"A terra propriedade do Estado” diz a Constituição da República de Moçambique e a Lei de Terras. Mas a realidade mostra outra coisa. A venda ou o trespasse de terra nos bairros circundantes das cidades e vilas virou um negócio chorudo, com burlões, intermediários e muitos milhões de meticais à mistura.
Os artigos 3 da Lei de Terras e o 109 da Constituição determinam que a terra é propriedade do Estado, não deve ser vendida, ou por qualquer outra forma alienada, nem hipotecada ou penhorada. A lei é clara em relação a este aspecto, entretanto a realidade mostra que trata-se apenas de lei que o homem manipula a seu bel-prazer.
Este quadro é agravado pela especulação de preços que torna difícil a aquisição de espaços por parte de jovens de rendimentos médios que pretendam se estabelecer nas cercanias das capitais provinciais e nos distritos onde decorrem pesquisas e exploração dos recursos naturais, como é o caso de Tete, Cabo Delgado e Nampula.
Em Maputo, o fenómeno tomou proporções alarmantes em áreas como Bobole, Boquisso, Santa Isabel, Chiango, Marracuene, Boane (Estevel e Picoco) onde antes era possível encontrar espaços a venda a partir de cinco mil meticais, hoje as mesmas áreas de 15 metros por 30 chegam a custar 150 mil meticais.
No interior da cidade de Maputo e parte da Matola existem espaços cujos preços se comparam aos da compra de flats, como é o caso do terreno de 50 por 120 metros que nos foi exibido na zona conhecida por Godinho (na Matola) que está a ser vendido a seis milhões de meticais, sob o pretexto de que está vedado.
Em Marracuene, um espaço parcelado com 20 por 40 metros está a ser “trespassado” ao valor de 350 mil meticais. Enquanto isso, em Boquisso é possível encontrar a 120 mil meticais. Na Costa do Sol um espaço com as mesmas dimensões é comprado a 550 mil meticais.
Durante a nossa ronda constatamos que no bairro de Txumene, na província de Maputo, um espaço 40 por 30 metros vedado está a ser vendido a 90 mil dólares. Veda-se ou constrói-se um minúsculo quarto para que a violação da lei não seja flagrante. No lugar de venda de terreno passa a chamar-se trespasse.
A nossa Reportagem apurou que s entidades responsáveis pela atribuição de terra ao nível do país que estas dificilmente têm espaços para atribuir porque muitas vezes estes são de nativos. “É uma questão muito preocupante porque temos a Lei de Terras e a Constituição que proíbem a venda ou trespasse de terra. É um problema que afecta todos os municípios do país”, sublinhou Tagir Carimo, Presidente da Associação dos Municípios e do Município de Pemba, em Cabo Delgado.
CONTORNAR A LEI
Em geral, quem compra terreno num determinado bairro é indicado por alguém que, de preferência, vive ou ouviu de outra pessoa. É uma espécie de intermediário. A negociação, fixação do preço e os moldes de pagamento é feita directamente com o proprietário.
Há quem prefere pagar o valor fixado numa única prestação para evitar burlas, outros em duas e, quem não está em condições, pede mais parcelas. Um facto curioso é que nos documentos que são levados ao chefe do quarteirão pode constar que se trata de um sobrinho, primo, neto, entre outros. A ideia é fugir da penalização, pois a maior parte dos envolvidos tem consciência de que é proibido e existem sanções legais.
“Comprei um espaço 40 por 30 a 60 mil meticais na Catembe. Fizemos duas declarações, uma era o compromisso de pagamento e a segunda era a declaração que foi submetida ao distrito onde constava que tratava-se de trespasse para um sobrinho do dono do terreno e não constava nenhum valor”, sublinhou fonte ouvida pelo nosso jornal na condição de anonimato.
Outro interlocutor ouvido pelo domingo, disse que adquiriu um espaço em Muntanhana, em Marracuene, a 65 mil meticais, contou que teve que fazer a cerimónia de kupatlha para transferir o título e avisar aos espíritos que existe outro ocupante daquele espaço.
“Depois da cerimónia fomos a sede do distrito onde deram-nos um documento que legitimava-me como dono do espaço”, recorda.
