Gostaria de ver esta página em uma versão apenas com texto que carrega mais rápido?
Sim
Veículos do exército moçambicano patrulham estradas na região de Gorongosa, no centro de Moçambique, em Maio de 2016.

“O Próximo a Morrer”

Abusos das Forças de Segurança do Estado e da Renamo em Moçambique

Veículos do exército moçambicano patrulham estradas na região de Gorongosa, no centro de Moçambique, em Maio de 2016. © 2016 John Wessels /AFP/Getty Images

Síntese

Entre Novembro de 2015 e o início de um cessar-fogo em Dezembro de 2016, as forças de defesa e segurança de Moçambique e o grupo armado do maior partido da oposição do país, a Resistência Nacional Moçambicana ou Renamo, cometeram graves abusos nas províncias centrais do país. Este relatório documenta desaparecimentos forçados, detenções arbitrárias e a destruição de propriedade privada, alegadamente levados a cabo pelas forças governamentais, bem como assassinatos políticos, ataques aos transportes públicos e o saque de postos médicos alegadamente cometidos pelas forças da Renamo.

Ao longo do ano de 2017, desde que o cessar-fogo foi declarado, a maioria das hostilidades e dos abusos dos direitos humanos relacionados com o conflito cessou. No entanto, o governo não cumpriu a sua obrigação ao abrigo da legislação internacional em matéria de direitos humanos de chamar os responsáveis de ambos os lados ​​por estes graves abusos, a prestar contas.

O relatório foca-se nos abusos cometidos nas províncias de Manica, Sofala, Tete e Zambézia. A Human Rights Watch documentou sete casos de desaparecimentos forçados — a detenção de um indivíduo pelo governo, que se recusa a fornecer informações sobre o seu paradeiro — e ouviu relatos credíveis de muitos outros casos. Os militares também detiveram arbitrariamente indivíduos que suspeitavam pertencerem ou apoiarem a Renamo ou o seu grupo armado e espancaram os detidos. Em vários casos, as casas e os bens dos detidos foram incendiados ou destruídos. Vários funcionários e ativistas da Renamo foram assassinados ou vítimas de tentativas de assassinato por agressores não identificados.

Numa resposta escrita às perguntas colocadas pela Human Rights Watch, o gabinete do presidente de Moçambique, Filipe Jacinto Nyusi, negou que as forças de defesa e segurança do governo tenham cometido abusos e rejeitou as alegações de desaparecimentos forçados, detenções arbitrárias, tortura e destruição de propriedade.

O grupo armado da Renamo, comandado pelo líder do partido, Afonso Dhlakama, esteve envolvido no rapto e homicídio de figuras políticas que trabalhavam com o governo ou com o partido no poder, a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) ou de indivíduos que a Renamo aparentemente suspeitava que eram informadores do governo. Combatentes armados da Renamo saquearam pelo menos cinco centros de saúde, pondo em causa ou negando o acesso a cuidados de saúde a milhares de pessoas em áreas remotas.

A esposa e a mãe de Manuel Fungulane, com a sua fotografia (homem à esquerda). Fungulane desapareceu em 13 de agosto de 2016, após ter sido detido por soldados do governo.  © 2017 Human Rights Watch

O grupo armado da Renamo também realizou emboscadas e ataques de atirador a transportes públicos, principalmente na estrada N1 nas províncias de Manica e Sofala. De acordo com o governo, 43 pessoas morreram e 143 ficaram feridas nestes ataques entre Novembro de 2015 e Dezembro de 2016.

O líder do partido, Dhlakama, admitiu ter dado ordens para atacar autocarros públicos que afirmou estarem a transportar soldados secretamente. No entanto, a Renamo rejeitou as alegações de assassinatos políticos como sendo "propaganda" do partido no poder. Em resposta às questões da Human Rights Watch, a Renamo forneceu uma lista com 306 nomes de membros do partido que foram alegadamente atacados ou assassinados pelas forças governamentais entre Março de 2015 e Dezembro de 2016.

O governo moçambicano não investigou adequadamente os alegados abusos documentados neste relatório. Vítimas e testemunhas dos abusos do governo contaram à Human Rights Watch que nunca foram contactadas pelas autoridades, nem tampouco foram informadas sobre as investigações. O gabinete do presidente não respondeu à pergunta da Human Rights Watch sobre o estado das investigações.

O facto de violações de direitos desta gravidade saírem impunes, algo que prevalece em Moçambique, encoraja o cometimento de novos abusos. Entre os incidentes documentados neste relatório, o caso ainda por resolver no distrito da Gorongosa de Abril de 2016, em que moradores denunciaram a existência de uma vala comum e em que pelo menos 15 corpos foram encontrados por baixo de uma ponte, destaca não só a falta de investigação do governo, como também a aparente obstrução da justiça. As autoridades locais não agiram com a devida celeridade na recolha dos corpos, tendo depois anunciado que o estado de decomposição impossibilitara as autópsias. Um comité parlamentar formado em Maio de 2016 para avaliar o incidente, ainda não apresentou as suas conclusões.

O governo deve cumprir as obrigações que lhe incumbem no âmbito do direito internacional em matéria de direitos humanos e investigar de forma imparcial e minuciosa as denúncias de abusos graves, seja pelas forças governamentais ou pela Renamo, e levar os responsáveis à justiça. O governo também deve criar uma base de dados nacional de pessoas desaparecidas, com informações detalhadas para ajudar a identificar e localizar quem foi detido, vítima de desaparecimento forçado ou assassinado.

Os parceiros internacionais de Moçambique devem pressionar o governo para investigar os abusos dos direitos humanos alegadamente cometidos por ambos os lados desde o final de 2015.

Recomendações

Para o Governo de Moçambique

  • Conduzir investigações rápidas, minuciosas e imparciais às alegações credíveis de tortura, desaparecimentos forçados, detenções arbitrárias e outros abusos graves cometidos por oficiais do governo e pelos seus agentes, inclusive nos casos em que as vítimas ou as famílias destas não apresentaram queixa formal. Processar adequadamente os responsáveis, independentemente da sua patente, de acordo com os padrões internacionais de julgamento justo.
  • Emitir ordens claras para que todos os membros das forças de defesa e segurança, incluindo comandantes, sejam responsabilizados por cometer ou ordenar abusos, inclusive como responsabilidade de comando.
  • Conduzir investigações rápidas, minuciosas e imparciais às alegações credíveis de abusos levados a cabo por membros da Renamo e pelos seus agentes e processar adequadamente os responsáveis de acordo com os padrões internacionais de julgamento justo.
  • Garantir que todos os indivíduos apreendidos por infrações penais sejam prontamente apresentados a um juiz, nos períodos legalmente definidos, e que os processos judiciais cumpram com os padrões internacionais.
  • Apresentar prontamente, informação sobre os indivíduos detidos, às suas famílias, incluindo o seu paradeiro, as acusações de que são alvo, se for o caso, e permitir o rápido acesso dos detidos a aconselhamento jurídico e aos seus familiares.
  • Condenar pública e inequivocamente as detenções arbitrárias, tortura, maus-tratos e desaparecimentos forçados e deixar claro que os oficiais do governo responsáveis serão devidamente disciplinados ou processados judicialmente.
  • Criar uma base de dados nacional de pessoas desaparecidas que inclua informações para ajudar a localizar detidos e vítimas de desaparecimentos forçados e de assassinatos, tais como informações detalhadas sobre a vítima, circunstâncias e local de detenção e quaisquer investigações ao caso.
  • Convidar o Gabinete do Alto Comissário para os Direitos Humanos e os procedimentos relevantes e especiais da Organização das Nações Unidas — incluindo o Grupo de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados ou Involuntários; o relator especial sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias; e o relator especial sobre tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes — a visitar Moçambique para investigar e fazer recomendações com vista a garantir justiça e responsabilização, bem como recomendações para uma reforma das forças de segurança, para que ajam de forma independente e profissional.
  • Providenciar indemnizações adequadas e rápidas às vítimas de detenções arbitrárias, tortura, maus-tratos, desaparecimentos forçados e assassinatos ilegais cometidos por oficiais do governo ou pelos seus agentes.
  • Ratificar a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados.

 

Para o Parlamento Moçambicano

  • Publicar prontamente as conclusões da investigação da Comissão Parlamentar de Assuntos Constitucionais e Jurídicos e Direitos Humanos aos homicídios no distrito da Gorongosa, província de Sofala, descobertos em Abril de 2016.
  • Realizar audiências públicas com altos oficiais do governo sobre a falha deste em investigar as alegações de desaparecimentos forçados, detenções arbitrárias, tortura e outros maus-tratos cometidos por oficiais.

