiros anticomunistas tinham falta de um vigoroso apoio na Europa e nos Estados Unidos. Havia uma presença no Quénia, em Portugal, Alemanha Ocidental e um lobby em Washington D.C., que funcionava sob a designação de Centro de Investigações de Moçambique. A Espanha, por exemplo, era socialista e pouco receptiva para uma causa como a da Renamo, tal como Portugal. Em meados dos anos de 1980 a política britânica referente a Moçambique era moldada, entre outras coisas, pelos interesses de negócios relacionados com Tiny Rowland e com as actividades do grupo Lonhro no país, bem como pela relação especial entre Moçambique e a Inglaterra depois da independência do Zimbabwe, em 1980. A Renamo não passava de uma inconveniência. A posição dos Estados Unidos não era muito melhor, mas decidi tentar entrar em contacto com os representantes da Renamo em Washington. |
Tom Schaaf, Jr., um americano, trabalhara para o Ministério da Agricultura, na Rodésia, e continuara a exercer uma actividade na esfera agrícola depois da independência do Zimbabwe, em 1980. Instalara-se na fronteira de Moçambique, em Mutare, em frente da província de Manica, e costumava entrar em Moçambique por razões ligadas ao seu trabalho. Tom era um cristão convicto e foi nessa capacidade que se envolveu em extensos programas missionários que resultaram em contactos com a Renamo, o que o levou a tomar consciência da brutalidade do regime e do sofrimento do povo. Tudo isso tem sido bem documentado e apresentado numa variedade de publicações ao longo dos anos: o assassínio das autoridades tribais para quebrar a força dos chefes tribais tradicionais e levar o povo à submissão, a instituição das leis dos passes para restringir as movimentações no interior de Moçambique, a ilegalização e confiscação das propriedades religiosas, a queima de aldeias e igrejas, a morte de pessoas ao acaso e a destruição das colheitas, a incorporação forçada dos jovens no exército, a confiscação de gado, as marchas forçadas até aos "Centros de Descolonização Mental" - os gulags de Moçambique -, as prisões sem julgamento, as torturas, a má alimentação, a manipulação das ajudas durante os períodos de fome para impedir que chegassem às mãos dos que eram vistos como sendo anti Frelimo, os trabalhos forçados, a colectivização forçada e as acções destinadas a aterrorizar a população a fim de a controlar. Tom Schaaf tornou-se num defensor da causa da Renamo. Durante uma das minhas visitas aos Estados Unidos, Tom apresentou-me a Herman Cohen, que era o Conselheiro de Segurança Nacional para África e que viria a ser Assistente do Secretário de Estado para os Assuntos Africanos durante a Administração de Reagan. Foi-me concedida uma generosa audiência a sós com Herman Cohen, que se mostrou atento e interessado pelo que eu tinha a dizer. Perguntei a Cohen quem seriam os moçambicanos mais autênticos. A seguir afirmei que o facto de eu ser branco enquanto a maioria dos moçambicanos era negra não estava em questão. Vivera em Moçambique numa situação inteiramente multirracial, fossem quais fossem as injustiça inerentes àqueles tempos. Frequentara a escola em Moçambique quando criança, praticara desporto sem atenção à cor das peles, trabalhara em Moçambique e fornecera emprego aos locais durante décadas. Os meus quatro filhos - um dos quais falecido - tinham nascido em Moçambique. Tudo o que havíamos considerado de valor tivera as suas raízes no país... e eu era uma voz que falava em nome das incontáveis vozes anónimas que tinham visto as suas vidas arruinadas pela Frelimo. Quando o avisei de que a Renamo não era um simples fenómeno passageiro e que mais cedo ou mais tarde teria de ser incluída na vida oficial de Moçambique, Herman Cohen virou-se para mim e afirmou que a solução se encontrava numa reunião entre as duas partes, a fim de negociarem um novo futuro para o país. Para que não surjam más interpretações, permitam-me que afirme que nunca recebi um centavo da Renamo por nada do que fiz em prol do movimento, nem sequer no que respeita a despesas de viagens, alojamento ou outras semelhantes. Era motivado por um sentimento de ultraje e de vingança. Queria ver alguma justiça a ser feita antes de morrer, algum equilíbrio nos pratos da balança. Queria vingar a minha família e todos aqueles que não tinham voz e se encontravam impotentes sob as presentes circunstâncias. Queria assistir à eliminação da doença marxista-leninista. O destino voltou a intervir quando me encontrava a ler um dos jornais diários em Madrid. Em finais de 1989, um artigo relativamente insignificante e quase escondido relatava o rapto de quatro marinheiros espanhóis pela Renamo quando o seu barco de pesca encalhara ao largo da costa moçambicana numa área controlada pela Renamo. Os arrastões espanhóis há muito que esvaziavam as águas de Moçambique - onde a pesca era livre - de todo o peixe, e ainda hoje continuam a fazê-lo. O mestre da embarcação coxeava e não conseguia acompanhar os outros quatro membros da tripulação e os seus captores da Renamo na prolongada marcha através do mato. Por isso, decidiram libertar o mestre, que foi escoltado de volta ao porto por um dos guerrilheiros. O destino dos seus companheiros era desconhecido e os agentes espanhóis, tal como acabei por descobrir, não sabiam o que fazer. Vi uma oportunidade de extrair algum capital político deste incidente e tive a esperança de conseguir fazer qualquer coisa para libertar os espanhóis. Descobri quem era o proprietário da embarcação de pesca e tive uma reunião, em Madrid, com ele e com os seus associados. Mostraram-se muito apreensivos quando me apresentei como sendo um membro da Renamo. No entanto, nessa fase, ainda não havia sido formalmente admitido no movimento de oposição. Enquanto falava a respeito do possível papel que poderia vir a ter para conseguir a libertação dos espanhóis, o proprietário da embarcação, um muito proeminente cidadão de Madrid, interrompeu-me de repente e disse: - Um momento! Eu conheço-o! É o Adelino, que conheci em Nairobi, em 1977, no Safari Park Hotel. Era o gerente a ajudou-nos a recuperar outro dos nossos arrastões! Aquilo quebrou imediatamente o gelo! Que pequeno é este nosso mundo! Em 1977, os moçambicanos tinham apreendido uma embarcação daquela gente quando se encontrava a pescar em águas moçambicanas. Fora imposta uma pesada multa mas, mesmo assim, a embarcação não fora devolvida aos seus legítimos donos. O meu nome viera à baila como uma possível fonte de ajuda, porque talvez conhecesse as pessoas apropriadas, em