A arte de ficar calado
Tudo que é difícil de fazer, quando é feito, é arte. Ficar calado em política é difícil, logo, ficar calado é arte. O governo de Moz está calado em relação ao que se passa em Cabo Delgado. Haveria tanta coisa por dizer, por exemplo, porque está a ser assim tão difícil conter essa ameaça, se as FDS estão a ser bem abastecidas, que novos meios serão mobilizados, se os “malfeitores” têm telefone através do qual o Presidente possa falar com eles, etc. Não dizer nada é obra!
Este é o último texto que escrevo sobre este assunto. Por enquanto. Desta feita, porém, quero me concentrar num outro tipo de silêncio numa tentativa de mostrar que o silêncio do governo é grave, sim, mas mais grave ainda é um outro tipo de silêncio. Nutro pouca simpatia por abordagens que reduzem o silêncio de quem podia falar ao seu oportunismo. Nem toda a gente que se cala, cala-se porque tem a expectativa de receber alguma benesse. Nem mesmo os que mais dão nas vistas na defesa do indefensável o fazem por oportunismo. Por vezes eles acreditam mesmo no que dizem, é a sua maneira de contribuírem para o debate de ideias. Outras vezes eles simplesmente não entendem os assuntos, mas acham que devem se pronunciar. É humano!
A arte de ficar calado é a cultura do silêncio. Esta última costuma andar de mãos dadas com um mecanismo social que podemos chamar de “rabo preso”. O “rabo preso” é a condição em que nos podemos encontrar de não podermos dizer o que gostaríamos de dizer e, por causa disso, tornarmo-nos cúmplices de algo mau. É um dilema moral e a arte consiste justamente em encontrar uma racionalização para não fazermos o que a ética nos diz para fazermos. Não é uma condição em que muita gente se encontra. Na verdade, você precisa de ser alguém para estar nessa situação.
A primeira vítima do “rabo preso” em Moz é a oposição, sobretudo a Renamo. Como é evidente, ela não se pronuncia sobre Cabo Delgado. Não tem como o fazer de forma coerente por duas razões. Primeiro, ela sempre primou pelo princípio segundo o qual os fins justificariam os meios. Nesse sentido, não há nada de errado no que os “malfeitores” estão a fazer. Eles apenas estão a aplicar os meios que consideram necessários para alcançarem os seus objectivos. Este constrangimento ético vale também para muitos intelectuais da nossa praça que defenderam o recurso à violência contra o Estado por Dhlakama. Lembro que alguns até diziam que a constituição não é sagrada. Como pedir para que os “malfeitores” ajam diferente? Segundo, a Renamo tem o Nyongo – ou o Nyongo tem a Renamo. Se você nem dentro da sua própria casa é capaz de meter ordem que mais podemos esperar de si? Numa entrevista recente, o líder oficial da Renamo reage indignado à sugestão de que ele teria medo de Nyongo. Parece conversa típica de rapazes: o meu é maior do que o teu! Enquanto isso, a maior “estrela” da oposição é fã de Olavo de Carvalho – um charlatão que diz que a terra é plana – e é pastor de TB Joshua, outro charlatão, um “profeta” que diz que o Coronavírus vai terminar amanhã, dia 28 de março...
A oposição não é apenas a Renamo. É também o MDM. Infelizmente, também numa entrevista recente, o líder do MDM apareceu a idolatrar Nyongo. O que é mais grave nisso – e que de certeza lhe passou despercebido – é o facto de que ele se colocou ao lado do princípio dos fins que justificam os meios. E o tipo é membro do Conselho do Estado! Ao invés de reafirmar a importância do Estado de Direito e, dessa maneira, abordar uma das nossas maiores fraquezas, ele preferiu continuar a desferir golpes mortíferos contra o Estado de Direito. O que vai dizer agora perante o que se passa em Cabo Delgado? Em política, crise mesmo não é quando os que governam não fazem nenhuma ideia do que fazer. Crise é quando a alternativa aos que governam é ainda pior.