Para a Renamo

  • Emitir ordens claras para que todos os membros e agentes da Renamo, incluindo comandantes, sejam devidamente punidos por cometerem ou ordenarem abusos, incluindo raptos, assassinatos ilegais e ataques a transportes públicos e centros de saúde.
  • Garantir que os mecanismos disciplinares providenciam um julgamento adequado, incluindo audiências com um juiz imparcial em que o acusado pode apresentar uma defesa e tem a assistência de um advogado.

Para a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (CDAA):

  • Pressionar o governo de Moçambique a investigar de forma credível e imparcial todas as alegações de detenção arbitrária, tortura, maus-tratos, e desaparecimentos forçados por membros das forças de segurança do governo e dos seus agentes.
  • Urgir as autoridades de Moçambique a implementar as recomendações presentes neste relatório.

Para os Doadores Internacionais

  • Reavaliar a assistência financeira e de outro tipo, incluindo formação e capacitação, para garantir que as instituições envolvidas em violações dos direitos humanos não continuam a receber apoio, a menos que o governo moçambicano tome medidas concretas para acabar com estas violações e para responsabilizar os seus autores.
  • Disponibilizar formação e outros apoios, caso o governo tenha demonstrado um compromisso genuíno com a reforma, para reforçar a capacidade dos procuradores e investigadores moçambicanos.
  • Garantir que qualquer assistência prestada às forças de segurança de Moçambique promove — ao invés de prejudicar — o cumprimento por parte do governo das suas obrigações internacionais em matéria de direitos humanos.
  • Apoiar, caso o governo tenha demonstrado um compromisso genuíno com a reforma, os mecanismos internos de supervisão e responsabilização das forças de segurança.
  • Introduzir publicamente as preocupações relevantes em matéria de direitos humanos, incluindo questões de responsabilização, no diálogo político com o governo de Moçambique e monitorizar o cumprimento deste dos padrões internacionais de direitos humanos.
  • Urgir as autoridades de Moçambique a implementar as recomendações presentes neste relatório.
 

 

Metodologia

Este relatório baseia-se principalmente na investigação realizada em três missões de apuramento de factos em Moçambique em 2017: em Abril na cidade da Beira e no distrito da Gorongosa, na província de Sofala; em Junho nos distritos da Gorongosa e Chibabava, na província de Sofala, e nos distritos de Barue e Gondola, na província de Manica; e em Novembro no distrito de Nhamatanda, na província de Sofala. No total, a Human Rights Watch entrevistou 71 pessoas, incluindo vítimas de abusos e familiares destas, bem como testemunhas de abusos cometidos por forças de segurança do governo ou pelo grupo armado da Renamo. Também conversámos com agentes da polícia, soldados, políticos, ativistas e jornalistas. As entrevistas foram realizadas em português e ndau, na presença de um intérprete quando necessário.

Algumas das pessoas entrevistadas pediram para permanecer anónimas por temerem pela sua segurança. Todas as instâncias em que se utilizaram pseudónimos são referidas nas notas de rodapé. Em alguns casos, escolhemos não divulgar informação adicional para proteger a identidade da pessoa em causa.

A Human Rights Watch informou todos os entrevistados sobre a natureza e o propósito de nossa investigação, bem como das nossas intenções de publicar um relatório com a informação recolhida. Informámos cada um dos potenciais entrevistados de que não estavam obrigados a falar connosco, que a Human Rights Watch não presta serviços humanitários ou jurídicos e que poderiam interromper a entrevista ou recusar-se a responder a qualquer pergunta sem quaisquer consequências adversas. Obtivemos consentimento oral para todas as entrevistas e os entrevistados não receberam qualquer compensação por terem falado com a Human Rights Watch.

Em 17 de Agosto de 2017, a Human Rights Watch enviou uma lista de perguntas sobre alegadas violações de direitos humanos por parte das forças de segurança ao presidente moçambicano Filipe Nyusi, que atua como comandante em chefe das forças de defesa e segurança (ver Apêndice I). O gabinete do presidente respondeu em 9 de Outubro a algumas das questões (ver Apêndice II), respostas essas que incluímos em momentos relevantes no relatório.

Em 12 de Setembro de 2016, a Human Rights Watch enviou uma carta a procuradora-geral de Moçambique, com cópia para os ministros da justiça e do interior, a questioná-los sobre o estado das investigações aos assassinatos com motivação política (ver Apêndice III). Até o dia 19 de Dezembro de 2017, nenhum dos gabinetes havia respondido.

Em 17 de Agosto de 2017, a Human Rights Watch enviou uma carta ao líder da Renamo, Afonso Dhlakama, chefe do partido e do seu grupo armado, contendo perguntas sobre os alegados abusos de direitos humanos cometidos pelo grupo armado da Renamo (ver Apêndice IV). A Renamo respondeu em 30 de Agosto de 2017 (ver Apêndice V) e as suas respostas foram incluídas no relatório em momentos relevantes.

 

 

I. Contextualização

Em 1977, dois anos após Moçambique ter conquistado a sua independência de Portugal, eclodiu uma sangrenta guerra civil entre as forças governamentais controladas pelo partido no poder, a Frente de Libertação de Moçambique (ou Frelimo) e a Resistência Nacional Moçambicana (ou Renamo). Estima-se que tenham morrido cerca de um milhão de pessoas durante a guerra de 16 anos, e que cinco milhões tenham sido deslocadas.[1] Ambos os lados cometeram numerosos crimes de guerra contra civis, incluindo assassinatos em massa, violência sexual, tortura e utilização de crianças-soldados. Em Novembro de 1990, aquando das negociações diretas entre as duas fações em conflito, o parlamento moçambicano aprovou uma nova constituição que estabeleceu um sistema multipartidário com eleições regulares e que garantiu o respeito pelos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.

As duas fações assinaram um acordo de paz para pôr fim à guerra civil em 4 de Outubro de 1992. Nove dias depois, o parlamento ratificou uma lei de amnistia tanto para as forças governamentais como para os rebeldes da Renamo, que protegia incondicionalmente os membros destas forças, das acusações de crimes de guerra e outras atrocidades cometidas durante o conflito. Devido à lei de amnistia, ninguém foi responsabilizado pelos crimes de guerra.

Como parte do acordo de paz, o governo permitiu que o líder da Renamo, Afonso Dhlakama, mantivesse uma guarda privada armada de cerca 300 homens. Falhas sucessivas para desmobilizar outros combatentes da Renamo ou integrá-los no exército nacional incentivaram muitos destes homens a juntar-se informalmente à guarda particular de Dhlakama. Hoje, crê-se que a Renamo possui uma força armada de cerca de 700 homens.[2] Outras fontes credíveis sugerem que a força pode chegar a 2500 homens.[3]

Moçambique realizou as primeiras eleições multipartidárias em Outubro de 1994. O partido no poder, a Frelimo, manteve o controlo, vencendo tanto as eleições presidenciais com 53% dos votos, como as eleições parlamentares com 44%. A Renamo conseguiu 34% dos votos nas eleições presidenciais e 38% na votação parlamentar.[4]

A Renamo e Dhlakama quase venceram as segundas eleições de Moçambique, em Dezembro de 1999, mas, desde então, têm rejeitado os resultados de todas as eleições moçambicanas, acusando o partido no poder de fraude eleitoral. Em Novembro de 2000, durante um protesto da Renamo contra os resultados das eleições de 1999, a polícia abriu fogo contra manifestantes alegadamente violentos. Quarenta e uma pessoas morreram, incluindo seis agentes da polícia. Duzentas pessoas ficaram feridas. Mais de 200 simpatizantes da Renamo foram detidos.[5]

A tensão entre o governo liderado pela Frelimo e a Renamo reacendeu-se em Abril de 2013, quando o grupo armado da Renamo invadiu uma esquadra de polícia em Muxungue, matando pelo menos quatro agentes.[6] Ocorreram conflitos armados nas províncias de Inhambane, Manica, Sofala, Tete e Zambézia e o governo invadiu as antigas bases militares da Renamo na província de Sofala.[7] O governo nunca comunicou os números oficiais de vítimas destes confrontos.