Moçambique, para resolverem o problema dos espanhóis. Joaquin Fernandez, o director da empresa de pesca e um grande amigo da família Aznar, conhecia-me e entrara em contacto comigo em Nairobi para pedir ajuda. Ele e o seu número dois, Amador Suarez, o homem que eu tinha agora na frente, haviam voado para o Quénia e fornecera-lhes o nome de René d'Assunção, um advogado moçambicano negro da Beira que ia frequentemente a Portugal e que eu conhecia bem. René acabara por resolver o problema dos espanhóis, entretanto Fernandez saíra da empresa e Suarez ocupara o seu lugar. Avisei-o, e aos colegas, que os membros da tripulação do arrastão não seriam libertados imediatamente, mas que podia garantir-lhes que seriam tratados com humanidade. Pediram-me para fazer a ligação com os elementos do escritório da Renamo em Lisboa a fim de lhes pedir que contactassem com o seu líder, Afonso Dhlakama, que se encontrava no mato. Assim foi feito, e Dhlakama mandou dizer que estava pronto a receber-nos em Nairobi - a mim e a uma delegação da empresa espanhola -, durante o mês de Dezembro de 1989 para discutir o assunto. No fim fui o único a meter-me num avião na companhia de Sebastião Temporário, um dos representantes da Renamo em Lisboa, que mais tarde viria a ser membro do Parlamento moçambicano. Fomos recebidos muito cordialmente por Dhlakama, que sabia exactamente quem eu era e estava informado a respeito da família Serras Pires, uma vez que tínhamos vivido e caçado no que era uma área da Renamo. Dhlakama deu-me a sua palavra pessoal de que os espanhóis seriam libertados e que estavam a ser bem tratados. A seguir, o líder da Renamo pediu-me para me juntar à sua organização, o que fiz ali mesmo, em Nairobi. Tenho em meu poder a carta de nomeação assinada pelo próprio Dhlakama autorizando-me a representar a Renamo no estrangeiro. Foi apenas nessa altura, em Dezembro de 1989, que me tornei membro da Renamo. Para além disso, Dhlakama disse-me que os pescadores espanhóis de certeza que iriam ser utilizados para focar as atenções internacionais. Antes de voar de regresso a Madrid, Dhlakama pediu-me para dar uma ajuda ao escritório de Lisboa e promover a causa na Europa. Foi com essa finalidade que dei a minha assistência a um lobby pró-Renamo em Londres, por intermédio do meu bom amigo David Hoile. Esse lobby conseguiu projectar uma imagem mais sóbria e honesta sobre o cenário em Moçambique sob a Frelimo, graças aos meios de comunicação e a proeminentes cidadãos britânicos. Apresentei David à hierarquia da Renamo em Lisboa durante uma muito rápida visita secreta conseguida através dos serviços de informações militares portugueses. Também fui instrumental no lançamento de um lobby semelhante em Espanha entre pessoas excepcionalmente bem ligadas aos meios de comunicação, que poderiam dar uma visão mais equilibrada das realidades de Moçambique e não as histórias tendenciosas e esquerdistas que deificavam a Frelimo. O estimado escritor espanhol, Arturo Perez Reverte, recebeu o encargo de fazer um documentário sobre a Renamo em nome do Governo espanhol, um governo socialista e muito anti Renamo. Quando foi ver-me, disse-lhe com toda a franqueza que não queria que fosse a Moçambique de má-fé e com ideias preconcebidas, para depois produzir um documentário tendencioso que serviria apenas para envenenar ainda mais as coisas numa região já devastada por anos de uma guerra civil que causara tremendos sofrimentos ao povo e dizimara a vida selvagem. Reverte compreendeu que eu sabia do que estava a falar e garantiu que me mostraria as imagens antes da montagem final. Um futuro novo e diferente só pode ser construído sobre factos, porque a verdade tem sempre tendência para vir ao de cima. Cerca de dois meses mais tarde, Reverte e a sua equipa de televisão regressaram a Espanha e fui convidado a ir até aos estúdios para ver as imagens. Eram dramáticas, mostravam escolas nas matas, clínicas muito primitivas - mas que não deixavam de ser clínicas -, para tratamento dos feridos e dos doentes, e toda a espécie de infra-estruturas na vasta região dominada pela Renamo. Incluía entrevistas claramente improvisadas com uma enorme variedade de pessoas que falavam abertamente das suas vidas e a respeito do que tinham experimentado desde a partida dos portugueses. As imagens eram absorventes. Reverte, um homem extremamente em forma, falou-me com espanto da resistência física e mental das forças da Renamo que encontrara. Os espanhóis tinham entrado em Moçambique pela fronteira do Malawi e coberto mais de 960 quilómetros a pé nas áreas da Renamo, por vezes em terrenos muito difíceis. Reverte até inventara uma designação para o passo, capaz de estourar qualquer um, com que essas forças se moviam, e passara a chama-lhe "passo Renamo". Para além disso achara incrível a resistência física das mulheres da guerrilha que transportavam com toda a facilidade cargas de 40 quilos durante as prolongadas marchas através do mato. Ajudavam a transportar carne seca, principalmente de búfalo, desde as planícies de Marromeu, a cerca de 300 quilómetros de distância, para alimentarem as tropas e a população local. O documentário espanhol foi amplamente distribuído e representou uma vitória para a Renamo, uma vez que se tratava do produto de um país socialista. Os quatro pescadores foram libertados e regressaram a Espanha, onde teceram louvores à Renamo. Afirmaram que tinham sido consistentemente bem tratados e também que o movimento lhes fornecera tudo o que tinha à sua disposição. Como é óbvio, a novidade espalhou-se. Sob Daniel Arap Mói, o Quénia estivera a desempenhar um papel cada vez mais importante como mediador nos esforços para eventuais negociações directas entre a Frelimo e a Renamo. A África do Sul e o Zimbabwe também estavam envolvidos. O estatuto da Renamo começava a mudar e deixava de ser o de "bandidos armados" para começar a ser considerada como um autêntico movimento indígena de oposição. A guerra civil prosseguia, mas também prosseguiam as negociações para tentar pôr-lhe fim. O segundo Congresso Nacional da Renamo teve lugar no interior de Moçambique, em Dezembro de 1991. Juntei-me ao grupo da Renamo de Lisboa e voei para Roma, onde fiz a ligação para Blantyre, no Malawi. Em Blantyre tínhamos de ser excepcionalmente cuidadosos, porque a cidade estava apinhada de espiões da Frelimo. A partir daí fomos transportados num Piper Aztec até uma pista de aterragem no mato, numa das antigas concessões de caça da Safrique, entre Maringué e Nyamacala. O avião foi