O povo como espelho
Volto, por puro masoquismo, e por estar distante, à entrevista que a MBC TV fez ao líder do Anamola para insistir numa questão que é sempre incompreendida na nossa esfera pública. A tendência é quase sempre de ver a crítica como rejeição do criticado, quando a ideia devia ser ver se há algo útil nela que possa ser aproveitado para a melhoria do que se faz. Eu sou simpatizante da Frelimo, mas a critico na esperança de que ela melhore. É verdade que a sua resistência à crítica já me afastou muito dela, mas, no essencial, mantenho a esperança de que ela aprenda com a interpelação crítica. Há gente que reage às críticas que faço a VM dizendo que apesar disso prefere a ele. Acho isso bom, pois o objectivo não é que quem gosta dele deixe de o fazer. O objectivo é que saiba ainda melhor porque gosta dele.
Na entrevista à MBC, ele fala constantemente sobre o povo. Mas o povo que invoca não é uma comunidade de cidadãos diversos, com opiniões, interesses e histórias distintas. É uma entidade moral única, homogénea, que é depositária da verdade e da dor. “O povo está em busca do seu reencontro”, afirma ele na entrevista; “quero lutar a favor do povo em si”; “o Parlamento não é casa do povo”. Em todas estas frases, o povo aparece não como sujeito político plural, mas como categoria moral absoluta. Há um politólogo alemão, Jan-Werner Müller, de Princeton, que tem mostrado que o coração do populismo reside exactamente nessa convicção, isto é, na ideia de que só há um povo verdadeiro e que o populista é o seu único intérprete legítimo. Não se trata apenas de oposição às elites (“sistema”), mas de apropriação da soberania popular. O populista não diz “represento o povo”, mas “sou o povo” e, por isso, quem discorda dele deixa de pertencer à comunidade moral da nação. A Frelimo fez isto em 1975. No mesmo momento em que criou a nacionalidade moçambicana, privou, com o seu discurso, muitos moçambicanos do usufruto dessa nacionalidade. Vem à mente Marx e a sua piada de que a história se repete como tragédia...
A entrevista com VM parece confirmar este padrão. Ele fala como mediador entre o povo e a verdade, e descreve a sua trajectória como sacrifício pessoal em nome dos outros. “Sou apenas o alto-falante através do qual o povo fala”, diz. “Se morrer a defender o povo, será uma morte feliz.” Este tipo de formulação, emocionalmente forte, transforma o povo em metáfora da biografia do líder. O sofrimento colectivo é lido à luz do sofrimento individual; a fé do povo é o prolongamento da sua própria fé, e a injustiça que o atinge é a injustiça que atinge todos. O resultado é que o povo desaparece como pluralidade concreta e reaparece como espelho da consciência do líder. Já não é uma multiplicidade de vozes, mas uma massa silenciosa que o líder traduz. A sua missão não é organizar a vontade popular por meio de instituições. É revelá-la por meio de testemunho moral. É o que Müller chama de monismo moral, portanto, a negação da diferença interna e a recusa do conflito legítimo como parte constitutiva da democracia.
Essa lógica messiânica leva inevitavelmente à desconfiança em relação às instituições. Na entrevista, VM apresenta o Parlamento como “bolsa de negócios”, critica a “disciplina partidária” e descreve os partidos como entidades que colocam os seus estatutos “acima da Constituição”. Há muito de verdadeiro nesta crítica, mas o que a torna populista é o salto seguinte, que consiste na crença de que o problema não é institucional, mas moral, e de que bastará a virtude dos líderes para restaurar a pureza do Estado. Acho que, neste contexto, insere-se a sua proposta de reformar o Conselho de Estado para o tornar “mais interactivo com o povo”. A ideia, à primeira vista, soa democrática, mas, examinada de perto, revela uma confusão perigosa. O Conselho de Estado é um órgão consultivo do Presidente, não um espaço de representação popular. O seu papel é deliberar com reserva e ponderação, não substituir a esfera pública. Ao propor torná-lo “interactivo”, VM parece querer fundir o povo com o poder, eliminando as mediações que sustentam a democracia representativa. Este é um raciocínio simples de entender, pensava eu!