Em 5 de Setembro de 2014, o governo moçambicano e a Renamo assinaram um novo acordo de paz que pediu o desarmamento dos combatentes da Renamo e a sua integração no exército e polícia nacionais.[8] O acordo foi por água abaixo em quatro meses, após a Renamo ter alegado que o governo não conseguiu integrar os seus combatentes. O governo acusou a Renamo de se recusar a fornecer uma lista dos combatentes a integrar.

Em Outubro de 2014, a Frelimo ganhou as eleições parlamentares e Filipe Jacinto Nyusi tornou-se presidente. A Renamo ganhou 89 dos 250 lugares da assembleia nacional, mas contestou os resultados e prometeu governar seis das 11 províncias do país, nas quais, com base na sua própria contagem, afirmou ter recebido a maioria dos votos.

Em Fevereiro de 2015, o governo anunciou que iria iniciar uma operação para desarmar o grupo armado da Renamo pela força. A Renamo resistiu à operação, dando origem a confrontos violentos frequentes nas províncias centrais de Manica, Sofala, Tete e Zambézia. Em Junho de 2015, os 23 observadores militares estrangeiros em Moçambique, que haviam chegado em Setembro de 2014, para monitorizar o desarmamento e a integração das forças da Renamo, deixaram o país.[9] A Renamo exigiu o controlo de metade dos altos cargos das forças armadas como condição prévia para fornecer ao governo uma lista dos seus homens armados. O governo rejeitou o pedido, paralisando as negociações entre os dois lados. Em Julho de 2016, foi lançado um esforço de mediação internacional liderado por Mario Raffaelli, representante da União Europeia. Em Dezembro, após uma conversa telefónica publicamente anunciada com o presidente Nyusi, o líder da Renamo, Dhlakama, anunciou um cessar-fogo unilateral.

Em Janeiro de 2017, o presidente Nyusi dispensou a equipa de mediadores e anunciou a criação de uma equipa multidisciplinar para planear a desmobilização dos combatentes da Renamo, a sua integração nas forças de segurança do Estado e a descentralização do poder político. O último ponto – permitir que os governadores provinciais sejam eleitos em vez de nomeados pelo presidente – era uma das exigências da Renamo para pôr termo aos seus ataques. Em 7 de Agosto de 2017, o presidente Nyusi e Dhlakama encontraram-se pela primeira vez na mata da Gorongosa, naquele que, para muitos analistas, foi um importante passo para a paz.[10] Aquando da redação deste relatório, o cessar-fogo ainda estava em vigor.

 

 

 

II. Violações Cometidas Pelas Forças de Defesa e Segurança do Governo

A Human Rights Watch documentou uma série de violações graves dos direitos humanos cometidas pelas forças de defesa e segurança do governo nas províncias centrais de Manica e Sofala entre Novembro de 2015 e Dezembro de 2016, altura em que o mais recente cessar-fogo entrou em vigor. Estas incluem desaparecimentos forçados, detenções arbitrárias, tortura e outros maus-tratos sob custódia, bem como a destruição de bens.

Estes abusos violam as obrigações de Moçambique enquanto Estado-Parte do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP), da Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Punições Cruéis, Desumanos ou Degradantes e da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, entre outros tratados.[11]

As conclusões da Human Rights Watch são consistentes com o relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) que, em meados de 2016, comunicou que as forças de segurança do governo estiveram envolvidas em execuções sumárias, saques, destruição de propriedade, violações e maus-tratos de prisioneiros.[12] Em 2016, o ACNUDH disse ter recebido informação de “fontes credíveis” de que pelo menos 14 oficiais da Renamo foram mortos ou raptados em todo o país no primeiro trimestre de 2016. O governo moçambicano não respondeu publicamente às alegações do ACNUDH.

A organização moçambicana de direitos humanos Liga dos Direitos Humanos (LDH), disse que as forças de segurança do governo raptaram e executaram sumariamente pelo menos 83 pessoas nas províncias de Manica, Sofala, Tete e Zambézia entre Novembro de 2015 e Dezembro de 2016, mas não apresentou dados que permitissem corroborar estas alegações.[13] A maioria destas pessoas eram membros da oposição que o governo aparentemente determinou que estavam a ajudar os combatentes da Renamo, disse a LDH.

Em Outubro de 2016, a Renamo entregou à Human Rights Watch uma lista que continha os nomes dos seus membros e oficiais que alegam terem sido detidos ou assassinados entre as eleições gerais de Outubro de 2014 e Outubro de 2016, com detalhes como locais e datas. A mesma lista foi publicada no boletim do partido, "A Bancada", que diz que os indivíduos da lista foram assassinados por um "esquadrão da morte" ligado ao governo.[14]

Em 30 de Agosto de 2017, a Renamo entregou à Human Rights Watch outra lista detalhada que continha nomes de 306 membros e oficiais que afirmava terem sido atacados ou assassinados por um "esquadrão da morte do governo" entre Setembro de 2015 e Dezembro de 2016 nas províncias de Nampula, Zambézia, Tete, Manica, Sofala, Inhambane, bem como na capital, Maputo. A lista inclui os nomes, datas, locais e circunstâncias básicas de cada caso. A Human Rights Watch não conseguiu verificar de forma independente todos os casos da lista, que incluíam os casos de altos cargos políticos referidos neste relatório, que foram aparentemente assassinados por motivos políticos, bem como os assassinatos de outros oficiais da Renamo que foram divulgados na comunicação social.

Em Agosto de 2017, a Human Rights Watch enviou uma carta ao presidente Nyusi, na sua qualidade de  comandante em chefe das forças de defesa e segurança, na qual enumerou as várias alegações de abusos e solicitou uma resposta oficial. O Gabinete do Presidente respondeu, em 9 de Outubro de 2017, que as informações recebidas do Ministério do Interior e do Ministério da Justiça, dos Assuntos Constitucionais e Religiosos não levaram a "concluir que os alegados abusos de direitos humanos ocorreram" (ver Apêndice I).

Desaparecimentos Forçados

A Human Rights Watch documentou sete casos de aparente desaparecimento forçado, todos eles na província de Sofala, e ouviu relatos credíveis de muitos outros casos na mesma província. Familiares e amigos dos indivíduos alegadamente desaparecidos partilharam detalhes dos casos e das tentativas fracassadas das famílias de localizar os desparecidos. Disseram que os oficiais do governo não conseguiram dar-lhes informações sobre o paradeiro dos seus familiares, apesar dos seus repetidos pedidos.

Os desaparecimentos forçados são definidos pelo direito internacional como a detenção de um indivíduo por oficiais do Estado ou seus agentes, seguido de uma recusa em reconhecer a privação de liberdade ou em revelar o destino ou o paradeiro do indivíduo.[15] Moçambique tem a obrigação legal internacional de tomar medidas adequadas para investigar os alegados desaparecimentos forçados levados a cabo por oficiais ou seus agentes e de levar os responsáveis à justiça.[16] 

Duas mulheres que moravam no bairro de Munhava, na cidade da Beira, capital da província de Sofala, disseram à Human Rights Watch que os seus maridos, José João Munera e Manuel João Munera, moradores da cidade da Beira, desapareceram em 16 de Abril de 2016, após se terem apresentado na esquadra de polícia da cidade da Gorongosa. Os homens foram convocados à esquadra, disseram ambas as mulheres, a propósito da detenção de outros dois homens, José e Tioto, que trabalhavam para Manuel. Nenhum dos quatro homens foi visto nem ouvido desde então. A esposa de José Munera disse:

O irmão do meu marido veio aqui pedir ao meu marido para acompanhá-lo a Gorongosa, onde dois dos seus trabalhadores tinham sido detidos pela polícia. No sábado, 16 de Abril de 2016, quando o meu marido estava de folga, foram até Gorongosa. Às 16:00, ligaram-nos para nos dizer que tinham chegado à esquadra... Às 18:00, liguei-lhe e o telefone ficou a tocar.[17]

A esposa de José Munera disse que foi à esquadra de polícia da Beira em 18 de Abril, juntamente com a esposa de Manuel, e que os agentes da polícia ligaram à esquadra da Gorongosa. A polícia recebeu a confirmação de que José e Manuel lá tinham estado e de que tinham sido levados para um quartel do exército, disseram ambas as mulheres. "Até ao momento, não sei para onde foram depois do quartel", disse a esposa de José.