pilotado por Rodney Hein, um missionário evangélico do Zimbabwe, e um piloto de mato de primeira classe que tinha a sua base em Blantyre. Como missionário, ministrava junto da enorme população de refugiados moçambicanos a viverem no Malawi, junto à fronteira da sua pátria. Rodney fez mais pela Renamo durante todos aqueles anos do que qualquer outra pessoa que eu conhecesse. Era extraordinariamente dedicado e não precisávamos de partilhar as suas crenças religiosas para reconhecermos esse facto. Voámos a uma altitude baixa potencialmente perigosa, mas aterrámos em segurança. Senti-me estranhamente entorpecido por estar de volta aos meus antigos terrenos de caça naquelas circunstâncias, depois de já terem passado 15 anos. Era como deparar com alguém que se tivesse conhecido muitíssimo bem mas que não víssemos há anos. O dilúvio de recordações e de tristeza foi avassalador. Por razões de segurança não nos tinham informado sobre o local exacto para o congresso, e tivemos de caminhar pelo mato, em pleno Verão, durante dois dias consecutivos antes de chegarmos ao nosso destino. Estivemos em Moçambique durante um mês. O congresso não pôde iniciar-se imediatamente porque ainda havia pessoas a caminho, a pé, vindas de lugares muito distantes. No percurso de dois dias através do mato até ao local do encontro nunca vi o mínimo rasto de um animal selvagem. Para mim, foi uma experiência profundamente perturbadora. As armas eram utilizadas para alimentar as pessoas. Nos anos que haviam decorrido tinham sido experimentados períodos de secas terríveis, seguidos pela fome, pelo que esse processo levara ao massacre da vida selvagem. Era um facto que eu conseguia compreender. David Hoile, João Gonçalves, um dentista de Portugal, e eu, éramos os únicos brancos no congresso e concederam-nos um tratamento muito cortês. Em 3 de Dezembro foi-me transmitida a notícia, em pleno mato, de que a minha filha Palucha acabara de dar à luz o seu terceiro filho, em Lisboa. Era a primeira menina e iria chamar-se Margarida em memória da minha primeira filha, que jaz sepultada na Beira. Foi um augúrio, um sinal de um renascimento para Moçambique. Senti-me feliz mesmo a milhares de quilómetros de distância. Uma equipa da televisão canadiana que se encontrava no congresso perguntou-me, em filme, se pretendia regressar a Moçambique para reclamar o que perdera. Retorqui que se tratava de uma razão legítima para lá voltar, uma vez que a Frelimo roubara o que era legalmente meu e também o que pertencera a toda a minha família. O documentário foi mostrado na Europa, na África do Sul e nas Américas. A maior parte dos membros da Renamo a trabalhar no estrangeiro e os observadores convidados partiram antes de mim depois da conclusão do congresso. Fui transportado através do mato numa das três motocicletas existentes, até ao que restava de uma pequena povoação chamada Canxixe, que era agora uma ruína esburacada depois de anos de guerra de guerrilhas. Foi aí que esperei que Rodney Hein nos fosse buscar. O seu Piper Aztec chegou em devido tempo, mas avariou-se logo depois da aterragem. A África força-nos a sermos pacientes. A bateria descarregada foi desmontada e levada de motocicleta até à base principal da Renamo, onde existia um carregador, uma vez que a base possuía rádios sofisticados que funcionavam a baterias. Rodney regressou no dia seguinte, pronto para a partida. Na noite anterior, enquanto comia o meu sorgo e recusava a "carne", reparei que o comandante local tinha apenas duas diminutas aves no prato. Brinquei com ele a respeito do seu "banquete". Respondeu-me: - Sabes uma coisa? Creio que estas eram as duas últimas aves em toda a área! Voei dali para Blantyre e depois para Lisboa via Paris. As negociações respeitantes a um acordo Renamo/Frelimo intensificaram-se entre o princípio de 1992 e o mês de Outubro desse mesmo ano. Esse "Acordo Geral de Paz" foi devidamente assinado em Roma, em 4 de Outubro de 1992. Nem eu nem nenhum outro dos brancos que ao longo dos anos se tinha dedicado, à sua pró pria custa, a ajudar a Renamo, foi convidado para Roma. Convidei-me a mim mesmo e cheguei cerca de uma hora depois da assinatura. Olhei em volta e confrontei-me com alguns indivíduos com um ar envergonhado. À luz daquela nova "política de indi-genização" no coração da Renamo, dei os meu trabalhos por terminados e cortei os laços com o movimento de uma vez para sempre. Os meus pensamentos estavam com os povos tribais, no mato, que tinham deposto toda a confiança nos seus representantes. Para mim, era o fim da estrada. Um punhado de representantes da Renamo desenvolvera um certo gosto pela boa vida desde finais dos anos de 1980, à medida que visitavam a Europa com cada vez maior frequência. Viagens aéreas em primeira classe, bons hotéis, boa comida e melhores vinhos, roupas elegantes e uma opinião muito inflacionada a respeito da sua própria importância acabaram por contagiar essas personagens. Alienaram-se cada vez mais da sua missão original, que era a de lutar pêlos interesses dos milhões de pessoas simples que viviam no terreno, que pouco ou nada tinham de seu e que suportavam o fardo dos sofrimentos provocados pela guerra civil. Havia uma arrogância crescente a ganhar raízes na liderança da Renamo. Deixei Roma naquele mês de Outubro a saber que a sedução daqueles representantes da Renamo já se iniciara. Falaram comigo abertamente a respeito de irem para Maputo e de virem a fazer parte do Parlamento. Era aí que estava a boa vida. Claro que Maputo tinha o seu lugar próprio, mas a verdade é que ninguém me falou no desejo de regressar à Gorongosa ou a Maringué, no mato, ou até à Beira, para lutar pelos direitos do seu povo numa nova posição a partir dos seus distritos eleitorais. A alegre Paris acenara-lhes. O que vi naquele dia em Roma, por muito desagradável que agora possa soar, convenceu-me de que nada iria mudar para os milhões de seguidores da Renamo que viviam no terreno à medida que os seus representantes, incluindo o próprio Dhlakama, se desligavam deles e mudavam para sul do rio Save, uma vez que era aí que se encontravam todos os poleiros. Ironicamente, ainda iria a ser cordialmente convidado a regressar a Moçambique pelos próprios representantes diplomáticos da Frelimo, para testemunhar o epílogo desta história.
EPILOGO