Como Müller adverte, este é o passo típico do populismo que consiste na promessa de devolver o poder directamente ao povo, mas, na prática, concentrando-o na figura carismática que fala em seu nome. O povo entra nas instituições apenas como imagem, não como sujeito real. A interactividade torna-se “performance” na medida em que o líder “ouve o povo” enquanto o povo o aclama. O resultado não é mais democracia, mas um simulacro participativo em que o poder se legitima pelo sentimento, não pela regra. Nada de novo aqui: a Frelimo fez-nos passar por isto em 1975. Mesmo a ideia de realizar uma auscultação paralela à do Diálogo Inclusivo é sintomática deste equívoco. Ele nao faz uma auscultação ao “povo”, mas sim aos simpatizantes do Anamola que, por sua vez, se tornam no verdadeiro povo, pois povo só há um, a saber, aquele que o segue. Nós os outros somos os “fantoches” do “sistema” que, nos tempos gloriosos da Frelimo, devíamos ser mandados aos campos de reeducação para aprendermos a ser povo.
Nada disso decorre de má-fé. VM fala com convicção sincera e genuína paixão cívica como, aliás, foi o caso com a Frelimo em 1975. Mas é justamente por isso que o problema é sério. Quando a política se confunde com missão moral, ela perde o seu centro racional que está nas regras, nos procedimentos e na aprendizagem colectiva. Falar em nome do povo, sem mediações, pode parecer nobre, mas conduz ao mesmo destino que a indiferença das elites, isto é, à erosão do espaço público como lugar de deliberação. O desafio não é “aproximar o Conselho de Estado do povo” no sentido literal, mas aproximar as decisões do Estado da razão pública, isto é, de processos transparentes, discutíveis e sujeitos à crítica. Essa aproximação exige instituições fortes, não pontes carismáticas. O populismo promete atalhos e os atalhos, em política, quase sempre voltam ao ponto de partida.
Repito: este texto não é um ataque apesar do glorioso esforço que algumas pessoas empreendem para o entender como tal. É uma contribuição para o amadurecimento do debate interno do Anamola e, por extensão, da oposição moçambicana. A política não se constrói de aplausos, mas de críticas que ajudam a pensar melhor. Um partido que queira representar o futuro do país deve ser capaz de ouvir, discutir e transformar as objecções em reflexão estratégica. Infelizmente, tanto na Frelimo como na oposição, persiste a ideia de que a crítica é sinónimo de ódio ou de traição. Essa alergia ao contraditório é a raiz comum da nossa estagnação. A força de um projecto político não pode residir na pureza dos seus líderes, mas na capacidade de articular instituições, ideias e cidadãos à volta dum horizonte partilhado. O populismo moral pode inspirar, mas não vai governar. É minha convicção que mais intérpretes do povo nao nos levam longe. O que nos pode levar longe são instituições que tornem o povo audível, políticas que o tornem participante e dirigentes que o tratem como comunidade pensante, não como massa sofredora.
Se o Anamola quiser ser uma alternativa real, terá de passar do sentimento à estrutura, da virtude individual à ética pública e da retórica da pureza à aprendizagem democrática (se os seus seguidores mais fanáticos o deixarem, claro, aqueles que preferem tapar os ouvidos a enfrentar com coragem a crítica legítima). Só com isso é que o “povo”, esse conjunto plural, contraditório e vibrante, deixará de ser espelho e voltará a ser sujeito. E só isso vai libertar os mais fanáticos da sua fé e fazer deles membros mais responsáveis do partido que defendem.
Alcídes André de Amaral
E é contra esse "Povo" aí que devemos lutar contra, abate-lo constantemente. Ele é quem traz a intolerância, e não devemos ser tolerantes com a intolerância.
Elcídio Bila
Muito bonito, Professor. Eu aprecio a forma (mancha-gráfica). Se é coerente ou não é outro assunto. Ai precisaria de mais tempo…
Jose Luis Barbosa Pereira
Apreciei positivamente esta reflexão Prof Elísio.Ajuda-nos a perceber o quão é difícil ser "político" no nosso Moz. Tarefa ingrata mesmo!
Kasswamy Tivane
Graças a Deus Moçambique ainda não chegou ao extremo de bi-polarização política como nos EUA, ou Brasil. Os partidos ainda tem muito a explorar sem temerem de um desequilíbrio, somente o partido no poder é que tem esse temor, porque já está bem implantado é que já não tem nada para ganhar a não ser para defender. Apesar dele ser qualificado como um partido da esquerda, mas na realidade da esquerda ele nada tem. O VM7 também ainda não tem nenhuma orientação política, apesar dele falar de liberal Ubundo isso não sabemos para onde ele quer levar a sociedade. A China tem políticas económicas liberais mais centralizadas.
Eu escutava a a rádio da rádio “A Voz da África Livre” Eles usavam muito o no “Povo” e dia seguinte queimavam machimbombos, aldeias, escolas, hospitais; isto é destruíam tudo o que o povo usava e matavam o próprio povo. De outro lado tínhamos o Samora que sacrificava-se sem medir forças pelo povo, mas poucos lhe intendiam. Em nome do povo ganha se o populismo.
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