Uma foto dos irmãos José João Munera e Manuel João Munera. Os dois homens desapareceram em 16 de Abril de 2016, após se terem apresentado na esquadra de polícia da cidade da Gorongosa.  © 2016 Human Rights Watch

A esposa de Manuel disse que a família do marido foi a Gorongosa à procura dos dois irmãos, mas não teve sucesso. Alguns moradores da zona disseram à família que a polícia também tinha detido os dois trabalhadores de Manuel.

Quando questionados sobre o caso em Abril de 2017, dois polícias da cidade da Beira, que falaram com a Human Rights Watch em separado, disseram que não se lembravam do caso por ter acontecido "há muito tempo". Em resposta às perguntas da Human Rights Watch, o gabinete do presidente Nyusi disse que o governo não tinha registo de ter detido os quatro homens.

O presidente do municipio da Beira, Daviz Simango, disse ter questionado a sua equipa sobre José João Munera, que trabalhara para o departamento de recolha de resíduos da cidade, e confirmou que este não ia trabalhar desde Abril de 2016. Relatos não confirmados indicam que Munera e o irmão foram detidos devido ao seu envolvimento com a Renamo, disse o presidente do municipio.[18] A esposa de Manuel Munera afirma que o marido não estava envolvido na política, dizendo que era apenas um comerciante que comprava milho na Gorongosa para vender na Beira.

Em Novembro de 2017, um agente da Polícia de Investigação Criminal (PIC) da Beira, que pediu para permanecer anónimo por medo de represálias, disse que houve pelo menos quatro outros casos de indivíduos desaparecidos na Gorongosa denunciados à polícia de investigação da Beira.[19] O agente recusou-se a partilhar mais detalhes dos casos, mas reconheceu que a polícia não abriu qualquer investigação, porque, segundo ele, "o país estava em guerra".[20]

Um agente da esquadra da Gorongosa, que também pediu anonimato, disse que todos os casos relacionados com o "conflito armado" foram geridos pelas forças especiais do exército. Disse que a polícia tinha ordens para entregar ao exército todos os detidos ligados à Renamo. Quando lhe solicitámos que fornecesse um contacto nas forças especiais do exército, o oficial disse que não tinha permissão para fornecer essa informação.[21]

Noutro caso, um amigo de Timóteo Bernardo, um condutor de mototáxi, de 27 anos, disse à Human Rights Watch que, em 16 de Fevereiro de 2016, Bernardo foi parado num posto de controlo em Mapombwe, perto da Gorongosa, por soldados do exército. Os soldados pediram a sua identificação e, sem explicação, levaram-no num veículo blindado. O amigo disse:

Levaram [o Bernardo] para dentro da tenda em Mapombwe, amarraram-no e trouxeram-no de volta para a estrada principal. Quando as pessoas começaram a aproximar-se para ver o que se estava a passar, eles dispararam tiros para o ar para nos dispersar. Depois, levaram o meu amigo Timóteo para um veículo blindado e arrancaram.

Ele acrescentou que, desde aquele dia, nunca mais o viu nem falou com Bernardo.[22]

O amigo de Bernardo também disse que conhecia dois outros mototaxistas que trabalhavam com ele que também foram detidos em diferentes ocasiões, alegadamente porque terem sido acusados pelos soldados de transportar comida e dinheiro para combatentes da Renamo numa base perto da aldeia Casa Banana, na Gorongosa.

Noutro caso, Manuel Fungulane, 28 anos, foi alegadamente detido por soldados perto do posto de controlo de Mapombwe na Gorongosa em 13 de Agosto de 2016. Ninguém o viu ou falou com ele desde então. A sua esposa e a sua mãe disseram à Human Rights Watch que Fungulane estava a levar uma amiga para casa, na sua motocicleta quando os soldados pararam os dois e detiveram Fungulane. Os soldados algemaram Fungulane, colocaram-no num veículo do exército e disseram ao amigo para informar a família de que este tinha sido detido devido às suas ligações com a Renamo. A esposa e a mãe disseram que Fungulane era apenas um comerciante, sem qualquer atividade política.

Uma foto de Manuel Fungulane (à esquerda), que foi detido por soldados perto do posto de controlo de Mapombwe na Gorongosa, em 13 de agosto de 2016, e que não foi visto ou ouvido desde então.  © 2017 Human Rights Watch

Quando a esposa de Fungulane foi à polícia à procura do marido, disseram-lhe que devia procurá-lo na base militar de Mapombwe. Quando se dirigiu à base militar, disse que um guarda a mandou à esquadra de polícia na vila da Gorongosa. A mulher disse que procurou pelo marido em vão, juntamente com outras pessoas, durante várias semanas até que finalmente desistiram. "Nunca ninguém encontrou um corpo", disse. “Continuo à espera de que o meu marido volte para casa".[23]

Celestino Dez, vendedor de gasolina, desapareceu em 5 de Maio de 2016 e as autoridades recusaram-se a fornecer informações à sua família. O irmão de Dez disse que os militares o conheciam porque costumava vender-lhes gasolina. Testemunhas disseram que os soldados detiveram Dez na aldeia de Canda, espancaram-no e levaram-no num Ford Ranger semelhante aos que as forças de segurança do governo costumam usar. Disse que inicialmente pensou que o seu irmão tinha sido detido por desentendimentos relacionados com a venda de gasolina, mas rapidamente percebeu que se tratava de algo "mais grave". Disse:

Quando cheguei ao local algumas horas após a sua detenção, vi vestígios de [algo que parecia ser o] seu sangue no chão. As pessoas que testemunharam o caso disseram-me que os homens bateram no meu irmão, amarraram-no e colocaram-no no carro. Depois, arrancaram a alta velocidade com as luzes de emergência ligadas.[24]

O irmão de Dez disse que denunciou o caso à polícia. Os agentes recolheram provas no local, mas, posteriormente, não forneceram qualquer informação à família. Foi à base militar mais próxima, mas os oficiais disseram-lhe que nada sabiam sobre o caso.

“Desde esse dia, nunca mais vi o meu irmão”, disse.

Quando questionámos o irmão de Celestino Dez sobre os motivos que podem ter levado à sua detenção, este disse que o exército pode ter pensado que fazia parte da Renamo, pois já havia sido acusado no passado de vender gasolina aos combatentes da Renamo.

Na sua resposta à carta da Human Rights Watch, o Gabinete do Presidente não revelou se algum membro das forças de segurança do Estado fora responsabilizado pelo seu envolvimento nos desaparecimentos forçados.

Detenções Arbitrárias e Abusos Sob Custódia

Entre Novembro de 2015 e Dezembro de 2016, as forças de defesa e segurança do Estado detiveram arbitrariamente indivíduos suspeitos de estarem ligados ao grupo armado da Renamo e torturaram ou maltrataram alguns deles sob custódia. O governo ainda não divulgou qualquer informação sobre os membros ou apoiantes da Renamo que deteve ou acusou legalmente, apesar de porta-vozes da polícia terem alegado em várias ocasiões, que detiveram homens armados da Renamo.[25]

O gabinete do presidente, na sua resposta à carta da Human Rights Watch, não forneceu qualquer informação sobre as detenções e acusações dos suspeitos de serem combatentes ou membros da Renamo.

A Human Rights Watch entrevistou quatro homens que alegaram terem sido injustamente detidos e torturados pelas forças de segurança do Estado entre Maio e Junho de 2016. Estes homens foram entrevistados em separado e disseram à Human Rights Watch que as forças de defesa e segurança os acusaram de alimentar os homens armados da Renamo nas montanhas da Gorongosa, situação que negaram.

Um dos homens, o pastor de uma igreja em Tanzaronta, na região da Gorongosa, disse que soldados ao volante de um veículo blindado e de uma carrinha de caixa aberta, chegaram à sua igreja às 14:00 do dia 12 de Maio de 2016 e o detiveram. Explicou o seguinte:

Aproximaram-se de mim e um deles bateu-me na cabeça com uma arma. Depois, mandaram-me entrar no porta-bagagens do carro e levaram-me para a base militar. Quando chegámos, interrogaram-me até às 16:00 ou 17:00... Iam-me batendo enquanto me obrigavam a dizer que era combatente da Renamo.[26]

O pastor disse que viu mais oito homens detidos na base, um dos quais reconheceu como sendo mototaxista em Tanzaronta.

Disse que quando um comandante militar chamado Bambo chegou à base, este reconheceu-o como sendo pastor e ordenou aos soldados que o deixassem ir. Ao sair, o pastor disse que perguntou a um dos guardas o que acontecera aos outros oito homens detidos. O guarda disse que tinham sido mortos. O pastor disse que não viu o mototaxista nem os outros sete homens desde aquele dia.

