Testamento do mendigo
23 de Dezembro de 2018 10h38 - 43 Visitas
Há vícios que desde que comecei a viver nesta condição tratei de os evitar, porque me fazem mais vivo do que preciso. Um mendigo sempre vive às metades. Nesta noite, cedo a um desses vícios, escrevo, porque vejo este rio enviesado, que é a minha vida, desaguar num oceano que sempre me foi muito vizinho. Prometo não escrever muito.
Eu sempre soube, perdi-me naqueles acontecimentos.
Nasci João Carlos Esteves Cabral, "nome de médico reputadíssimo " dizia minha mãe com o espírito sobrelevado tentando convencer a si própria que um dia eu seria um médico de renome. O que sucedeu é que o menino que um dia sua mãe augurou médico reputadíssimo passou a vida carente de tratamento de outros senhores que se tornaram médicos de verdade.
Tudo começou com o assassinato de Maria Flor Esteves Cabral por seu marido naquele longínquo ano do início do século presente. O lar daquele casal de Bombarral que até ali se tinha destacado entre as demais casas pela bonomia e pacifismo ganhara com aquele homicídio uma mancha indelével na sua história. A mancha fez-se tempo infinito até que minha mendicidade fosse um dos seus reflexos.
Sempre me custou crer, mas a verdade não mudou ao longo destes anos. Meu pai assassinara a minha mãe depois de descobrir que aquela o traíra e não querendo se deixar colorir com a mancha daquele sangue suicidou-se em seguida.
Nunca me ocorreu reviver o que se passara, e agora me vejo no meio de tudo. Perdi-me naqueles acontecimentos. Tinha quinze anos quando tudo acontecera. E sem dúvida, perdi-me naqueles acontecimentos.
Nos tempos que se seguiram a tudo, fui visitado por uma depressão tão profunda que cabia toda a tristeza do mundo. Perdi o sentido da vida, fiquei parado naquele longínquo ano do início do século. Há realidades que parecem ter sido antes ensaiadas noutras vidas. O início do século marcava o chegar de sinuosidades que marcariam perpetuamente a geografia deste rio.
Tentando-me curar daquele estado que dentro de mim clamava dia e noite vaguear por onde era desconhecido, reconhecer em mim uma estrela sem noite, um sol sem dia, um beijo sem boca, um ser ninguém, fugi de tudo à primeira oportunidade que me espreitou. Corri e aos intervalos ensaiei passos apressados que só cessaram quando me vi nas ruas desta cidade, onde o ser ninguém se casou a mim, e tudo o que um dia eu tinha sido se perdeu no vácuo que sempre temeu a solidão.
Quinze anos se passaram e tudo o que me lembro é viver este estado, que os mais cultos chamam mendicidade. Lisboa tornou-se minha casa. Nestes anos conheci cada canto da cidade, cada segredo, cada cheiro. Inúmeras vezes me confundo e ao olhá-la vejo meu corpo.
Dia e noite passam por este lugar, onde não querendo ser reconhecido me reconheci ninguém, muitas pessoas. Confesso, algumas delas fazem-me perguntar para além do asseio o que as distingue de mim. Ter lar, ter quem os dê carinho? Muitas delas não vivem, sinto. Algumas olham-me com desdém, outras com pena, outras reconhecem em mim tudo que são. A palavra comum pela qual todos me qualificam é mendigo, um ninguém que tem as ruas da cidade por casa.
Disse que não escrevia muito e já concluo, não se apoquentem. As dores que aos poucos me fazem perscrutar o lado de lá já não me permitem muito. As lágrimas que molham este papel confundem-se com a chuva que cai nesta noite fria. Temendo tudo isto, vivi evitando este vício. Escrever é para quem vive, e a única coisa que mendigo sabe fazer é ser ninguém.
Algo entra no meu corpo, desenhando movimentos rectilíneos, e sai, criando em mim fraquezas. Não sei se aguento mais isto, sinto tudo se esvair de mim. Esta cidade, o papelão onde as minhas lágrimas ganham eterno descanso, o meu corpo frágil, a minha barba branca e a minha história é tudo que consigo vos deixar em testamento. Dava mais se pudesse, mas que mais pode dar um mendigo senão a si mesmo?
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