O Vento de Mudança soprou e desapareceu e, no final do século não há um único país africano sujeito a qualquer potência exterior. Todavia, há centenas de milhões de africanos sujeitos à servidão desde o primeiro dia da uhuru... - John Qwelane (proeminente jornalista negro da África do Sul). O telefone tocou. Era Fernando Antoniotti, uma voz do passado distante que frequentara a escola primária comigo em Tete havia quase 60 anos. Lembrava-me bem dele. O pai era de origem italiana, daí o apelido, e a mãe fora uma mulher local. A minha irmã Lucinda era madrinha da irmã do Fernando, Elena, e as nossas duas famílias haviam partilhado muitos dos anos de pioneirismo no Zambeze. Fernando fazia parte da missão diplomática moçambicana em Portugal e tivera algum trabalho para me conseguir localizar. Encontrava-me em Lisboa por acaso, de visita à minha família, quando retomámos o contacto depois de tantas décadas e do drama colectivo que durara toda uma vida. Para meu grande espanto, Fernando convidou-me a visitar a Embaixada de Moçambique, onde fui recebido com o tapete vermelho e onde me deram um visto gratuito para poder visitar o país às claras e com toda a liberdade pela primeira vez em 20 anos. Depois de tudo o que transpirara a meu respeito, muito em particular no que se referia ao meu activo envolvimento com a Renamo entre 1989 e 1992, não deixava de ser um desenvolvimento inesperado. Manifestei-me tão francamente como sempre, e disse aos meus anfitriões que quem tinha mudado eram eles e não eu. Continuava a defender os mesmos valores que me tinham levado a lutar até ao fim. Sei que chamei a atenção dos diplomatas naquele dia quando disse que, embora tivesse rejeitado o que a Frelimo demonstrara ser a partir de 1975, também precisava de admitir que a Renamo não teria sido uma melhor solução. De facto, teria sido igualmente má. Entretanto, acontecera muita coisa à Frelimo. Forçada pelas duras realidades - tanto políticas como nas economias interna e externa -, a pagar um preço cada vez mais dramático por urna guerra que não era possível vencer, a par com uma cada vez maior pressão por parte dos verdadeiros senhores do universo, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional via Estados Unidos da América, a Frelimo teve finalmente de esquecer as suas políticas marxistas-leninistas depois de mais de 15 anos desastrosos. Muito convenientemente, as responsabilidades por esses anos foram lançadas única e exclusivamente sobre a guerra civil. O partido não teve outra escolha se não a de adoptar um sistema económico de mercado livre e um sistema político multi-partidário, por muito suspeito que este último ainda seja. Os homens da linha dura da Frelimo tiveram de se submeter à cada vez mais vigorosa neocolonização económica de Moçambique por intermédio daquelas entidades mundiais, e muito em especial por intermédio do poderoso vizinho de Moçambique, a República da África do Sul. Talvez estivesse realmente na altura de regressar para dar uma vista de olhos àquilo em que Moçambique se transformara. Nem sequer me atrevia a interrogar-me sobre o que teria acontecido à vida selvagem. Voei para a Beira num típico dia húmido de Outubro de 1995 enquanto revia mentalmente a passagem dos anos. Na minha mente surgiram-me imagens da infância, da juventude, dos gloriosos dias dos safaris e do vergonhoso ponto final de toda uma vida naquele mesmo aeroporto onde estava agora a ser recebido de um modo tão caloroso e genuíno. Não obstante a negligência de duas décadas fosse inconfundível nas pinturas a cair, nas ruas esburacadas, nos passeios pouco cuidados e no mau estado geral de uma cidade outrora vibrante, agora com a sua quota de crianças da rua, não deixei de reparar na cordialidade dos moçambicanos, que excedia tudo o que já experimentara noutros pontos de África. Tivera lugar uma guerra amarga, houvera muito sofrimento e morte com perdas irreparáveis para todos os lados, mas, sem excepção, a afabilidade dos locais era notável. Fui recebido por Francisco "Chico" Brandão, um bom amigo dos velhos tempos que era proprietário do Hotel Embaixador, um dos locais mais conhecidos da Beira, após o que a notícia da minha chegada em breve se espalhou e em breve me vi em contacto com pessoas que haviam desempenhado um papel significativo na minha vida durante muitos anos. Nalguns casos, as conversas e as gargalhadas voltaram a renascer como se não tivessem sofrido nenhuma interrupção. Noutros casos surgiram momentos de constrangimento, enquanto procurámos encontrar palavras capazes de transpor um abismo de duas décadas. Por vezes nem sequer havia palavras e descobri-me a rodear questões para não ter de relembrar acontecimentos. Contudo, aprendi rapidamente que, desde 1975, os moçambicanos vulgares tinham sobrevivido a anos terríveis de opressão política, à guerra, às constantes privações, a secas, a inundações e à fome. As cicatrizes desses anos ainda eram visíveis. Pequenos luxos como os principais campos desportivos da Beira estavam transformados em montes de lixo cobertos de ervas e em latrinas ao ar livre, os empregos continuam a ser escassos, em especial a norte do rio Save, e notei imediatamente um ar de desilusão generalizada. Apesar de tudo o que ouvi e vi, era estranhamente reconfortante estar de volta. Visitei o túmulo da minha filha no principal cemitério da Beira e pude verificar que tinha sido razoavelmente cuidado, um sinal do forte respeito pêlos mortos que é típico das culturas africanas em geral. Os amigos organizaram-se para me conseguirem levar até à quinta da família e ao túmulo do meu pai em Guro, a 440 quilómetros da Beira, e depois a Tete, no Zambeze, onde as minhas primeiras memórias africanas se encontram ancoradas. Tinha uma verdadeira necessidade de voltar a experimentar a terra que dera forma à minha vida. Seguimos para o interior, atravessando do rio Pungué por duas vezes, enquanto deixávamos para trás a costa húmida e um milhar de memórias. Os efeitos da guerra civil eram visíveis por todo o lado. O povo fora forçado a abandonar as aldeias e a concentrar-se junto das estradas, onde os povoados miseráveis se haviam amontoado enquanto as pessoas tentavam sobreviver. Matas outrora repletas de árvores haviam sido desbastadas para lenha ao longo de áreas enormes, perturbando seriamente os habitats da vida selvagem. Ganhei imediatamente consciência de um aumento populacional como nunca vira em todas aquelas décadas anteriores passadas em Moçambique. A maior parte das pessoas que encontrei era crianças ou adolescentes. Os homens capazes andavam por longe, nas cidades, nas vilas, nas minas de outros países, numa tentativa para ganharem a vida, enquanto as mulheres ficavam para trás e tentavam segurar o desgastado tecido social