Moradores da aldeia da Gorongosa disseram à Human Rights Watch que, durante a maior parte de 2016, soldados do governo e agentes da polícia de trânsito montaram postos de controlo nas estradas, onde paravam os transportes públicos e pediam aos passageiros para mostrarem os seus bilhetes de identidade. Os soldados impediam algumas das pessoas de seguirem caminho porque os seus nomes apareciam numa lista. Três moradores disseram ter visto soldados a arrancar pessoas de carros, a espancá-las à frente de outros passageiros e a levá-las algemadas para tendas perto do posto de controlo.

Tito, 33 anos, disse que um grupo de cerca de 20 soldados chegou a sua casa em Nyaranga na noite de 22 de Junho de 2016 e lhe disseram que o seu nome estava numa lista de pessoas para serem detidas devido à sua colaboração com a Renamo. Tito diz que os soldados, após terem verificado a sua identidade, colocaram-no na caixa aberta da sua carrinha, juntamente com quatro outros homens deitados com as mãos amarradas. Os soldados levaram os homens para uma floresta perto de Canda, onde lhes disseram para sair da carrinha, ajoelhar-se, entrelaçar os dedos das mãos atrás da cabeça e fechar os olhos, disse Tito. De seguida, os soldados dispararam tiros no ar.

“Depois, um soldado veio na minha direção e começou a gritar: ‘Você é da Renamo!’”, recordou Tito. "Eu respondi ‘Não, não sou'. Depois disse: 'Corre! Quero ver até onde consegues chegar. Eu levantei-me e comecei a correr. Desde aquele dia, nunca mais voltei a minha casa".[27] Um ano após o incidente, Tito disse que ainda vivia escondido com medo de ser assediado ou detido.

Em Agosto de 2016, os meios de comunicação locais revelaram que os residentes haviam encontrado seis corpos dentro de um carro incendiado numa floresta em Cheringoma, província de Sofala.[28] As autoridades disseram que as vítimas foram atacadas e mortas pela Renamo em 12 de Agosto. No entanto, dois homens que alegaram ter escapado ao ataque contaram uma versão diferente à estação de televisão local STV, num hospital onde estavam a receber tratamento.[29] Os homens acusaram as forças de segurança de raptar oito homens e de matar seis deles numa execução. Um dos homens disse à STV:

Quando chegámos ao rio, os oficiais mandaram-nos parar e apresentar os nossos documentos. Depois de verificarem os documentos, disseram-nos que tínhamos de esperar porque um comandante distrital queria conversar connosco. Mais tarde, mandaram-nos ir para o carro deles e ficaram com as chaves do nosso carro. Conduziram muitos quilómetros até pararmos e os soldados começarem a conversar uns com os outros. Momentos depois, mandaram-nos sair do carro um a um... e começaram a alvejar-nos um a um... Eu saltei do carro e comecei a correr. Dispararam na minha direção... e a bala atingiu-me na cintura.[30]

O outro homem, que se identificou como cidadão do Bangladesh, disse à STV:

Levaram-nos para o mato. Quando lá chegámos, mandaram os moçambicanos sair do caro e começaram a disparar contra nós, um a um. Quando terminaram com os moçambicanos, um dos soldados agarrou-me pelo casaco... Consegui empurrá-lo e comecei a correr... Dispararam contra mim, mas continuei a correr pelo mato.[31]

As forças de segurança do governo também detiveram, mas não acusaram formalmente, oficiais da Renamo que acreditam terem ajudado os combatentes da Renamo. A Human Rights Watch falou com cinco homens que se identificaram como oficiais da Renamo na Gorongosa, que disseram que viviam escondidos devido ao medo de serem detidos e vítimas de maus-tratos. Os moradores da aldeia da Gorongosa disseram que os soldados começaram à procura de pessoas ligadas à Renamo após homens armados do partido terem invadido a aldeia em 16 de Fevereiro de 2016. De acordo com relatos da comunicação social, pelo menos duas pessoas morreram e outras cinco ficaram feridas durante confrontos entre as forças de segurança e os combatentes da Renamo naquele dia.[32]

A casa e o carro incendiados de Pinto, membro da Renamo, na aldeia da Gorongosa. Os vizinhos disseram que viram soldados do governo incendiar a casa e o carro em 17 de fevereiro de 2016. © 2017 Human Rights Watch

Pinto, 43, disse que os soldados vieram à sua procura à escola onde estava a ter aulas na noite após o ataque de 16 de Fevereiro. Explicou como evitou a detenção, mas que posteriormente encontrou a sua casa em chamas:

[Os soldados] disseram: "Estamos à procura do Pinto da Renamo". Tive sorte porque o meu professor e os meus colegas não me denunciaram, apesar de saberem que sou oficial da Renamo. Assim que saíram, eu também saí da escola e corri para casa. Quando cheguei, tinham incendiado tudo. Liguei para um amigo que me disse que os soldados estavam a apanhar todas as pessoas da Renamo nas suas casas. Naquela noite, eu e três outros oficiais da Renamo deixámos a aldeia e fomos para um esconderijo.[33]

Dois residentes que viviam perto da casa de Pinto e dos dois carros incendiados e abandonados, na vila da Gorongosa, disseram à Human Rights Watch que viram os soldados incendiar a casa e os carros.

Outro oficial da Renamo, Carlos, disse que conseguiu fugir após um soldado o ter avisado por mensagem de texto em 21 de Fevereiro de 2016, que os soldados iriam invadir a sua casa:

Eu estava em casa quando recebi uma mensagem de texto de um soldado que é meu amigo. A mensagem dizia que estavam escondidos atrás das árvores à espera de invadir a casa. Espreitei pela janela e vi um deles a preparar-se para atirar algo parecido com uma granada para a minha casa. Fugi a correr pela porta das traseiras e não voltei até hoje.[34]

Em Abril de 2017, quando a Human Rights Watch entrevistou os cinco oficiais da Renamo, estes ainda estavam escondidos, apesar do cessar-fogo entre o governo e a Renamo. Disseram que tinham medo dos agentes da polícia à paisana na Gorongosa e não quiseram revelar onde estavam.

Destruição de Propriedade

Durante a investigação que levámos a cabo em Abril, Junho e Novembro de 2017, a Human Rights Watch viu pelo menos 32 casas destruídas ou queimadas nas aldeias de Nhampoca, Mukodza, Inhaminga, Nhamapadza, Casa Banana, Vunduzi, Nhamandzi e Gorongosa, província de Sofala, que os moradores disseram terem sido alvo das forças de defesa e segurança. Os moradores disseram ter visto soldados chegar em veículos blindados e camiões, e a incendiar casas e destruir colheitas.

Na aldeia de Vunduzi, distrito da Gorongosa, as forças do governo incendiaram e destruíram pelo menos seis casas em Junho de 2016, aparentemente por suspeitas de que pertenciam a apoiantes da Renamo. Três testemunhas disseram que, durante dois dias consecutivos, houve soldados a chegar em Ford Rangers e veículos blindados, que usavam linguagem agressiva e que, sem aviso prévio, incendiaram casas, destruíram residências e celeiros e mataram animais domésticos. Os moradores que tentaram retirar os seus pertences das casas foram forçados a deixá-los.

Uma foto dos irmãos José João Munera e Manuel João Munera. Os dois homens desapareceram em 16 de Abril de 2016, após se terem apresentado na esquadra de polícia da cidade da Gorongosa.  © 2016 Human Rights Watch

Um residente de Vunduzi, de 68 anos de idade, que testemunhou o incêndio criminoso, disse que encontrou soldados a destruir a sua propriedade quando voltou da sua plantação:

Começaram a acusar-me de ajudar a esconder homens da Renamo em minha casa. Eu neguei... Então, um dos soldados acendeu um fósforo e atirou-o para a minha casa... Eu implorei-lhes que me deixassem retirar os meus pertences. Eles recusaram.

