Wednesday, November 19, 2025

O texto que o leitor inventou

 Elisio Macamo

14 h 
O texto que o leitor inventou
Há uma experiência curiosa que se repete no meu ofício de pensar em público. Acaba de acontecer com um comentário que fiz na MBC TV sobre a juventude. Dizia nele que não me parece haver nada de extraordinário na famigerada Geração Z. Acrescentava que o único que me parece digno de nota é o facto de hoje haver uma maioria esmagadora de jovens num contexto de sérios problemas e, esta era a tese, sem nenhum sistema político capaz de os ouvir como devia ser. Li algures que estou a ser citado como tendo dito que a juventude é irrelevante! Portanto, descubro com frequência que as pessoas não reagem ao que escrevi ou disse, mas ao que pensam que escrevi ou disse. A crítica não se dirige ao conteúdo real, mas a uma criação autónoma, um simulacro (como diria Baudrillard no sentido duma representação fiel de algo que não existe!) criado pelo leitor, moldado pelas suas convicções, pelo seu humor e, sobretudo, pelo que acredita já saber.
Chegou um momento em que deixei de estranhar. Algumas pessoas não leem textos, quer me parecer. Leem a si próprias nos textos. Acho que há um mecanismo nisso aí. É a convicção que age como um colete de forças e não deixa o leitor mover-se, impedindo-o, assim, de entrar no território do outro. Seja qual for o argumento, a interpretação já vem pré-formatada. O leitor não lê para compreender. Lê para confirmar. E tudo aquilo que não confirma é rapidamente traduzido no esquema interno da convicção. É assim que uma frase prudente é ouvida como um ataque, e uma crítica específica é lida como traição a um lado político inteiro.
O texto desaparece. O leitor ocupa o seu lugar. Mas há outro problema que é o desconhecimento não reconhecido. Nas ciências naturais, isso é evidente. Se um físico quântico publica um artigo sobre superposição, nenhum de nós imagina que possa corrigi-lo sem estudar por anos. Reconhecemos o abismo. Sabemos que não sabemos. Nas ciências sociais e, mais ainda, na política, a situação é outra. Aqui, todos se sentem autorizados a opinar. E, de certa maneira, têm razão. Todos vivem a sociedade, todos a experimentam e têm percepções legítimas. O problema não está na experiência, mas na transformação da experiência em competência crítica. A vivência não substitui o conhecimento, simplesmente porque a familiaridade não produz método. A gente pode dominar a escrita em português e, mesmo assim, não entender certas matérias.
Tomemos o exemplo de Hegel, o filósofo alemão. É fácil, para alguém que tropeça numa frase descontextualizada, condená-lo por racismo. A frase, isolada, assim parece. Mas quem conhece a arquitectura filosófica de Hegel, a noção de liberdade como condição da historicidade, a dialéctica como processo de auto-realização do Espírito, a ideia de que a História é o palco no qual a liberdade se torna visível, percebe que a discussão é outra (por acaso, publiquei um texto no ano passado, na Revista do Museu Histórico de Berlim, com o título “E se Hegel tivesse razão?” sobre estas coisas). Pode-se concluir, após uma discussão séria, que há elementos racistas na formulação? Sim. Mas essa conclusão exige trabalho conceitual, não um impulso moral. Exige conhecer o edifício inteiro, não apenas a porta de entrada.
Já dei uma aula sobre “o cânone”, na qual discutimos um texto famoso de David Hume, “On National Character”. Muitos estudantes chegaram à aula já predispostos. Hume, disseram, era um racista, prova disso seria uma nota de rodapé em que declara nunca ter encontrado “um único negro que se tenha distinguido pelo intelecto”, algo assim. Leram a frase e fecharam o livro. Perguntei-lhes, então, o que precisariam de saber para compreender o que Hume quis realmente dizer e o que não quis. Foi difícil responder. Seria preciso conhecer o empirismo de Hume, a sua confiança obsessiva na evidência dos sentidos e perceber que, para alguém com esse método, bastaria mostrar-lhe hoje uma biblioteca africana para corrigir a generalização. Aliás, suspeito que, se Hume ressuscitasse, bastariam dez minutos de conversa para admitir o erro e, talvez, pedir desculpa com o sotaque escocês de Sir Ferguson, o lendário treinador do Manchester United. Mas, sobretudo, era preciso entender a intenção do texto. Não era um tratado sobre a inferioridade de povos, mas um ensaio sobre o carácter singular das instituições políticas britânicas, que Hume, bem ou mal, considerava uma excepção histórica. Sem este pano de fundo, a nota de rodapé torna-se o texto inteiro. Com ele, a nota é apenas um erro metodológico dum filósofo genial, não necessariamente uma doutrina racial. É a diferença entre ler um filósofo e ler um fantasma que projectámos sobre ele.