Por seu turno, os intermediários envolvidos no negócio de venda de terra, garantiram que sabiam que esta não pode ser vendida nem trespassada. No entanto, segundo nos deram a conhecer, eles tem trabalhado com alguns agentes dos municípios que muitas vezes são responsáveis pela indicação dos lugares disponíveis para venda.
“No papel a terra não se pode vender, mas nós vendemos. Trabalhamos no ramo da imobiliária em coordenação com alguns agentes dos municípios”.
Segundo este grupo, para o caso de Maputo, desde a construção da estrada circular os bairros localizados nas cercanias valorizaram ainda mais e, por causa disso, a cada dia que passa tem se assistido a conflitos de terra recorrentes envolvendo pessoas de todos os estratos sociais.
“Estes conflitos surgem porque os nativos disponibilizam e nos mostram espaços para vender e depois de acertar com os interessados o município entende que é reserva e chega a demolir infra-estruturas”, asseguram.
Naquela área os terrenos são vendidos a valores que parte de 600 mil a quatro milhões de meticais, tanto para nacionais e estrangeiros. A maioria está interessada em espaços para construção de condomínios, bombas de gasolina, restaurantes, entre outros.
COMBATER
O PROBLEMA
Para o presidente do Município de Pemba, Tagir Carimo, é preciso um trabalho conjunto para se combater o problema de venda de terra, pois para além de ser ilegal acaba empobrecendo a própria comunidade que fica sem espaço para praticar agricultura.
No entanto, entende também que os regulamentos sobre a terra em Moçambique são controversos e abrem espaço para especulações, dai a necessidade de revê-los.
Segundo o nosso interlocutor, os intervenientes quando vão tratar da regulamentação dos terrenos em causa alegam que são resultado de uma doação e, mesmo sabendo que é mentira, o Município não tem como provar sem que haja denuncia.
“Pemba não foge da situação dos outros municípios do país. Para piorar os residentes não denunciam, nestas condições não podemos fazer nada, mesmo sabendo que houve venda porque não temos como provar”, disse.
Para se ultrapassar este problema, Carimo defende que deve haver aplicação efectiva da lei e tomar medidas certas para desincentivar a comercialização da terra. Para o caso concreto da cidade de Pemba uma das saídas encontradas, segundo o edil, tem sido a sensibilização das comunidades para que tenham em consideração que a terra é do Estado e não pode ser vendida.
Por seu turno, Maria José Torcida, administradora de Moatize, referiu que a administração daquele distrito não tem conhecimento da venda ilegal de terra e nunca recebeu denúncia popular relacionada com o assunto. “No nosso caso, o requerente faz um pedido as comunidades e nós fazemos o reconhecimento”.
ILEGAL, MAS VENDE-SE
O Presidente do Município de Boane, Jacinto Loureiro, disse ao nosso jornal que a venda de terra é uma prática que se tem consciência de que existe e, muitas vezes, resulta em conflitos de terra porque existem proprietários que acabam vendendo para dois ou mais pretendentes.
Quando isso acontece depois recorrem ao município para dirimir o conflito e já não dizem que compraram o espaço, pois tem consciência de que é proibido. “Mas fica sempre subentendido que houve interesse financeiro no meio. Só não temos como provar”, lamentou.
Loureiro disse que é um facto que o problema existe e tem que ser combatido de uma forma colectiva, não só deixar nas mãos dos municípios. Para tal, deve haver envolvimento da procuradoria, governo e das comunidades no geral para se encontrar uma estratégia para combater.
“Temos consciência que este problema existe em todo o país. Todos os presidentes dos municípios queixam-se desta situação. Precisamos encontrar outros mecanismos para o cumprimento da lei ou autorizar, de uma vez, a venda de terra. Para mim, ela deve continuar como está, a ser propriedade do estado”.
Apesar de ser apologista de que não se pode vender a terra em circunstância alguma, reconhece que o Município de Boane não tem espaços para atribuir aos munícipes que vão requer directamente. Muitas vezes, quando se pede um espaço naquela urbe a probabilidade de ter uma resposta positiva é pequena, entretanto se for a um ter com um líder comunitário encontra.
Os líderes normalmente justificam pelo tempo de uso e alegam ser os donos tradicionalmente, pois várias gerações passaram pelos mesmos locais e eles herdaram-nos. Por essa razão, os municípios acabam ficando sem espaços para atribuir.
