A BANALIZAÇÃO DA FRAUDE ELEITORAL EM MOÇAMBIQUE
Ernesto Nhanale, Professor de Jornalismo
Maputo (MOZ TIMES) – A frequência com que temos vindo a assistir ao enchimento de urnas com boletins pré-marcados, a duplicação do direito a voto – eleitores que são encontrados a tentarem votar pela segunda vez -, a troca de editais de resultados das mesas de assembleias de voto, a manipulação das leis para favorecer actores políticos, por parte dos órgãos eleitorais centrais até mesmo a validação do ilegal pelo Conselho Constitucional (CC), e operações que incluem a manipulação da opinião pública através dos media públicos, leva-nos a entender que a fraude não deve ser considerada mais um desvio da norma objecto de reprovação social e passível à punição. A fraude passa a inscrever-se como um recurso estratégico recorrente no nosso processo eleitoral, através do qual certos partidos políticos usam para ganharem votos.
Desde as eleições de 1999 até 2024, fala-se, detecta-se e mostram-se elementos de prova das fraudes eleitorais sem que nenhuma acção efectiva seja tomada para reverter a situação. O nosso olhar impávido contra as fraudes eleitorais faz com que de eleição para eleição ela (a fraude) assuma cada vez novas formas. Nas eleições de 2023 e 2024, a fraude assumiu proporções alarmantes e inovadoras. Tornou-se normal que nas notícias dos dias que se seguem à votação (fora as produzidas pelos media do sector público) a tónica seja sobre episódios de fraude e manipulações de resultados eleitorais.
Para além das formas habituais de fraude, este ciclo eleitoral, de 2023 e 2024, fez-nos testemunhar duas novos formas de adulteração de resultados: a importação do eleitorado e o suborno para a troca de resultados eleitorais. Sobre a importação do eleitorado, temos tido a confirmação do jornal do Zimbabwe, The Mirror, sobre a existência de cidadãos daquele país que votaram nas eleições gerais de 09 de Outubro, em Moçambique. No período do recenseamento eleitoral, este facto já tinha sido denunciado e, como sempre, as autoridades dos dois países (Moçambique e Zimbabwe) mantiveram-se num silêncio de cumplicidade, perante um facto que deveria ter merecido investigação e esclarecimentos públicos. Sobre a compra de votos, sabemos que tal acontecia sob forma de compra de consciências, mas nunca havia chegado ao ponto em que assistimos nas últimas eleições autárquicas. Na cidade de Maputo um responsável de órgãos eleitorais alterou resultados em troca de somas avultadas de dinheiro. Mais recentemente assistimos na província da Zambezia à compra corrupta de resultados nas assembleias de voto. Um jovem observador da Organizacional Nacional da Juventude foi violentamente espancado por ter aliciado MMV e delegados de candidatura para alterarem editais a favor de um partido.
Poderíamos fazer uma longa narração sobre as histórias das fraudes eleitorais em Moçambique mas tal é pouco relevante pois as operações de fraude inundam os nossos telejornais, jornais e as redes sociais. Só não as reportam as televisões que pretendem omiti-las para, desse modo, fazerem parte do processo de lavagem na opinião pública sobre a transparência eleitoral em Moçambique. O que é inquietante e leva a questionamento é: Como é que a fraude, enquanto um desvio da norma, se tornou na norma que caracteriza as nossas eleições em Moçambique?
O primeiro elemento que responde a esta pergunta é o facto de a política em Moçambique ter virado um espaço de negociação de “tachos” e, por consequência, os que ascendem a posições de lideranças não terem nenhum compromisso com os cidadãos. As pessoas querem estar na política para resolverem os seus problemas pessoais, não os do povo. Muitos dos que se candidatam para cargos públicos querem-no para se apropriarem dos órgãos do Estado (Governo e Parlamento) para os seus interesses privados e pouco fazerem para o país. Por consequência, o voto dos cidadãos acaba perdendo o seu significado e valor. Quando se vai para as eleições, os candidatos pouco se comprometem com o serviço aos cidadãos, mas sim com o intuito de ocupar os espaços, seja de que forma, para garantir os seus objectivos privados. Quando esses objectivos se vêem afectados, a fraude vai ser o recurso imediato, numa clara desvalorização da vontade popular manifesta através do voto.