A segunda vítima do rabo preso são os militantes e simpatizantes da Frelimo. Não são um bloco homogênio. Como existe o tabú do “ambicioso” na cultura institucional da Frelimo, é difícil criticar sem, com isso, dar a impressão de que você quer o lugar do chefe. Então, há gente sensata, inteligente e competente que se cala por medo de ser rotulada de “ambiciosa”. Essa gente refugia-se por detrás do argumento de que a crítica deve ser apresentada nos canais certos, mas todos sabem que nesses canais certos também é complicado falar. Eu sofro com estes camaradas e espero que um dia o dever patriótico fale mais alto do que o medo de serem vistos como “ambiciosos”.
Há a “manada”, portanto, gente normal como nós, mas que é movida pela ideia segundo a qual o mais importante na militância é defender a linha “oficial” mesmo se ela não faça sentido. Esta categoria inclui os “imbecis”, isto é aqueles que acham que não só devem defender o indefensável como também atacar quem pensa diferente. Há algo de sectário nisto e que de vez em quando se revela quando alguém de dentro pisa a linha. É só ver a maneira furiosa e rábida como Samora Machel foi atacado por não se ter conformado com a decisão do partido de não concorrer para o município. A esclerose dum partido revela-se nestas manifestações sectárias. Um partido democraticamente vigoroso teria usado esta divergência de opiniões para se abrir à crítica e mudar os seus procedimentos. Mas não foi o que aconteceu. Em estilo “Zione” quem se opôs viu-se obrigado a sair e criar o seu partido.
Há também os simpatizantes. Eu sou um deles. Temos dificuldade em criticar a Frelimo porque cada erro que ela comete – e um sempre maior do que o outro – põe a nossa própria capacidade de discernimento em causa. O nosso “rabo preso” é a pergunta: de que vale criticar isso se há mais coisas por criticar? Não seria melhor ficar calado? Alguns calam-se e eu entendo. O “like” que não põem no “post” que eu escrevo e com o qual eles concordam ou os pedidos no “inbox” para ter cuidado são a manifestação desse “rabo preso”. Agora, eu não falo por me considerar mais iluminado ou corajoso do que os outros.
Eu falo porque a minha relação com a Frelimo é intermediada pelos meus valores. Defendo só aquilo que posso reconciliar com a minha consciência. Por isso, não tenho nenhuma dificuldade moral em defender a decisão que levou às dívidas ocultas porque me identifico com o pensamento por detrás dela. O caso ainda não me proporcionou nenhum elemento para pôr isso em causa. Nada disso significa que não tenham sido cometido erros, muitos dos quais foram possíveis por causa de algo que há muito critiquei, nomeadamente o “poder da Frelimo”. Apesar de tudo, para mim a Frelimo é o único partido com potencial para assumir o compromisso com o tipo de País que eu gostaria que Moz fosse. Mesmo o facto de ter um presidente aquém do cargo que ocupa não constitui problema de maior para mim. É, na verdade, a manifestação do que este País devia ser. Qualquer pessoa pode ser presidente. O que falta, e eu critico, é a criação de condições para que as naturais fraquezas humanas e individuais não comprometam o objectivo maior. Essa é a fonte da minha crítica e, sobretudo, da minha decepção com a Comissão Política do partido que reúne gente capaz, inteligente e que pode fazer mais do que simplesmente saudar.
A arte de ficar calado acaba, assim, sendo a principal explicação para Cabo Delgado. Nesta ordem de ideias, abordar Cabo Delgado é muito mais do que desenhar um plano só para Cabo Delgado. O plano tem que abordar tudo aquilo que faz com que Cabo Delgado surja como problema, cresça e caia fora de controle. Não foram as FDS que permitiram isso. Foi a nossa cultura política, sobretudo a cultura política do partido no poder. Foi o mesmo erro estratégico que se cometeu em relação ao acordo de paz definitiva provisória. Ao invés de se pensar o País, pensou-se o específico no meio de côros de vozes que achavam que criticar esse tipo de pensamento constituía oposição à paz.
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