“Neste momento estamos a trabalhar com os líderes para que nos disponibilizem espaços para parcelarmos e criarmos bairros de expansão. No acto de parcelamento o município fica com uma parte do terreno. Por exemplo, se o líder possui uma quinta que corresponde a sete terrenos depois de parcelado o município fica com três e ele com quatro”.
Segundo o nosso interlocutor, aquela edilidade sempre recebe pessoas que pretende legalizar os seus terrenos e alegam que houve um trespasse, entretanto por saber que não constitui a verdade foi criado um dispositivo legal, que consta na Postura Municipal, que é uma taxa paga nestes casos e varia de acordo com a localização.
A título de exemplo, no Belo Horizonte vende-se um terreno a 30 mil dólares e, depois da transacção, o comprador precisa legalizar, entretanto quando chega ao município diz que foi um trespasse. “Quando damos o primeiro Direito de Uso e Aproveitamento de Terra (DUAT) não cobramos nada. Mas a partir do momento em que aparece um terceiro envolvido cobramos. É este o valor que depois serve para abrir as ruas, colocar energia, entre outros”.
DENUNCIAR
OPORTUNISTAS
Avelino Muchine, administrador de Marracuene, também reconhece que, em termos legais, a terra não pode ser vendida, adjudicada nem de qualquer outra forma alienada, dai que não pode admitir que haja venda de terra, menos ainda a figura de trespasse.
A terra não é objecto económico e apenas é permitido a venda ou trepasse de uma que é economicamente imensurável. “Há oportunistas e alguns fazem a figura de trespasse que não pode ser legalizada. Alguns justificam alegando que houve cedência de uma parcela da sua terra para um determinado fim usando aquilo que são os hábitos e costumes”, lamentou Muchine.
Em termos legais, conforme está estatuído no Formulário de Regularização do Processo de Terra quem deve receber algum valor são os técnicos quando vão fazer o reconhecimento e colocação dos marcos e para o andamento do processo.
Por ter consciência de que há oportunistas sempre as autoridades distritais sempre que mantém encontros com as comunidades tem estado a dizer que a terra não se vende. “Faço questão de dizer isto sempre e sublinho ainda que aquele que for encontrado a vender a terra o lugar dele é na cadeia porque a lei já criminaliza a venda de terra”.
Como resultado da sensibilização, foram abertos processos contra dois indivíduos envolvidos e culminou com prisão, por envolvimento na venda de terra, resultante de denúncia da população local.
Outro facto que tem “tirado sono” às autoridades tem sido as construções nocturnas. Muitas vezes há ocupações ilegais, até de espaços reservados, e no dia seguinte aparecem infra-estruturas. Nestes casos, segundo apurámos, há envolvimento dos líderes comunitários, pois eles é que são responsáveis pela indicação dos espaços. “Não é possível que uma pessoa encontre um espaço vazio, ocupe e construa sem que as estruturas do bairro saibam”, frisou Muchine.
HABITANTES
DE BOA-FÉ
Um fenómeno comum ao longo do país é a existência dos habitantes de boa-fé, aqueles que tem o Direito de Uso e Aproveitamento de Terra por tempo em que vivem num determinado bairro. O problema é que estes têm vários hectares de terra a seu dispor, em geral praticam actividades como pastagem e agricultura.
Nas zonas rurais, este facto ainda acontece com alguma frequência e a terra passa de geração para geração. Entretanto, nas cidades encontramos os chefes de posto e líderes comunitários nestas condições e como resultado da expansão, aqueles locais onde antes eram considerados distantes são os preferidos para arranjar terreno a preços aceitáveis.
Os líderes comunitários, chefes de posto e os residentes mais antigos são os responsáveis pela atribuição de terra aos novos e, em geral, demarcam como bem entendem. Enquanto os municípios e administrações usam quatro marcos para demarcar os espaços, aquele grupo usa apenas três e o resultado disso é que temos zonas onde um terreno tem a forma de um triângulo.
“Para além da aquisição dos terrenos com os habitantes de boa-fé, os interessados podem vir a administração mostrar o seu interesse ou apresentar um projecto, nós vamos a comunidade apresentar o empreendimento e as vantagens que podem advir. Se o projecto for aceite inicia-se a tramitação”, sublinhou Avelino Muchine.
Texto de Angelina Mahumane
angelina.mahumane@snoticicas.co.mz
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Fotos de Jerónimo Muianga
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