O olhar vazio do pequeno sírio após o ataque que destruiu a casa da família testemunha o sofrimento diário da população na batalha sanguinária pela estratégica cidade. "Por vezes penso se as crianças que sobreviveram tiveram menos sorte do que as que morreram", interroga-se um médico.
Alepo, 2016. Mas podia ser qualquer um dos anos desde que, no Verão de 2012, a maior e mais pujante cidade da Síria se transformou num campo de batalha onde manda a política de terra queimada, a lógica do quanto pior melhor. De tão decisiva, nem as forças que combatem por Bashar al-Assad, nem os que, ali cercados, ainda acreditam que ele pode ser derrubado estão dispostos a ceder. Fazem-se avanços, cedem-se recuos, mata-se e morre-se, mas a vitória de qualquer um dos lados parece tão distante como sempre. E de repente, no meio do caos, surgem dois olhos vazios, um corpo pequeno coberto de pó e manchado de sangue. E de repente, o mundo que já não quer saber, que já se cansou de uma guerra demasiado longa e complexa, volta a emocionar-se. Nem que seja para amanhã voltar a esquecer.
Omran Daqneesh, de cinco anos, sobreviveu ao bombardeamento que, quarta-feira à noite, destruiu a casa onde vivia, no bairro de Qaterji, na metade Leste de Alepo que está nas mãos de vários grupos rebeldes. Nas imagens que circularam o mundo e desencadearam uma tempestade nas redes sociais sempre dispostas ao sobressalto, surge sentado no interior imaculado da ambulância, à espera do resto da família que como ele foi levada, em estado de choque, para o hospital. A ferida na cabeça foi rapidamente tratada e o pequeno saiu do hospital pouco depois. Não se sabe para onde foi, sabe-se que, como em qualquer outro lugar da cidade, não estará a salvo das bombas.
É essa a realidade das crianças – de todas as crianças – de Alepo há muito tempo. Calcula-se que sejam cem mil só nas zonas controladas pela rebelião, diariamente na mira da aviação e da artilharia do regime sírio. São mais ainda na metade Ocidental, em poder do Exército sírio e onde os rockets disparados pelos rebeldes matam também todos os dias. “Alepo é sem sombra de dúvidas, um dos conflitos urbanos mais devastadores da nossa época”, disse no início da semana o presidente do Comité Internacional da Cruz Vermelha, Peter Maurer, explicando que “ninguém, nem nenhum lugar, está a salvo” de ataques constantes.
Uma carnificina que redobrou de intensidade este ano – em Fevereiro o Exército sírio, com o apoio de milícias xiitas em terra e da aviação russa no ar, lançou uma ofensiva para quebrar o impasse instalado, num lento abraço às zonas rebeldes, interrompido por duas tentativas de trégua e que se fechou a 17 de Julho, quando foi cortada a última estrada de abastecimento ao Leste. Mas o cerco não durou – uma coligação encabeçada pela Frente Fatah al-Sham (o nome adoptado pela Frente al-Nusra depois de ter cortado oficialmente a sua ligação à Al-Qaeda) irrompeu pelo sudoeste, numa violenta ofensiva que permitiu abrir um precário corredor até à metade Leste de Alepo.
Não é só Alepo. São 18 localidades onde há civis cercados por combates ou por forças que apostam em subjugá-los. Mais de 600 mil pessoas ao todo, metade das quais crianças, diz a ONU. É o caso de Madaya e Zabadani, cidades da província de Damasco rodeadas pelas tropas de Assad, mas também Foua e Kafraya, duas aldeias xiitas de Idlib (Noroeste) cercadas pelos rebeldes. Desde 30 de Abril, ou seja já 110 dias, que não entra ajuda em nenhuma delas, sublinhou De Mistura. “Não vale a pena ter uma reunião sobre ajuda humanitária se não há um plano humanitário”.
Já nesta sexta-feira, depois de semanas de apelos em vão, Mistura conseguiu que o Crescente Vermelho sírio fosse autorizado a retirar 18 civis, 13 delas crianças gravemente doentes, de Madaya, e outros 18 de Foua e Kafraya. Numa das ambulâncias que seguiram em direcção a Damasco ia Yaman Ezzdin, um menino de dez anos que há um mês agonizava com dores numa clínica improvisada de Madaya, sem que os médicos conseguissem aliviar-lhe o sofrimento. “Que Deus poupe qualquer pai ou mãe de ver o seu filho neste estado”, disse há dois dias o pai de Yaman numa entrevista por telefone à AFP. “Tenho medo que seja demasiado tarde para o meu filho.”
Numa pequena réstia de esperança para Alepo, a Rússia disse estar disponível para apoiar o cumprimento de uma trégua de 48 horas, durante todas as semanas, para que ali possa entrar ajuda humanitária. De Mistura, que há muito a pedia, está em contacto com Moscovo e disse esperar que seja posta em prática “assim que possível”. Até lá os combates não param – Moscovo anunciou nesta sexta-feira ter disparado mísseis de cruzeiro contra alvos da Al-Nusra, incluindo em Alepo, e há combates muito intensos no sudoeste da cidade. Segundo o Observatório Sírio dos Direitos Humanos, 422 civis morreram desde o início do mês nos dois lados da cidade, 142 dos quais eram crianças.