A Human Rights Watch visitou a propriedade deste indivíduo e viu uma casa queimada e os vestígios carbonizados do que parecia ser um celeiro. O homem disse que perguntou aos soldados por que razão estavam a destruir os seus pertences, ao que responderam: "Ordens do comandante".[35]

Um homem de 62 anos de idade em Vunduzi disse que os soldados roubaram os seus pertences antes de incendiarem a sua casa. Na sua propriedade, a Human Rights Watch viu vestígios do que pareciam ter sido casas de palha. Disse:

[Os soldados] entraram na casa e pegaram no meu rádio e telemóvel. Um dos soldados agarrou em duas das minhas galinhas antes de deitar fogo a tudo. Nem sequer teve vergonha... Pegou nas galinhas, entrou no seu carro e foi-se embora.[36]

Os moradores da aldeia de Mukodza disseram que os soldados dispararam as armas contra as suas casas. Uma mulher de 54 anos explicou o que viu:

Eu estava dentro de casa com o meu filho de 16 anos quando eles chegaram. Tínhamos ouvido o que acontecera nas outras casas no dia anterior. Por isso, decidimos esconder-nos. Eles dispararam as armas contra a nossa casa. O meu filho conseguiu saltar da janela e ajudou-me a fazer o mesmo... Começámos a correr e escondemo-nos nas plantações. Quando voltámos para casa, tinha desaparecido tudo com o fogo.[37]

A Human Rights Watch ouviu relatos credíveis de que as forças do governo também incendiaram casas nas aldeias Nhamatema, Honde, Chiula e Maguti na da província de Manica. Em Junho de 2017, num campo para deslocados internos em Vanduzi, província de Manica, a Human Rights Watch entrevistou duas dezenas de pessoas que disseram que as suas casas foram incendiadas por soldados do governo entre Março e Dezembro de 2016.[38]

 

 

 III. Abusos cometidos pela Renamo

 A Human Rights Watch documentou casos de homens armados da Renamo que cometeram violações graves dos direitos humanos entre Novembro de 2015 e Dezembro de 2016, incluindo raptos e homicídios de figuras políticas, ataques a transportes públicos e saque de postos médicos em áreas remotas. Testemunhas disseram à Human Rights Watch que estes homens armados costumavam usar uniformes verde-escuro semelhantes aos utilizados pela guarda privada do líder da Renamo. Traziam espingardas de assalto AK-47 consigo e apresentavam-se frequentemente como combatentes da Renamo. Alguns dos abusos documentados assemelham-se aos relatados pelo Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, que alegou em meados de 2016 que a Renamo tinha visado indivíduos que considerava terem ligações ao partido no poder, a Frelimo, ou cooperarem com as forças de segurança, bem como atacado autocarros nas estradas através de atiradores furtivos.[39]

Assassinatos Políticos

Desde Outubro de 2015, os homens armados da Renamo foram implicados em homicídios de pessoas ligadas, ou que se acredita estarem ligadas, à Frelimo. Em Outubro de 2016, a Frelimo apresentou à Human Rights Watch os nomes de 15 membros que foram alegadamente assassinados, seis que foram alegadamente espancados e seis que foram alegadamente raptados nas províncias de Manica, Sofala, Inhambane e Nampula entre Fevereiro de 2015 e Setembro de 2016, juntamente com as datas e locais dos alegados incidentes.

A Frelimo disse que a Renamo era responsável pelos crimes, mas não forneceu qualquer informação que sustentasse a acusação. A Human Rights Watch investigou seis dos casos, incluindo três dos assassinatos, e concluiu que estas vítimas foram mortas ou atacadas porque a Renamo aparentemente suspeitava que tivessem fornecido informações às forças de defesa e segurança do governo.

Em 2 de Setembro de 2016, alegados atiradores da Renamo raptaram e mataram o regulo (chefe tradicional) de Nhampoca, Joaquim Chirangano, e outro homem, o chefe do posto administrativo da Tica, Abílio Jorge. Três homens que testemunharam os raptos disseram que as autoridades locais do distrito de Nhamatanda convocaram uma reunião com moradores da aldeia de Nhampoca para discutir as indemnizações para as pessoas que perderam propriedades durante as incursões do exército. Na reunião, Chirangano pediu aos residentes que não abandonassem a aldeia, apesar dos confrontos entre as forças governamentais e a Renamo. Testemunhas disseram que, durante a reunião, homens armados que se identificaram como combatentes da Renamo capturaram Chirangano e Jorge. Posteriormente, os moradores encontraram os corpos cravados de balas dos dois homens nas proximidades.

Um dos homens que participaram na reunião disse:

Um dos homens [da Renamo] estava lá entre nós. Nós achávamos que era um dos aldeões. De repente, ele levantou-se, tirou uma AK-47 de um saco... e ordenou que a reunião parasse. Depois, quatro outros homens saíram do mato e levaram o regulo [Chirangano] e o administrador local com eles. Mais tarde, encontrámos os corpos do regulo e do administrador no mato.[40]

Outro homem que testemunhou o rapto disse que os alegados combatentes da Renamo entregaram uma bandeira aos aldeões, que disseram ter trazido de casa de Chiringano, e disseram-lhes para transmitir às autoridades locais a mensagem de que a Renamo tinha levado Chiringano e Jorge. "Nós reconhecemos alguns deles", disse o homem. "Conhecemos as pessoas da Renamo".[41]

A esposa e a filha do regulo (chefe tradicional) de Muxungue, Makotori José Mafussi, mostram uma foto de Mafussi (sentado) e de dois familiares. Homens que se crê serem combatentes da Renamo mataram Mafussi em sua casa em 21 de julho de 2016.  © 2017 Human Rights Watch

Dois outros homens disseram que se juntaram aos residentes locais três horas após a reunião, para ajudar a transportar os corpos de Chirangano e Jorge, que foram encontrados numa mata próxima. Um dos homens, José, disse:

Quando chegámos ao lugar onde os corpos tinham sido largados, os cadáveres ainda estavam frescos... Tinham tiros pelo corpo todo e a cabeça do regulo tinha sido cortada das costas para a frente com um objeto... um machado, acho. Amarrámos os corpos às nossas bicicletas e levámo-los para o posto médico.[42]

José disse que a polícia nunca foi à aldeia para investigar os homicídios.

O regulo de Muxungue, Makotori José Mafussi, foi morto em 21 de Julho de 2016. Uma das suas filhas disse que o pai começou a receber ameaças após ter sido acusado de ajudar as forças do governo a identificar ativistas da Renamo nas regiões de Muxungue e Chibabava. “No dia em que foi morto, ele encontrou um membro da Renamo chamado [nome omitido] no mercado", disse. "Quando chegou a casa, disse-nos que o homem o tinha avisado de que ia ser o próximo a morrer.”[43]

A filha de Mafussi descreveu o assassinato do pai, a noite, pelo homem que assumiu ser o mesmo que o pai referira de manhã:

Ele chegou à nossa propriedade e começou a andar rapidamente em direção ao meu pai... Eu gritei: "Quem és tu?" Ele disse-me para me afastar... Depois, virei-me para o meu pai para avisá-lo... Mas já era tarde demais porque ele já estava perto do meu pai. Depois, deu-lhe um tiro na cabeça.[44]

Quando a polícia chegou ao local, encontrou uma carta escrita à mão no chão, na qual os atacantes explicavam por que razão mataram Mafussi. A carta dizia que Mafussi havia sido morto por ter colaborado com as forças de segurança do governo.

Na noite de 2 de Junho de 2016, em Honde, distrito de Barue, homens armados e de uniforme verde-escuro que se identificaram como combatentes da Renamo mataram dois homens que acusaram de serem informadores das autoridades e das forças de segurança. Duas testemunhas disseram que os homicídios ocorreram dois dias depois de as forças do governo terem feito uma emboscada a combatentes da Renamo na área. A nora de uma das vítimas, Fungai Faniel, que era membro da Frelimo, disse que os homens bateram à porta da casa da família e chamaram o seu sogro pelo nome. Quando Faniel abriu a porta, os homens forçaram-no a sair de casa, espancaram-no gravemente e deixaram-no às portas da morte. A nora disse:

Já era tarde quando chegaram. Estávamos a dormir quando ouvimos vozes masculinas a chamar o nome do meu sogro. Fui ver o que se passava e, quando espreitei por um buraco, vi quatro homens. Não pareciam soldados das Fademo e não tinham carro..., mas tinham uniformes: roupas escuras.[45] Quando o meu sogro abriu a porta, eles puxaram-no para fora e começaram a agredi-lo com armas na cabeça. Depois, um deles disse: deixem-no... ele já aprendeu a lição... e foram-se embora. Foi aí que saímos dos nossos esconderijos e tentámos salvar o pai..., mas ele já estava morto.[46]

Outro indivíduo disse que homens armados foram a sua casa em Honde na mesma noite à sua procura porque acreditavam que era informador do governo. Como não estava em casa, raptaram e, posteriormente, mataram o seu pai. Disse:

Durante duas semanas, não paravam de me ligar para me avisar de que, se eu não aparecesse, iam matar o meu pai. Os mais velhos aconselharam-me a sair da aldeia... Foi aí que fui para o campo de refugiados em Vanduzi [a cerca de 70 quilómetros de distância]. Então, um dia, a minha família ligou-me para me dizer que tinham encontrado o corpo do meu pai no rio Pungue. Não voltei à aldeia para o funeral do meu pai porque tinha medo.[47]

A Renamo negou ter matado oficiais do governo ou membros da Frelimo e acusou a Frelimo de culpar a Renamo pelos seus próprios crimes (ver Apêndice V).