É este vazio de formação, acompanhado dum excesso de convicção, que cria o fenómeno que observo do leitor que inventa o texto. Ele não faz isso por má-fé. Faz porque não sabe que não sabe, não tem instrumentos para distinguir argumento de opinião, não reconhece a complexidade do campo como campo e, talvez, foi educado num espaço público onde as emoções valem mais do que a análise. E tudo isto é agravado pela polarização. A polarização funciona como um “software” de leitura. Ele pré-instala sentidos, filtra as frases e distorce o significado. A tarefa hermenêutica do leitor deixa de ser compreender e passa a ser classificar. “Quem está contigo?”, “quem está contra ti?”, “para quem trabalhas?”. É infantil, mas comum. O resultado é que a crítica raramente incide sobre o que escrevemos, mas sim sobre a função que o leitor atribui ao nosso texto na sua batalha moral privada. Tornamo-nos personagens no teatro interno do leitor e não interlocutores epistemológicos.
Saber que não sabemos não é só uma virtude académica como também uma condição mínima da vida democrática. É o que permite ao leitor entrar num texto sem se instalar como soberano. É o que o permite suspender a convicção para dar lugar à curiosidade. Sem essa suspensão, não há diálogo, há apenas um monólogo agressivo proferido à porta de outro texto. Por isso, quando alguém me critica por algo que não escrevi, ou não disse, não é apenas uma falha de leitura ou de compreensão. É um sintoma civilizacional. Revela como estamos a perder as condições para o debate público, isto é, a capacidade de ler devagar, de escutar argumentos, de reconhecer limites, de admitir que a nossa primeira impressão não é necessariamente a verdade.
A convivência social exige uma ética da interpretação. E essa ética começa na forma como lemos e ouvimos uns aos outros. Talvez um dia possamos regressar a isso. Até lá, continuarei a encontrar-me com versões alternativas de mim mesmo, versões que nunca escrevi nem disse, mas que as pessoas, generosamente, compõem em meu nome. O que vale é que tudo isso dá à muita gente a oportunidade de se sentir profundamente erudita. Quem sou eu para lhes negar o prazer dessa sensação?
Miro Guarda
Como o Professor uma vez disse: há erudição na ignorância. 🙈😜😂😂😂
Mussá Mohamad Ibrahimo
Um festival folclórico de "Espantalhos" no ambiente de debate... Distorcem tudo!
Ser - Huo
Zee Mavye , se recorda do que eu dizia para si ontem, que estavas a dar um significado totalmente criativo e paralelo àquele que era a substância do meu texto, ou pelo menos, àquilo que eu intencionava que fosse o sumo do texto? É disto que falava, é desta tendência de NOS encontrarmos nós mesmos no texto de alguém, e deixarmos tal alguém se perder no seu próprio texto, porque nós passamos a construir nossos próprios textos e significados, que às vezes perpassam o enunciado. E isso nem é o problema, pois é óbvio e respeitável que cada pessoa percorre e interpreta um texto conforme suas ferramentas. O interessante começa quando o autor do texto diz se predispõe a retocar a interpretação, e a resposta ser "não não, eu entendi e bem". Quando é isso, a conclusão é simples: o leitor entendeu o quer queria, porque se quisesse entender a enunciação, se dava espaço de perceber o que enunciador corrige. Bom dia, Rui Pinto Martins
Zee Mavye
Ser - Huo Me identifiquei aqui. Mas também não seria um daqueles casos em que, ao escrevermos certos texto pensamos que o nosso leitor tem as mesmas ferramentas (informação) que nos permitem expandir o nosso saber sobre tal matéria e acabamos deixando de lado a ideia de escrever de modo que qualquer um possa pelo menos ter o alcance do que se pretende transmitir, ou no mínimo, colocarmos no texto, as referências complementares para que se possa recorrer a elas, caso se pretenda aprofundar?!? Nota que Comentei apenas o teu "comentário", agora deixa me ir ler o texto do prof😂
Zee Mavye
Ser - Huo pronto, depois de ler o professor Elisio Macamo, não sobram dúvidas mesmo que, o melhor a fazer quando há um assunto do qual desconheces a substância, o melhor é passar... Nada pior que comentar sobre matérias das quais a ignorância te torna ridículo... E a mania que temos de polarizar o debate é de facto desconfortável e inimiga da democracia... Mas me parece que voltamos àquela época dos debates acesos sobre a FRELIMO e a RENAMO onde não se reconhecia a existência dos neutros... Obrigatoriamente tinhas que pertencer a uma ou outra força... Nossa construção,

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