Devido à inversão do papel do serviço público das instituições do Estado, os que já se servem destas instituições querem, a todo custo manter-se lá. Toda a luta que temos vindo a assistir é de garantir que quem está no poder mantenha a sua posição, ou a amplie; quem está na oposição que se mantenha ou amplie os seus benefícios. A ausência do sentido da política enquanto serviço aos cidadãos faz com que as fraudes sejam um recurso estratégico normal para quem quer, a todo o curso, estar nos órgãos do Estado de modo a proteger os seus próprios interesses.
A segunda resposta sobre a normalização da fraude eleitoral em Moçambique é a impunidade e o facto de ela estar a ser praticada sob forma institucional. Como temos vindo a assistir, os órgãos de gestão eleitoral e os tribunais têm vindo a ser pouco exemplares na implementação das leis. Por vezes têm sido eles próprios a darem interpretações duvidosas das leis, conforme os seus interesses. Já assistimos, muitas vezes, a Comissão Nacional de Eleições (CNE) e o CC a tomarem decisões não com base nas leis, mas conforme os interesses partidários dos membros que compõem os órgãos. Os interesses da justiça eleitoral são desprezados. Por quantas vezes lemos acórdãos e nos apercebemos que os doutos venerandos juízes, ao invés de compulsar a ciência jurídica, constroem uma prelecção de argumentos visando acomodar “politicamente correctos” para proteger as suas posições e participarem, de forma cúmplice, no festival da normalização da fraude eleitoral?
Se os órgãos eleitorais são eles próprios os praticantes de irregularidades e usam os seus poderes institucionais para as legitimar, o que esperar dos que praticam a fraude nas urnas e em toda máquina da administração eleitoral? O que acontece com todas as pessoas que temos vindo a ver nos vídeos e fotografias que são publicadas nos media e nas redes sociais a cometerem fraudes eleitorais, eleição após eleição? Absolutamente nada! E, quando o Estado, através das instituições da administração da justiça, nomeadamente a Procuradoria e os tribunais, nada faz para gerar responsabilização a estas práticas, os seus agentes, nas lideranças, estão a transmitir a mensagem clara de que o a fraude é normal e, por vezes, compensa. Se a lei diz que algo é crime, mas quando se pratica é compensatório, o que esperar? Certamente que é a prosperidade desse fenómeno.
Temos vindo a ver, desde o mais alto nível, compensações, as pessoas que dirigem os órgãos do Estado, nomeados pelas suas lealdades e possibilidades de manterem o sistema de fraude para beneficiar a corrupção. A nossa história é rica nessas compensações, mesmo de cargos na administração pública. As pessoas que vemos no domínio público a serem compensadas pela fraude são as que nas eleições seguintes são colocadas em lugares de poder exercer a manipulação dos resultados eleitorais. Quanto mais funções exercer que garantam a normalização da fraude, mais confiança detém e, por sinal, torna-se intocável. Estamos perante um sistema viciado em que as pessoas que vivem da fraude têm medo uma das outras.
A terceira resposta é a banalização, isto é, o reconhecimento institucional de que a fraude é normal. As instituições eleitorais estão estruturadas em torno da ideia da normalização da fraude. Vejamos como as leis foram revistas ao longo do tempo para acomodar os interesses dos partidos políticos na CNE, Secretariado Técnico de Administração Eleitoral e CC. Isto é, os partidos políticos quando entram nas eleições já excluem o facto de as eleições serem um exercício cívico que se realiza em torno das suas propostas, através de uma arbitragem independente. Eles querem ser jogadores, árbitros e juízes da sua própria causa. O CC que julga e decide sobre os processos eleitorais é praticamente constituído sob interesse dos partidos políticos, não sob interesse da justiça eleitoral. Vimos como o CC fez uma deliberação que, claramente, contribuiu para que a clarificação da lei sobre o papel dos tribunais fosse no sentido de esvaziar o papel dos tribunais distritais que são mais independentes para meros processadores de expedientes. A decisão tomada este ano de que as irregularidades eleitorais são somente (exclusivamente) julgadas pelo CC, que tem juízes conselheiros indicados pelos partidos políticos, retirando-se o papel dos tribunais distratais na recontagem dos votos, é obviamente um acto de normalização da fraude.
Certamente que não é possível falarmos de governos comprometidas com o bem comum quando pactuam com a normalização da fraude. Quem ganhar as eleições deve, se quiser ter voz, governar e devolver o mínimo de dignidade dos moçambicanos, tomando decisões arrojadas e cortar o mal pela raiz. Mas tal seria uma missão impossível, pois seria necessário implodir com um sistema controlado pelas mesmas pessoas que fazem parte do festival da fraude e que contribuíram para coloca-las no poder (EN)
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