Ataques aos Transportes Públicos

Os homens armados da Renamo realizaram vários ataques contra os transportes públicos, principalmente na estrada N1 que liga o norte e o sul de Moçambique, entre os rios Save e Zambeze nas províncias de Manica e Sofala. A polícia moçambicana disse ter registado 19 ataques só em Fevereiro de 2016.[48] O Gabinete do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos disse que os ataques dos franco-atiradores da Renamo aos transportes públicos que viajavam na N1, mataram vários passageiros.[49]

Em 13 de Fevereiro de 2016, por exemplo, a comunicação social e a polícia locais denunciaram que a Renamo tinha levado a cabo pelo menos três ataques a veículos que viajavam na N1, ferindo pelo menos três pessoas em Muxungue, distrito de Chibabava, província de Sofala, e outras quatro pessoas entre Nhamapaza e Caia, no distrito de Maringué, também na província de Sofala.[50] Em Março de 2016, homens armados da Renamo levaram a cabo pelo menos quatro ataques contra autocarros que viajavam entre as províncias de Manica, Sofala e Zambézia. As autoridades disseram que pelo menos três pessoas foram mortas e várias outras ficaram feridas nos ataques.[51] Uma mulher de 27 anos que foi ferida durante um ataque em Honde, Chibabava, em 5 de Março de 2016, disse à Human Rights Watch que homens armados fizeram uma emboscada ao autocarro e começaram a disparar. Enquanto as pessoas tentavam esconder-se nos seus assentos, o motorista perdeu o controlo e o autocarro despistou-se contra uma árvore. A mulher disse:

Apareceram de repente do nada, no mato, e começaram a disparar contra o autocarro. Estávamos todos em pânico... Sabíamos que a estrada era perigosa porque tínhamos ouvido falar de outros ataques. Mas estávamos à espera de que os combates fossem contra soldados.[52]

Homens armados da Renamo alegadamente também atacaram pelo menos três autocarros de passageiros interprovinciais em 22 de Maio e em 29 de Junho de 2016 em Machanga, segundo relatos da comunicação social.[53]

Em Março de 2016, o líder da Renamo, Afonso Dhlakama, confirmou um ataque da Renamo de 5 de Março de 2016 contra um autocarro da empresa privada Nagi, em Honde, província de Manica, declarando que o autocarro transportava soldados de Chimoio para Tete. "Um ou mais membros da população" podem ter morrido em Honde onde ocorreu o incidente, bem como 39 soldados, disse Dhlakama.[54]

Ataques a Centros de Saúde

Os homens armados da Renamo invadiram pelo menos cinco hospitais ou clínicas médicas em Julho e Agosto de 2016 para saquear remédios e provisões, restringindo o acesso a cuidados de saúde a milhares de pessoas em áreas remotas das províncias de Zambézia, Tete e Niassa. Duas testemunhas disseram que por volta das 3:00 do dia 30 de Julho de 2016, homens armados da Renamo entraram na aldeia de Mopeia, na província da Zambézia.[55]

Um médico que trabalhava na clínica disse à Human Rights Watch que homens armados roubaram vacinas, seringas e antibióticos. "[Homens armados] lançaram o pânico e as pessoas correram pela vida", disse. "Passaram alguns dias até que os moradores pudessem voltar à clínica".[56] O médico, que também trabalha no hospital do distrito de Mopeia, situado a cerca de 8 quilómetros da aldeia, disse que os homens armados incendiaram os registos médicos dos pacientes antes de seguirem para o hospital.

Buraco de bala na janela do Hospital Distrital de Morrumbala após a invasão dos homens da Renamo em 12 de agosto de 2016.  © 2016 Nova Radio Paz - Quelimane

Uma enfermeira do Hospital de Mopeia descreveu o ataque dos homens armados ao hospital:

Eram cerca de 15, mas nem todos tinham armas... Entraram na ala onde os pacientes estavam a dormir, disseram a todos que se fossem embora... e levaram tudo... lençóis, mosquiteiros... Ninguém foi agredido. Eles não nos tocaram.[57]

No dia seguinte, a comunicação social moçambicana divulgou que cerca de uma dezena de homens armados da Renamo invadiram a aldeia de Maiaca, distrito de Maúa, na província do norte de Niassa. Durante a invasão, atacaram a clínica médica local e uma esquadra de polícia. Incidentes similares ocorreram em Tome, província do Inhambane do sul, e no distrito de Tsangano, na província ocidental de Tete.[58]

Em 5 de Agosto de 2016, o líder da Renamo, Dhlakama, deu uma entrevista por telefone à estação de televisão de Moçambique STV, na qual confirmou que deu ordens para atacar algumas áreas da província da Zambézia, mas não especificou os alvos nem referiu os centros de saúde.[59] Em resposta às questões da Human Rights Watch, na generalidade a Renamo negou os ataques a civis, mas não referiu os casos específicos mencionados pela Human Rights Watch.

 

IV. Falha do Governo em Investigar Abusos

As autoridades moçambicanas, nomeadamente a Polícia de Investigação Criminal, não conseguiram investigar as violações graves de direitos humanos alegadamente cometidas por forças de segurança do governo, incluindo assassinatos politicamente motivados, desaparecimentos forçados e destruição de bens. Mesmo no caso dos crimes pelos quais as autoridades culpam os combatentes da Renamo, como assassinatos e ataques aos transportes públicos, as autoridades aparentemente não fizeram nenhuma detenção.

Os governos têm o dever de investigar imparcialmente e processar adequadamente as violações graves dos direitos humanos.O Comité de Direitos Humanos da ONU, que monitoriza o cumprimento do PIDCP, diz que os governos têm não só o dever de proteger os seus cidadãos de tais violações, como também de investigar as violações que ocorrem, bem como de levar os perpetradores à justiça.[60] A legislação internacional em matéria de direitos humanos também consagra o direito a um recurso efetivo, inclusive a compensação pelos abusos.[61]

Em relação às mortes potencialmente ilegais, em 2016, o Gabinete do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos reviu as diretrizes para investigações sobre direitos humanos. Conhecidas como Protocolo de Minnesota, as diretrizes proclamam que estas investigações devem ser rápidas, eficazes e minuciosas, bem como independentes, imparciais e transparentes.[62]

Num caso bastante divulgado de 2016, as forças de defesa e segurança parecem ter impedido ativamente os meios de comunicação independentes, bem como outros, de investigar uma suposta sepultura em massa, bem como 15 corpos não identificados que foram encontrados em Abril desse ano, numa área entre as províncias de Manica e Sofala.

A Procuradora-Geral Beatriz Buchili, bem como os ministros da Justiça e do Interior, não responderam à carta da Human Rights Watch de Setembro de 2016, que a questionava sobre as medidas que o seu gabinete tomara para julgar alguns dos assassinatos de figuras públicas (ver Apêndice III).

