Gerir atalhos: 45 anos da independência de Moçambique
Por ElÃsio Macamo - Professor Catedrático de Sociologia e Estudos Africanos na Universidade de Basileia (Suiça) - Convidado especial do Blog
A imagem mostra algo que de tão trivial passa despercebido. É um atalho. Usei-o hoje a caminho do serviço. Alguns metros mais adiante, existe uma passadeira para peões atravessarem a rua com segurança. A ausência total de relvado ali significa que o atalho é usado por muita gente e todos os dias. A imagem não é de Xai-Xai (Cidade ao sul de Moçambique). É da cidade da Basileia, na SuÃça. Ela documenta algo que é universal nos humanos: não é a existência de regras sociais apenas que condiciona o comportamento humano. As normas sociais são também importantes. (In)felizmente, essas normas são muito mais flexÃveis do que as regras. Isto quer dizer que quem tem autoridade numa sociedade e gostaria de impôr regras, tem que saber lidar com a flexibilidade das normas, pois estas respondem de forma mais imediata, e eficaz, à s necessidades e anseios das pessoas.
Hoje Moz (Apelido dado a Moçambique pela população) celebra 45 anos de independência. Parabéns a todos nós. Uma coisa que tem sido constante é o paradigma de governação. Ele assenta na ideia de que governar é resolver os problemas do povo. Para além de sobrecarregar quem governa – e, no processo, criar todo o tipo de disfuncionalidades – o paradigma dá prioridade ao que quem governa julga ser o problema do povo. O resultado disso é produzir regras sociais potencialmente frágeis porque vão ser ignoradas pelas normas sociais que vão criar os seus atalhos. Cada atalho que surge em resposta (rebelde) à s regras exige mais regras que produzem mais atalhos e por aà em diante. Chega-se ao ponto em que governar passa a ser a gestão dos atalhos. Com um pouco de imaginação, a gente pode ver aqui a trajectória do PaÃs desde 1975, sobretudo desde 1977¹. Governar tem sido a gestão da resistência à s regras.
Depois de 45 anos a fazer essencialmente o mesmo, podÃamos mudar da forma de bater (como se diz em Xangan), isto é de método. PodÃamos adoptar um paradigma que consiste na ideia de que governar é criar condições para que o povo identifique e resolva os seus problemas. Revela mais respeito pelas pessoas, corresponde melhor ao desiderato de independência e, como vou argumentar logo à noite no meu comentário semanal na MÃdia Mais TV, constitui a melhor interpretação do legado de Mondlane (Um dos fundadores e primeiro presidente da Frente de Libertação de Moçambique). Para além de toda a discussão sobre se ele foi liberal, socialista ou comunista, uma coisa que salta à vista quando se olha para a sua obra com atenção é que ele acreditava em processos, não em resultados. Por isso, a guerra em si não era necessariamente o elemento central da sua estratégia de luta pela independência, mas sim a formação das pessoas, a sua consciencialização e a promoção de consensos.
A mudança de paradigma impõe-se, sobretudo num momento em que a qualidade da liderança deixa a desejar. A ideia de governar não pode mais assentar na presciência e na omnisciência de quem governa. Nunca foi boa ideia e os problemas que todas as lideranças tiveram, desde Samora (Primeiro presidente de Moçambique 1975-1986) passando por Chissano (1986-2005) até Guebuza (2005-2015), é prova disso (Filipe Nyusi desde 2015 é o presidente). Do ponto de vista polÃtico isso implica, inclusivamente, que o principal desafio para os próximos 45 anos vai ser de limitar o poder polÃtico. Enquanto prevaleceu o paradigma da resolução dos problemas do povo, vingou a ideia de que o principal recurso de governação seria o exercÃcio de poder absoluto. Com o novo paradigma – praticado por muitas sociedades democráticas – limitar o poder de quem governa deveria ser o principal recurso. Isso vai abrir espaço para mais deliberação.
Crise polÃtico-militar no paÃs entre FRELIMO (Partido no poder desde a independência) e a RENAMO (Principal oposição) desde a transição democrática em 1994 (Figura 1: Treinamento militar da RENAMO em Gorongosa-Centro de Moçambique; Figura 2: Protestos em Maputo exigindo Paz de conflito armado iniciado em 2013; Figura 3: Reuniões para acordo de paz entre representantes da FRELIMO e RENAMO firmado em Agosto/2014)
Um efeito secundário, mas importante, da mudança de paradigma vai ser de cultivar nos governantes – e seus vigilantes oficiosos – o respeito pela opinião crÃtica. Boa parte da nossa intolerância crÃtica vem da cultura de presciência e omnisciência que marcou a guinada autoritária logo a seguir à independência. Se o governante sabe tudo e de antemão, quem critica só pode ser um maluquinho, na melhor das hipóteses, e inimigo da pátria, na pior.
Sei lá.
¹Referência ao inÃcio da Guerra civil em Moçambique que durou oficialmente até 1992. Quer entender melhor o contexto dela e outros conflitos ocorridos? Acompanhe o nosso blog.
Referências:
Imagens:
- Figura 1 e 2: Acervo pessoal do autor.
- Figura 3 (Eduardo Mondlane e Samora Machel em guerrilha): https://vermelho.org.br/2020/06/18/eduardo-mondlane-100-anos-do-heroi-mocambicano/
Figura 4 (Colagem): https://www.dw.com/pt-002/doze-momentos-chave-do-conflito-entre-a-renamo-e-o-governo-de-mo%C3%A7ambique/a-17822725
Bibliográfica:
- MACAMO, ElÃsio (2016). Sociologia prática – como alguns sociólogos pensam. Imprensa Universitária. Maputo.
- MACAMO, ElÃsio (2017). Sociologia prática – como alguns sociólogos resolvem problemas analÃticos. Imprensa Universitária. Maputo.
- MACAMO, ElÃsio. Cultura polÃtica e cidadania: Uma relação conflituosa. Desafios para Moçambique. IESE, 2014.
- MACAMO, ElÃsio. A transição polÃtica em Moçambique. Portugal: CEA/ISCTE.
- MACAMO, ElÃsio. “A nação moçambicana como comunidade de destinoâ€IN: Lusotopie, 1995.
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