há muito sujeito a grandes tensões. Não obstante tudo o que se passara, a população como que explodira e duplicara, literalmente, durante os meus 20 anos de ausência. A vida selvagem, já dizimada em resultado do sofrimento humano, não iria conseguir escapar aos efeitos daquele drama contínuo. Quem me dera que as coisas fossem diferentes. Viajávamos por estradas com condições surpreendentemente boas e ia avistando marca conhecida atrás de marca familiar. Naquele dia pairava no ar um silêncio invulgar à medida que tentava absorver o que se desenrolava na frente dos meus olhos. Sentia-me entorpecido e cansado de tantas mudanças. A lógica dizia-me que não se pode voltar para trás nas nossas vidas. Nunca nada se mantém na mesma. A mudança é a única constante nos assuntos humanos... mas as minhas emoções continuavam à espera de ver um vestígio daqueles 40 e tal anos passados que tivesse permanecido tal como eu o recordava. A serra de Guro ergueu-se na nossa frente. Detivemo-nos num ponto privilegiado para olharmos para o vale e distinguirmos as casas brancas da quinta a destacarem-se contra a serra. A casa desaparecera... tal como a maior parte das árvores que outrora haviam coberto a serra de Guro. Os latidos de aviso dos babuinos ainda podiam ser ouvidos nas suas fortalezas rochosas lá no alto, e a principal atracção para esses animais era agora a manta de retalhos dispostos ao acaso dos talhões de sorgo e milho que se viam no vale. Ninguém falou quando descemos aos solavancos pela estrada que eu percorrera incontáveis vezes para poder chegar à nossa quinta. Estávamos rodeados por um povoado improvisado com cerca de 60 mil pessoas que viviam nos locais onde outrora havia sido o pomar e as nossas modestas vinhas, onde o milho, o girassol e os campos de algodão haviam sido cultivados, onde tínhamos aberto uma pista de aterragem para salvar a vida do meu pai, onde a caça grossa vagueara à sua vontade, e que se estendia até ao local onde se tinham erguido os alojamentos para os trabalhadores. Havia um montão de tijolos e pedras a marcar o local da grande casa da quinta, que fora despojada de tudo o que pudesse ter valor havia já muitos anos. Saí da viatura e olhei à minha volta, esforçando-me por recordar a bela visão de há tantos anos das matilhas de cães selvagens doidos de excitação quando percorriam as nossas terras atrás dos kudus (gomas), com os seus ganidos agudos a ressoarem no ar límpido daqueles dias mágicos da minha juventude. Afora, o fumo de lenha de milhares de fogueiras para cozinhar erguia-se no sopé da serra escura e pairava no ar uma atmosfera de negligência que era como uma mortalha a estender-se de horizonte a horizonte. Os animais selvagens tinham desaparecido. As aves, em especial as de rapina que eu sempre considerara como um dado adquirido, tinham desaparecido. Quando segui a pé para o túmulo do meu pai reparei que as árvores que assinalavam o local não haviam sido abatidas. Na verdade, eram até mais altas e grossas do que me recordava. Senti-me estranhamente aliviado ao chegar junto do túmulo para verificar que não lhe tinham mexido. Era claro que fora respeitado ao longo dos anos pelas pessoas, muitas das quais nem sequer faziam ideia sobre quem fora o falecido, mas que possuíam uma profunda compreensão sobre os ritos da morte. O que senti naqueles dias foi demasiado complexo para ser descrito por palavras, e foi demasiado tarde para as lágrimas. Era o bastante estar ali, para recordar. A notícia de que tinham chegado visitas espalhou-se com a velocidade de um raio, e dentro de pouco tempo já tinham aparecido vários antigos membros do pessoal da nossa quinta. Os seus rostos, tal como o meu, estavam sulcados pela idade e nalguns casos por anos de má saúde. Foi um encontro extremamente emocional à medida que nos saudávamos uns aos outros e recordávamos tempos compartilhados, tempos desaparecidos. Disse que todos os que me quisessem voltar a ver poderiam reunir-se naquele mesmo local daí a três dias, a uma hora determinada, uma vez que iria a Tete e voltaria a passar por ali no caminho de regresso à Beira. Muito em particular, gostaria de me encontrar com os que tinham feito parte do pessoal de caça. Essas pessoas simples que tinham permanecido na área e que, por uma qualquer sorte incrível, tivessem sobrevivido à guerra, à doença e à fome, poderiam dizer-me a verdade a respeito da nossa coutada n.° 9, onde houvera uma tão rica vida animal e onde havíamos passado por algumas experiências de caça verdadeiramente extraordinárias. Tete e a Caroeira eram como um velha mulher pobremente vestida que tivesse conhecido tempos melhores - e até tempos de grande êxito -, e continuasse a fazer um esforço para se apresentar bem. Se olhássemos com mais atenção, os vestígios da antiga beleza tornavam-se discerníveis à medida que os edifícios outrora familiares nos surgiam à vista: o bar onde eu encontrara John Pondoro Taylor pela primeira vez, a fachada agora suja e a desfazer-se da antiga residência do governador, a nossa enorme casa com a varanda a toda a volta, onde as andorinhas vindas da Europa construíam os ninhos por baixo dos beirais, a escola primária onde fizera os primeiros amigos em África... As recordações arrastavam-se umas às outras tão fluidamente como o fluxo do rio lá em baixo, o Zambeze, aquele poderoso mar da minha infância. Tentei encontrar o local onde os vapores de rodas costumavam atracar e deparei com uma bela ponte que atravessa o rio no local onde a barcaça era a única maneira de chegar à outra margem. Agora, o trânsito flui cada vez mais intensamente para o Malawi e para lá deste através daqueles históricos cruzamentos de estradas dos meus primeiros dias em África. Na cidade ainda existia um punhado de pessoas que conhecera durante anos e com quem partilhara a minha vida. Ficou muita coisa por dizer naqueles três dias. Era suficiente ver-me de novo entre velhos amigos, sem ter de explicar nada, sabendo perfeitamente que estávamos na parte final das nossas vidas. Todos nós sentimos agudamente a necessidade de recordar e de sermos recordados. Regressei à nossa quinta em Guro, e quando lá cheguei já um grupo de cerca de 30 pessoas se reunira para me ver. Toda a gente vestira as suas melhores roupas de domingo, incluindo várias mulheres idosas que tinham trabalhado para a minha mãe. Foi uma visão comovente quando as pessoas se amontoaram em volta da comida e da bebida que levara comigo e me começaram a falar daqueles 20 anos e de tudo a que haviam sobrevivido. Foi a habitual história deprimente tão típica de África: fratricídio, ganância, promessas quebradas e destruição. Interrogaram-me a respeito dos membros da minha família e quiseram saber quando regressaríamos a Guro. Expliquei-lhes que tínhamos perdido tudo em Moçambique e que a terra em que nos encontrávamos, onde a nossa quinta fora e onde tantos dos presentes tinham trabalhado e vivido durante anos nos tinha sido tirada pela Frelimo e pertencia agora ao Estado, pelo que não podíamos voltar para começar tudo de novo. Era demasiado tarde. As hienas haviam chegado e partido... e já nem sequer restavam as carcaças das nossas vidas anteriores. Apenas recordações. A multidão murmurou a sua compreensão. Tinham aparecido vários dos antigos membros do pessoal dos safaris. Tendo em conta as circunstância em que haviam sido forçados a viver naquelas décadas, fiquei francamente surpreendido por os ver a todos. Quando lhes fiz perguntas sobre os animais da região, em particular na coutada n.