Alegada Sepultura em Massa na Gorongosa

Em 27 de Abril de 2016, moradores do distrito da Gorongosa informaram vários meios de comunicação social que tinham descoberto uma sepultura massiva com cerca de 120 cadáveres entre Canda e Macossa.[63] Eles disseram aos jornalistas que descobriram os corpos dentro de uma antiga mina de ouro, após se terem apercebido do cheiro de cadáveres em decomposição. Os meios de comunicação que publicaram a história não conseguiram verificar a existência da sepultura em massa, alegadamente porque as forças de segurança bloquearam o acesso à antiga mina.[64]

Em 29 de Abril, a polícia afirmou que os investigadores enviados para a área não conseguiram encontrar a sepultura em massa.[65] No entanto, no dia seguinte, jornalistas da Deutsche Welle e da agência de notícias portuguesa LUSA, visitaram a área e fotografaram cerca de 15 corpos espalhados no mato por baixo de uma ponte, perto de onde os moradores locais alegaram estar a vala comum. Algumas das vítimas pareciam ter sido mortas recentemente, enquanto outros corpos apresentavam sinais de decomposição mais avançados, de acordo com imagens vistas pela Human Rights Watch e pelos jornalistas que tiraram as fotografias.[66] Devido à presença de forças de segurança no local, os jornalistas não conseguiram chegar à vala identificada pelos moradores locais. Um dos jornalistas que visitou a ponte disse à Human Rights Watch que foi perseguido para fora da área, juntamente com um colega, por homens armados em motas, quando estavam a tentar chegar à mina antiga.[67]

Em 1 de Maio, um porta-voz da polícia disse à Human Rights Watch que o governo não tinha encontrado nenhum corpo na área, embora não tenha conseguido fornecer detalhes sobre a investigação, inclusive em que altura a equipa do governo visitou a área, onde procuraram e quem fazia parte da equipa.[68] Quando foi informado de que a comunicação social publicara fotos de cerca de 15 corpos, pediu algum tempo para verificar a história, mas nunca atendeu nenhuma das repetidas chamadas que lhe fizemos.

Em 5 de Maio, a estação de televisão local STV visitou a área onde os corpos foram encontrados e transmitiu imagens que mostravam 13 corpos ainda espalhados por baixo da ponte.[69] Em resposta, o governador da província de Manica anunciou que, por aquela altura, a decomposição tornara impossível identificar os corpos e que as vítimas seriam recolhidas e enterradas.[70] Apesar deste comunicado, jornalistas da Al Jazeera visitaram o local em 25 de Maio e ainda encontraram 15 corpos.[71]

Face às críticas dos grupos de direitos humanos e dos meios de comunicação, o Ministério Público de Manica anunciou que iria transferir os corpos para o hospital da Beira e que iria investigar o caso. Em 26 de Maio, a Comissão Parlamentar de Assuntos Constitucionais e Jurídicos e Direitos Humanos abriu uma investigação às alegações da existência da vala comum. A comissão incluía membros do partido no poder, a Frelimo, e da oposição, o Movimento Democrático de Moçambique (MDM). A Renamo boicotou a investigação alegando que não seria imparcial.

Em 1 de Junho, o chefe da comissão, o deputado da Frelimo Edson Macuacua, anunciou que a comissão concluíra o seu trabalho após falar com regulos locais (chefes tradicionais), líderes comunitários e moradores locais. A comissão não encontrou nenhuma sepultura em massa no distrito da Gorongosa, mas confirmou a existência de 15 corpos no local perto da ponte, disse Macuacua.[72] Em vídeos transmitidos pela televisão estatal, um líder da comunidade que se reunira com os membros da comissão negou a existência de uma vala comum e dos 15 corpos.

Em 6 de Junho, o único membro da oposição parlamentar que participou na visita da comissão à Gorongosa, Sílvia Cheia do MDM, distanciou-se das descobertas da comissão. Ela acusou Macuacua de "tirar conclusões precipitadas" e de "intimidar" os moradores locais durante as entrevistas.[73]

Dez meses depois, em Abril de 2017, o gabinete do procurador da província de Manica disse que em breve anunciaria os resultados das autópsias que foram realizadas a 11 dos 15 corpos que foram transferidos para o Hospital da Beira. Um funcionário do hospital disse que as autópsias foram concluídas em Março de 2017 e os resultados foram enviados ao procurador em Manica.[74]

Em Abril de 2017, dois residentes levaram um investigador da Human Rights Watch a uma estrada perto de Canda, que, segundo eles, conduzia à mina que continha a alegada sepultura comum. O investigador foi impedido de prosseguir por forças de defesa e segurança com uniformes do exército, num posto de controlo na estrada, alegando "razões de segurança".

Em Novembro de 2017, as autoridades ainda não haviam divulgado informações sobre os resultados da autópsia ou sobre a investigação à alegada sepultura em massa.

Crimes com Aparente Motivação Política

As autoridades moçambicanas não investigaram pelo menos 10 homicídios ou tentativas de homicídio de alto nível com motivações aparentemente políticas em Moçambique desde Março de 2015.

  • Em 3 de Março de 2015, o advogado constitucionalista Gilles Cistac foi morto a tiro no exterior de um café no centro de Maputo. Testemunhas dizem que estava a entrar no carro, estacionado à porta do edifício, quando quatro indivíduos não identificados começaram a disparar de outro carro, tendo matado Cistac e o seu motorista. A família e amigos de Cistac dizem que este começou a receber ameaças desde que defendera publicamente a contestada constitucionalidade da petição da Renamo para criar autoridades provinciais autónomas.[75]
  • Em 16 de Janeiro de 2016, o secretário-geral da Renamo, Manuel Bissopo, foi atingido a tiro e ficou gravemente ferido quando viajava de carro no centro da cidade da Beira, na província de Sofala. O seu guarda-costas morreu. O incidente teve lugar poucas horas após uma conferência de imprensa na qual Bissopo acusou as forças de defesa e segurança do Estado de raptar e matar membros do seu partido.[76]
  • Em 4 de Fevereiro de 2016, o alto oficial da Renamo Filipe Jonasse Machatine foi encontrado morto com oito tiros em Gondola, província de Manica, dois dias após ter sido raptado por homens não identificados.[77]
  • Em 7 de Março de 2016, um alto oficial da Renamo na província de Inhambane, Aly Jane, foi encontrado morto após ter desaparecido quatro dias antes. O seu corpo, encontrado perto do Rio Nhanombe, entre os distritos de Maxixe e Homoíne, exibia sinais de violência.[78]
  • Em 9 de Abril de 2016, José Manuel, membro da Renamo do Conselho Nacional de Defesa e Segurança, foi morto a tiro ao pé do Aeroporto Internacional da Beira após ter chegado de Maputo. Alega-se que a polícia demorou cerca de dez horas a chegar ao local e a dar início à investigação.[79]
  • Em 22 de Junho de 2016, o corpo de um alto oficial da Frelimo na província de Manica, José Fernando Nguiraze, foi encontrado dentro de casa por vizinhos com ferimentos de bala. Este vivia sozinho porque a família fora evacuada por motivos de segurança. A polícia disse que o crime foi cometido por quatro membros não identificados da Renamo, mas não forneceu provas que sustentassem a alegação.[80]
  • Em 2 de Setembro de 2016, o administrador de Tica, no distrito de Nhamatanda, província de Sofala, Jorge Abílio, foi assassinado por homens armados que a polícia identificou como combatentes da Renamo. Abílio foi apanhado numa emboscada após ter participado numa reunião comunitária em que tentou convencer os residentes locais a não abandonar a região apesar dos frequentes confrontos entre o exército moçambicano e combatentes da Renamo.[81]
  • Em 22 de Setembro de 2016, o alto oficial da Renamo no distrito de Moatize e membro da assembleia provincial local de Tete, Armindo Nkutche, morreu após ter sofrido seis tiros na rua, poucas horas depois de ter falado na sessão de encerramento da assembleia.[82]
  • Em 8 de Outubro de 2016, Jeremias Pondeca, membro da Renamo de uma equipa que preparava uma reunião entre o presidente Nyusi e o líder da Renamo, Afonso Dhlakama, foi morto a tiro durante a sua corrida matinal na principal praia de Maputo, Costa do Sol. A família só teve conhecimento do seu homicídio no dia seguinte, após ter contactado as autoridades para reportar o seu desaparecimento, tendo-lhes sido dito que um cadáver não identificado, com ferimentos de bala, fora levado para a morgue. As investigações policiais preliminares sugerem que quatro homens que seguiam Pondeca de carro se aproximaram da vítima e dispararam dois tiros na cabeça e outro no abdómen, tendo depois fugido.[83]
  • Em 4 de Outubro de 2017, o presidente do municipio de Nampula e membro do partido da oposição MDM, Mahamudo Amurane, foi atingido a tiro e morto perto de sua casa por homens não identificados.[84]

Até à data, a Procuradora-Geral Beatriz Buchili ainda não respondeu à carta da Human Rights Watch de Setembro de 2016, que a questionava sobre as medidas que o seu gabinete tomara para investigar ou julgar estes casos (ver Apêndice III). A Polícia de Investigação Criminal (PIC) de Moçambique, que é o órgão estatal responsável pela condução das investigações criminais, não concluíra nenhuma investigação a nenhum destes casos, nem foi capaz de identificar nenhum suspeito.