terça-feira, 31 de março de 2020

O cotidiano em tempo de crise

O cotidiano em tempo de crise
Este artigo faz parte duma iniciativa provocada pelo isolamento causado pela pandemia do Covid-19. Vários juristas, sociólogos, economistas, antropólogos, jornalistas, cientistas políticos e activistas sociais associaram-se a esta iniciativa e escrevem sobre o signidicado do Estado de Emergência, uma decisão inédita em Moçambique e em grande parte do mundo.

Uma boa parte daquilo que somos constitui-se nas pequenas coisas do dia a dia. As decisões que tomamos em relação à melhor maneira de chegarmos ao serviço, o que vamos comer, com quem manter boas relações, o que fazer em relação ao vizinho que toca a música muito alto, como evitar que as coisas que os outros fazem no seu dia a dia não nos criem problemas, etc. O cotidiano seria fácil de organizar se ele obedecesse à ideia que alguns sociólogos têm de que a vida social é sempre uma resposta a constrangimentos estruturais. Infelizmente, as coisas não são assim. O cotidiano é, na maior parte das vezes, um espaço de negociação, subversão e apropriação desses constrangimentos com resultados frequentemente imprevisíveis.
Isso faz do cotidiano, sobretudo em contextos precários como são uma boa parte dos nossos contextos de sociabilidade, espaços de enorme criatividade, no bom e no mau sentido. A criatividade no bom sentido é quando as respostas que as pessoas encontram para os seus desafios do cotidiano não põem em causa a sua própria reprodução social. Muitas vezes a linha que separa a boa criatividade da má é bastante fina. O comércio informal, por exemplo, garante à pessoa que o pratica a satisfação de parte das suas necessidades básicas, mas também priva a economia formal de recursos e contribui para minar o respeito pelas regras. No fundo, a criatividade é a descrição da natureza precária do nosso projecto nacional.
Não há dúvidas, contudo que aquilo que a gente toma por informalidade é, na verdade, a manifestação prática da criatividade do nosso cotidiano. O formal, por ser exíguo e imprevisível, não oferece às pessoas um quadro seguro de referência para a organização das suas vidas. Daí o recurso à criatividade que, na verdade, é apenas a manifestação da impossibilidade de organização da vida sem a transgressão do formal.
Neste sentido, o nosso cotidiano constitui-se em oposição ao formal. Nos seus espaços periféricos, isto é nos bairros, mercados e espaços precários de socialização, o nosso cotidiano é uma frente erigida contra um inimigo externo difuso, mas que ganha sempre corpo em toda a manifestação formal vista preferencialmente como intrusão. Curiosamente, a informalidade funciona como tubo de escape que ajuda as pessoas a “esquecerem” o formal. Quando vendedores informais, por exemplo, desabafam que não têm outro remédio senão se exporem à doença – ou quando recusam aceitar a existência da ameaça – a racionalidade do que dizem está na representação da sua vida como um desafio ganho, apesar de tudo.
É neste contexto que deve ser vista a restricção da vida social que um Estado de Emergência implica. Do ponto de vista prático, essa restricção significa o estrangulamento da criatividade tão essencial à vida e do ponto de vista político a visibilização do Estado como o “verdadeiro” inimigo. Este é o problema que a decisão de declaração dum Estado de Emergência devia ponderar. Ela seria uma espécie de “declaração de guerra” contra os menos afortunados. Sem outro tubo de escape, o mais provável é que as pessoas concentrem a sua atenção nesse “inimigo” através de acções concretas “subversivas” (furando o isolamento imposto), mas também através da subversão das narrativas oficiais (com teorias de conspiração que têm o estado e a medicina como seus vilões – algo que tem acontecido de forma recorrente no contexto de campanhas como a prevenção da cólera). Desprovido de recursos económicos para ajudar as pessoas a garantir a sua existência, a reacção mais provável das autoridades é a repressão que, no limite, vai fechar as duas partes num ciclo vicioso.
Disto decorre que a declaração dum Estado de Emergência, por um lado, – caso, de facto, existam razões sanitárias convincentes (o que, por enquanto, não me parece o caso, apesar de todo o alarido) – deve ser acompanhada de medidas económicas e repressivas bem pensadas e, por outro lado, duma reflexão sobre o tipo de Estado que é possível num contexto em que o cotidiano se estrutura como em Moçambique. Qualquer que seja a decisão, a sua implementação vai depender também da identificação de “fazedores locais de opinião” (grupos religiosos, chefes de “gangs”, estruturas administrativas locais, etc.) com quem se deve manter um diálogo constante.