° 9, Moisés, um dos meus pisteiros, levantou as duas mãos num sinal de desespero. A maior parte dos animais desaparecera. Tinha havido uma guerra e muitas pessoas com grandes armas. Tinha havido falta de comida e até fome. Agora, ainda havia muita gente com grandes armas. Os soldados, tanto da Frelimo como da Renamo, tinham morto muitos animais. Ninguém os conseguira deter. Dito aquilo, despedimo-nos uns dos outros, conscientes de que seria improvável que nos voltássemos a ver. Tive um grande sentimento de desperdício e de fim irrevogável enquanto seguia em direcção à Beira. Aí chegado, enviei um mensageiro com dinheiro à aldeia de Radio, o chefe dos meus pisteiros. Tinham-me garantido que continuava vivo e era um dos poucos sobreviventes da minha equipa de caça original. Tratava-se de um facto notável, porque a região onde a sua aldeia se localizava fora particularmente atingida durante a guerra civil. Pedi ao mensageiro para que, quando voltasse, trouxesse o Radio com ele. Não me podia ir embora sem o ver. Partilhara alguns dos anos mais significativos da minha vida e fora uma das poucas pessoas em quem eu pudera confiar implicitamente. Tendo em conta o meu controverso envolvimento recente com a Renamo, não me arriscava a viajar até uma fortaleza do partido nem a criar problemas às pessoas que lá viviam. As noções a respeito de políticas pluripartidárias ainda se encontram num estado embrionário na maior parte de África, e os partidos da oposição ainda estão sujeitos a desconfianças... e a coisas piores. Só a pressão do mundo desenvolvido levou à introdução em África de conceitos como a democracia e os sistemas multipartidários. No entanto, os pontos de vista gerais são ainda grandemente totalitários. Radio apareceu. Tinha um aspecto frágil mas ainda razoavelmente saudável, e ficámos ambos muito comovidos quando nos vimos um ao outro. Falou-me da terrível fome dos anos de 1980, da morte de muitas pessoas precisamente pôr causa dessa fome e também por causa da guerra. Em certa altura, Radio estivera gravemente doente, mas uma das suas esposas conseguira mante-lo vivo cozinhando raízes de bananeira e fazendo uma espécie de papas. Falou-me da destruição da caça na Reserva da Gorongosa e no abate das suas antigas árvores. Descreveu-me em pormenor a matança das outrora enormes manadas de elefantes existentes na região por causa do marfim, e nem sequer os elefantes jovens haviam sido poupados. Tanto a Frelimo, como a Renamo, os homens do Zimbabwe e da África do Sul tinham estado envolvidos no assunto. Ninguém tinha as mãos limpas. O marfim fora trocado por armas, de modo a ser possível prosseguir com a guerra civil. Radio confirmou-me a matança dos búfalos na planície de Marromeu para alimentar as tropas do Zimbabwe, que também tinham criado problemas no país. Descreveu-me como haviam utilizado helicópteros para abaterem os animais a partir do ar. Falou com resignação. A vida estava pior, muita gente morrera e muitas outras pessoas continuariam a morrer. O trabalho era mais escasso do que nunca e as pessoas estavam zangadas porque as suas vidas não tinham melhorado depois de tantos sacrifícios. Ninguém do Maputo aparecia ali, no mato, para falar com elas, para lhes dizer o que se passava ou o que iria ser feito pela região. Ninguém se ralava. Estavam sozinhos e entregues a si mesmos. Que podia eu dizer? Ofereci medicamentos e dinheiro a Radio, para que pudesse regressar à aldeia em segurança. Disse-lhe que sempre o recordaria e ao seu povo, e que estava profundamente triste por saber o que lhe acontecera, bem como ao pequeno bocado de mundo que ambos havíamos partilhado. Perguntei a mim mesmo o que teria sido feito do seu hostil filho, se ainda estivesse vivo. Continuaria a ser um revolucionário tão convicto depois de ver todo o sofrimento que a família tivera de suportar? Contudo, não lho perguntei. Regressei a Moçambique várias vezes desde 1995, e fui até locais tão a norte como Pemba, a capital da província de Cabo Delgado. Faz fronteira com a Tanzânia e a separação entre os dois países é feita pelo rio Rovuma. Na região da bacia do Rovuma ainda resta alguma vida selvagem, em especial de elefantes, mas a crescente caça furtiva constitui uma ameaça séria e contínua para o que resta da caça. Em 1997, num desenvolvimento especialmente irónico, o meu nome veio novamente ao de cima em Maputo, a capital de Moçambique. Pediram-me para falar com o governador da província de Cabo Delgado, que era também o vice-ministro da Agricultura, Pescas e Vida Selvagem, para discutir planos para a conservação da vida selvagem naquela região. Sempre gostei de desafios. Porque não mais um? Isto levou a ter sido directamente responsável, em 1998, pela apresentação da direcção do Safari Club Internacional ao governador, José Pacheco, educado nos Estados Unidos. Depois de uma série de viagens a Cabo Delgado, pagas do meu bolso, descobri-me subitamente posto de lado sem me ter sido dada qualquer explicação. Certas entidades, impelidas pelo ego e pela ganância, estavam mais interessadas em concessões de caça e em ganhar dinheiro rapidamente do que no estabelecimento no terreno de uma força anticaça furtiva viável, ou em iniciativas a longo prazo para a conservação da caça. Correram boatos, e boatos a respeito de boatos, de caçadas feitas de helicóptero, de gente que excedia as quotas e de contrabando de marfim. Até esta data continuam a circular histórias a respeito do que se passou na região de Cabo Delgado em 1998. Não tenho conhecimento de que, nessa área, tenha sido instalado algo de significativo no terreno para o combate à praga da caça furtiva. Tenho bons motivos para pensar que os meus esforços iniciais, empreendidos com toda a boa-fé, não irão dar qualquer resultado. O Sul de África foi atingido por uma nova e terrível catástrofe quando já estavam em curso, em Nova Iorque, as negociações finais com os editores deste livro. Os furacões Eline e Gloria devastaram a região e causaram as piores inundações de que há memória. O país mais gravemente afectado foi, de longe, Moçambique, em especial a parte sul. As imagens do terror entraram nas salas dos lares de todo o mundo quando a televisão capturou o medo e a devastação de muitas centenas de milhares de pessoas nas suas patéticas tentativas para escaparem às lamas mortais dos rios enlouquecidos que galgaram as margens e afogaram aldeias inteiras na sua feroz caminhada para o mar. Milhares de pessoas nas planícies costeiras baixas, desde bebés a frágeis idosos, procuraram os terrenos mais elevados ou foram puxadas para o cimo das árvores onde se agarraram à vida durante dias, hipnotizadas pelas águas que não paravam de subir, dominadas pela fome, pela sede e pelo receio de serem novamente abandonadas aos seus destinos. Desidratada, faminta e no fim do tempo de gravidez, a mãe de Rosita Pedro deu à luz na copa de uma árvore antes de ser avistada e puxada para a segurança por um helicóptero sul-africano. O dilúvio prosseguiu durante dias, matando pessoas, gado e animais selvagens, destruindo as reservas alimentares e as posses, deitando abaixo infra-estruturas, e trazendo na sua esteira a ameaça da fome e das doenças, em particular a malária e a cólera. A chuva ainda caía sobre grandes partes de Moçambique duas semanas depois dos furacões se terem afastado. O primeiro país que se precipitou a ajudar Moçambique foi a África do Sul, cujas tripulações de helicópteros salvaram mais de 12 mil pessoas, enquanto o resto do mundo se limitava a olhar. O vizinho outrora pária foi o único país africano capaz de intervir imediatamente para ajudar um outro país africano impotente para pôr em marcha, por si só, uma qualquer missão de salvamento. Os países europeus, a que se juntou a América, o Canadá e um pequeno conjunto de Estados africanos, acabaram por chegar em massa para auxiliarem às operações de salvamento e para darem alguma esperança a pessoas novamente empurradas para a beira de um novo abismo de medo e de miséria, forçadas a palminhar mais uma vez os trilhos de lama, em direcção a lado nenhum, enquanto tentavam manter-se vivas num continente onde o sofrimento parece continuar a ser a marca característica da existência humana. Os meios de comunicação, de Moçambique e de muitos outros países, publicaram relatos de certos políticos moçambicanos, e também de ex-políticos do passado desse país, a choramingarem por aquilo que definiam como sendo a resposta tardia do mundo ocidental ao seu sofrimento. Investiguei atentamente os meios de comunicação em busca da mínima sugestão a respeito da chegada de um qualquer tipo de apoio, vigoroso e visível, sob a forma de alimentos, medicamentos, aviões e pessoal treinado para emergências, que tivesse sido fornecido pêlos antigos camaradas de armas do bloco oriental com quem alguns moçambicanos haviam marchado alegremente sob a mesma bandeira vermelha. Começaram a circular relatos de corrupção a alto nível em Moçambique, e a respeito da ajuda alimentar internacional estar a desaparecer para voltar à superfície no mercado negro a preços exorbitantes. Outras ajudas e os medicamentos nem sempre chegavam aos seus destinos, que deveriam ser os apinhados campos de emergência onde as pessoas caíam doentes e onde as crianças, muito em particular, sofriam de má nutrição grave, onde a água limpa, para beber, era uma raridade, e onde os trabalhadores da ajuda internacional, médicos, enfermeiros, paramédicos e pessoas de genuína boa vontade batalhavam contra essa corrupção endémica, sem rosto e letal. O presidente da Organização de Unidade Africana admitiu a quase completa falta da capacidade do continente para lidar com aquele tipo de calamidades naturais. Nos jornais moçambicanos, que recebo diariamente por e-mail, começaram a surgir relatos prejudiciais a respeito de certos elementos das forças armadas do país que teriam vendido, contrabandeado ou roubado motores de aviões e peças sobressalentes para obterem ganhos pessoais, ao ponto de Moçambique ter ficado sem meios aéreos para lançar a sua própria operação de socorro antes da chegada das forças estrangeiras. No que se refere a este assunto, o mundo foi iludido com frases como "Estamos a investigar"... e este é o país constantemente exibido pelo mundo como constituindo uma história de êxito em África! No meio desta calamidade, as autoridades moçambicanas também acharam apropriado cobrar altas taxas de aterragem no Aeroporto de Maputo aos aviões estrangeiros que levavam auxílio e pessoal. Os efeitos desta tragédia irão ser sentidos durante anos e criarão novas oportunidades para a entrada de estranhos. É indiscutível que há muito interesse por parte de estrangeiros nos projectos a desenvolver em Moçambique, em particular da parte dos sul-africanos, que transformaram o Estado vizinho num satélite económico, o que até nem é mau. Contudo, os desenvolvimentos económicos significativos têm quase sempre lugar a sul do rio Save. O Norte continua com falta de investimentos, subdesenvolvido e negligenciado a favor do Sul, que é povoado pela tribo dominante da região, que também domina a hierarquia da Frelimo. O desenvolvimento de Maputo faz um grande contraste com a pobreza da Beira, e ainda mais em relação a todas as outras cidades e povoados do Norte... e isto não é por acaso. Nos primeiros meses do novo milénio a agitação prossegue em muitas partes de África. No continente há mais de 20 países num estado de guerra declarada ou numa situação de extrema tensão. O Sudão pode servir de exemplo, uma vez que é aí que se desenrola a guerra civil mais prolongada de África. Esta continua a sofrer com os tiranos, as crianças soldados, os genocídios de cariz tribal, as limpezas étnicas e a deslocação de populações. O espectro da severa falta de alimentos, que pode redundar numa fome em grande escala, paira sobre grandes áreas do continente e ameaça directamente o que resta da vida selvagem. A África subsariana é cada vez mais marginalizada na economia global em virtude dos riscos envolvidos, e é agora vítima de uma nova servidão, a pós-independência. O jugo da