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  • Ernesto Nhanale Elisio Macamo muito boa elaboração que, embora curta, faz uma excelente classificação (tipifica muito bem elaborada). Nao irei repetir, mas deixa-me dizer que, em conclusão, esta questão do Civid 19 expõe-nos como um Estado. Tenho vindo a notar que as nossas discussões sobre o problema da Civid 19 são mais do que debater as vantagens ou desvantagens de uma opção, mas sim o conflito entre o que as medidas que se exige para o combate do vírus (Civid) e o que realmente somos como um Estado. Remete-nos a todo o trabalho que deveríamos ter vindo a fazer, faz tempo: Construirmos um Estado. Hoje, nos encontramos numa prova e avaliacao que nos testa a nossa preparação, pois temos de encontrar soluções para responder ao problema que nos debate hoje. Vejamos que estamos num cenário em que tudo mundo esta concentrado nos esforços nacionais de fazer face a pandemia, se houver quem reparar nos problemas dos mais pobres, vai ser para evitar que lhes repasse a doença. No restante, este 'e um convite para pensarmos no Estado, mais do que as medidas sobre o Civid 19. Esta dualidade entre o "formal" e "informal" nos persegue e nos coloca de maos atadas, pois tudo redunda na fragilidade das nossas instituições!
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    • Elisio Macamo é isso. é por isso que é importante olhar para crises como oportunidades. como bem diz, é necessário recuperar o tempo perdido na imaginação e construcção do estado.
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  • Fernanda Lopes Nao tenhamos ilusoes. O virus so circula transportado. Impoe se quebrar/abrandar esse transporte, seja de fora para dentro do Pais, seja so dentro do Pais. E antes que cresca! Ganhando tempo para a Ciencia encontrar mitigacao/cura. Claro que tem consequencias, desde logo a paragem do tecido empresarial e comercial. Veremos se o Estado tem auxilio financeiro para oferecer as empresas e individuais, formais ou informais. Sera dificil, face aos rombos das “dividas ocultas”. Mas disso depende a manutencao ou extincao do fraco tecido empresarial que apesar de tudo, vai criando emprego!
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  • Tomás Timbane Não percebo nada de pandemias, muito menos de medidas de mitigação. Nem sei se é isso de que precisamos neste momento. O que tenho percebido é que no ocidente poucas dessas medidas tem funcionado, mas no oriente percebe-se que as medidas funcionam. Eventualmente nunca se venha a saber quais as medidas que são determinantes para mitigar a pandemia. Quando pergunto a pessoas da área, são unânimes num conselho: fica em casa. E, nos últimos dias, depois de criar condições para fazer o mínimo necessário fora de casa, vejo que a maior parte dos moçambicanos não o pode fazer, até porque depende do que faz no dia a dia para sobreviver. Surge, assim, um dilema: deixar as pessoas na rua, com o risco de a maior dos moçambicanos ser contaminada? É que sendo a maior parte dos moçambicanos pobres, cujos rendimentos dependem de actividades diárias, o problema que se coloca, até do ponto de vista moral, é se faz sentido confinar essas pessoas, impedindo-as de sair à rua para garantir o seu sustento diário. Mas também se pergunta se valerá a pena deixá-las na rua, com o risco de todas serem contaminadas, com as consequências que todos imaginamos, pois não há hospitais, não há equipamentos, não há pessoal que chegue. Não se trata de alternativas fáceis: cada uma delas vai ter consequências drásticas. E a pergunta que se coloca é simples: e agora? Prefiro que os políticos oiçam os especialistas e decidam conforme a recomendação destes. E, pelo que tenho lido, os especialistas dizem para fechar tudo, todos dizem, primeiro a saúde, depois se vê. É evidente que no nosso caso – como em muitos outros – é uma oportunidade não só para repensar o nosso Estado, mas, também, vermos como o podemos construir, juntos. Só que isso é muito difícil, tornando-se, pois, numa oportunidade perdida…infelizmente.
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    • Elisio Macamo qualquer que for a decisão tomada, ela não será fácil. o melhor que a gente pode fazer nestas circunstâncias é expôr os aspectos que na pressa de se prevenirem certos danos podem ser descurados e acabar por ser contraproducentes. nisto penso que a ideia que tem sido veiculada de que não existe uma panacea precisa de se fazer valer no seio dos nossos decisores políticos. em minha opinião, na ásia não há casos de "lock-down" completos. cá na europa ainda não se sabe se isso está a funcionar. pessoalmente, tenho pouca simpatia por um estado de emergência que implique o que se está a fazer na áfrica do sul pelo simples facto de que não vejo como isso iria funcionar em maputo. sou a favor do estado de emergência como cobertura para a tomada de decisões necessárias ao combate da pandemia, mas espero que isso não implique fechar tudo. receio consequências piores do ponto de vista sanitário, político e económico.
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PR declara estado de emergencia!
Essa medida vai ser dificil de ser acatada pela populaçao. A fome sente-se, corona virus ate hoje é um mito para as populacoes.
Faltou muito trabalho de base.
Nos moldes como foi anunciado o estado de emergencia, o presidente teve em consideraçao as fragilidades da nossa sociedade....
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