tirania política, da corrupção, da fome, da iliteracia, da pobreza e das enfermidades galopantes é cada vez mais pesado. A África subsariana é o epicentro da pandemia de SIDA, que só irá ser sentida com toda a força, assim o afirmam os especialistas, durante a próxima meia dúzia de anos. Mais de 70 por cento das vítimas da SIDA vivem na África subsariana. A África do Sul, de longe o país mais avançado do continente sob todos os aspectos, já está envolvida no pesadelo cada vez maior dos órfãos da SIDA e nos bebés portadores do HIV que são abandonados. As consequências socioeconómicas e sociopolíticas deste facto são evidentes. Desde os anos 1960 e do princípio do processo de descoloni-zação, a África sofreu mais golpes e mais revoluções violentas do que qualquer outra parte do mundo. Muitos países africanos trocaram uma forma de domínio e exploração por um mal muito maior, o domínio e exploração por parte do seu próprio povo. Mobutu, no Zaire, foi o exemplo clássico do molde do "presidente vitalício". Milhões de africanos sob governantes despóticos vivem em casulos de medo para onde os oportunistas estrangeiros, tal como chacais a quem já cheira a sangue, se mudaram rapidamente a fim de explorarem, agarrarem e fugirem, deixando o povo a enfrentar uma nova ruína. Vem-me à mente Angola e a sua florescente indústria do petróleo. As riquezas minerais de África condenaram-na a este destino e a vida selvagem é um bem sacrificável. A caça furtiva tornou-se num negócio nas mãos dos sindicatos internacionais do crime, ajudados por uma vasta corrupção. Os soldados e as AK-47 não são uma mistura feliz para o povo africano... nem para a vida selvagem do continente. Não é possível falar de conservação aos esfomeados, desalojados, doentes e desesperados. Fala-se de um "renascimento" africano e da possibilidade do ano 2000 anunciar a chegada do "século africano." À luz do que teve lugar anteriormente, não compartilho desse optimismo. Limito-me a repetir as palavras de Wole Soynka, o eminente autor nigeriano, laureado com o Prémio Nobel da Literatura, em 1986, que afirmou em 1999: "lá não podemos falar de guerras no continente, mas apenas de arenas onde se desenrola uma verdadeira competição de atrocidades." Há uma pergunta inevitável: que estou eu ainda a fazer em África? Já agora, que tenho quase 72 anos e estou à espera de Deus, posso aguardar mais um pouco para ver se surge algo de realmente novo em África. Espero para ver se a África e o mundo deixarão alguma vez de manipularem a verdade e encararão os factos a respeito da corrupção, da ganância e na inépcia ao mais alto nível. Espero para ver se a África alguma vez começará à procura de soluções com uma base sustentável no interior do continente, e se livra de uma mentalidade que cria um complexo de dependência em relação aos dadores estrangeiros e às condições que estes impõem. Espero para ver se a África começa a limpar a podridão nas fileiras da sua liderança e inicia o longo e difícil caminho para uma autodependência básica. Espero para assistir à exposição das hienas humanas do oportunismo que estão a destruir África a partir do interior. Espero para ver se a África começa a libertar-se das grilhetas e a caminhar sobre os seus próprios pés. Espero para ver esgotar a fossa dos maléficos interesse pessoais e assistir à emergência sem medo de um cada vez maior número de filhos e filhas de África, honestos e talentosos, que ajudarão a arrastar o continente para fora deste esterco velho. Espero um fim para os argumentos cediços a respeito da África ser sempre a vítima impotente e o estrangeiro ser sempre o explorador culpado de tudo. Embora não acredite que as AK-47 sejam derretidas e transformadas em arados, ou que o leão venha deitar-se ao lado da gazela - pelo menos durante os tempos mais próximos, não deixa de haver um clarão de esperança. Nelson Mandela, que não tem par em toda a África no que toca à autoridade moral e ao respeito internacional de que goza, afastou-se do discurso que preparara para o dia 6 de Maio de 2000 em Joanesburgo, durante o lançamento do Fundo de Parceria Global das Nações Unidas para as Crianças. Fez uma clara referência aos déspotas de África e declarou: "Os tiranos de hoje podem ser destruídos por vós (o povo)... temos de ser impiedosos na denúncia desses líderes." Embora logo no dia seguinte alguns africanos tivessem denunciado Mandela nos meios de comunicação com sendo um "não africano", o seu apelo para um maior respeito pelos direitos humanos e por tudo o que eles implicam não deixou de passar. O Bispo Desmond Tutu, o internacionalmente respeitado Prémio Nobel da Paz sul-africano, também levantou a forte voz numa condenação aos líderes africanos corruptos. As sementes da política multipartidária estão a germinar em África. A liberdade de imprensa é agora maior do que era há uma mera década, as pessoas começam a ter menos medo de falar, e de manifestar o seu direito a uma vida melhor e a serem governadas por líderes mais transparentes e responsáveis.. Os jovens estão cada vez mais bem informados a respeito do que se passa noutros lugares do mundo mundo e a era da tecnologia da informação faz com que seja muito mais difícil que os tiranos passem desapercebidos e sem serem controlados. Tudo o que ajude a estabilizar a situação so-ciopolitica em África beneficiará os esforços para a estabilização e conservação do que resta da herança africana no campo da vida selvagem. Muitos líderes africanos foram denunciados publicamente e estão agora sob investigação por causa das suas gordas contas bancárias offshore, obtidas à custa do saque dos cofres nacionais enquanto os seus povos sofrem. Os países dadores desenvolvidos começaram a revelar sinais de cansaço no que se refere às infindáveis tragédias que tem lugar em África, à quase incapacidade desta para lidar com as crises, à corrupção e ao constante abuso a que as ajudas são sujeitas. É posta uma cada vez maior ênfase na necessidade de governos africanos mais responsáveis que comecem a cultivar as suas próprias capacidades com mais vigor para poderem sobreviver e progredir. Só poderemos falar num renascimento quando a África, como um todo, se tornar mais auto-sustentada. Agora que estou a chegar ao fim da picada, depois de uma vida cheia e aventurosa, compreendo com mais clareza que foi a minha geração, sem qualquer dúvida, que experimentou o melhor de África e da sua incomparável vida selvagem. A verdadeira luta pela regeneração política, económica e moral de África só agora começou. |