Há duas semanas, 15 destes médicos enviaram uma carta ao Presidente norte-americano, Barack Obama, pedindo-lhe que use os seus meios na região para impor uma zona de exclusão aérea sobre os bairros rebeldes de Alepo. Washington, que limita as suas operações militares na Síria à ofensiva contra o Estado Islâmico, recusou sempre iniciativas deste género, que colocariam a Administração americana em rota de colisão não só com as forças de Assad, mas também com Moscovo. “Há cinco anos que assistimos a incontáveis doentes, amigos e colegas a sofrerem mortes violentas e com grande sofrimento. E há cinco anos que o mundo assiste impassível, que diz que a situação na Síria ´é muito complicada’”, escreveram.
E há poucos horrores, poucas atrocidades que Alepo não tenha visto. Primeiro foram os barris carregados de explosivos largados pelos helicópteros sírios. Nas últimas semanas surgiram novos relatos de pelo menos dois ataques com cloro e já nesta semana foi a vez de a Human Rights Watch denunciar o uso de bombas incendiárias sobre zonas habitadas. Denúncias que chovem também sobre a rebelião, incluindo a decapitação de uma criança que foi filmada por homens que se identificaram como combatentes de um grupo apoiado pelos EUA.
“De cada vez que trato crianças, muitas delas com feridas terríveis e traumatizadas, penso se aquelas que sobreviveram tiveram menos sorte do que as que morreram”, disse ao Guardian o médico sírio-americano Zaher Sahloul, que nos últimos meses arriscou várias vezes a vida para ajudar os colegas de Alepo. Segundo a UNICEF, 3,7 milhões de crianças sírias nasceram desde o início da guerra (em Março de 2011) e, como Omram, não conheceram outro contexto que não “o da violência, do medo, do desenraizamento”.
Mas Hamid Dabashi, professor de Estudos Iranianos da Universidade de Colômbia, indigna-se com quem vê em Omar Daqneesh um ícone da guerra na Síria. “A palavra ‘icónico’ tornou-se absolutamente obscena. A Síria já esgotou os seus ícones. A Síria é uma dor para a qual não há medida ou barómetro”, escreveu num artigo para a Al-Jazira, repudiando que, confortáveis nos seus sofás, líderes e cidadãos se limitem a acusar estes ou aqueles por uma culpa de que ninguém está isento. “Perante aquele rosto e aqueles olhos, todos os deuses em todos os céus e todas as criaturas à face da terra, da Casa Branca ao Kremlin, de Ancara a Riad, de Teerão ao Cairo, se sentam no banco dos réus.”
Omran Daqneesh, de cinco anos, sobreviveu ao bombardeamento que, quarta-feira à noite, destruiu a casa onde vivia, no bairro de Qaterji, na metade Leste de Alepo que está nas mãos de vários grupos rebeldes. Nas imagens que circularam o mundo e desencadearam uma tempestade nas redes sociais sempre dispostas ao sobressalto, surge sentado no interior imaculado da ambulância, à espera do resto da família que como ele foi levada, em estado de choque, para o hospital. A ferida na cabeça foi rapidamente tratada e o pequeno saiu do hospital pouco depois. Não se sabe para onde foi, sabe-se que, como em qualquer outro lugar da cidade, não estará a salvo das bombas.
É essa a realidade das crianças – de todas as crianças – de Alepo há muito tempo. Calcula-se que sejam cem mil só nas zonas controladas pela rebelião, diariamente na mira da aviação e da artilharia do regime sírio. São mais ainda na metade Ocidental, em poder do Exército sírio e onde os rockets disparados pelos rebeldes matam também todos os dias. “Alepo é sem sombra de dúvidas, um dos conflitos urbanos mais devastadores da nossa época”, disse no início da semana o presidente do Comité Internacional da Cruz Vermelha, Peter Maurer, explicando que “ninguém, nem nenhum lugar, está a salvo” de ataques constantes.
Uma carnificina que redobrou de intensidade este ano – em Fevereiro o Exército sírio, com o apoio de milícias xiitas em terra e da aviação russa no ar, lançou uma ofensiva para quebrar o impasse instalado, num lento abraço às zonas rebeldes, interrompido por duas tentativas de trégua e que se fechou a 17 de Julho, quando foi cortada a última estrada de abastecimento ao Leste. Mas o cerco não durou – uma coligação encabeçada pela Frente Fatah al-Sham (o nome adoptado pela Frente al-Nusra depois de ter cortado oficialmente a sua ligação à Al-Qaeda) irrompeu pelo sudoeste, numa violenta ofensiva que permitiu abrir um precário corredor até à metade Leste de Alepo.
Promessa de trégua
Pelo meio, russos e norte-americanos tentam entender-se sobre condições mínimas para uma nova trégua em Alepo. Apenas temporária. Apenas para que possa ser levada ajuda a quem dela desesperadamente precisa. Um desespero que é também de Staffan de Mistura, o enviado especial das Nações Unidas para a Síria. Quinta-feira, na mesma altura em que tantos se emocionavam com os olhos, vazios e assustados, de Omran, o diplomata decidiu interromper, ao fim de oito minutos, a reunião semanal do grupo de trabalho para a ajuda humanitária. “Nem um único comboio em todo o mês conseguiu chegar às zonas cercadas, nem um único comboio. E porquê? Por uma única razão. Combates”, indignou-se perante as repetidas promessas de que, sim, que desta vez as armas se iam calar.Não é só Alepo. São 18 localidades onde há civis cercados por combates ou por forças que apostam em subjugá-los. Mais de 600 mil pessoas ao todo, metade das quais crianças, diz a ONU. É o caso de Madaya e Zabadani, cidades da província de Damasco rodeadas pelas tropas de Assad, mas também Foua e Kafraya, duas aldeias xiitas de Idlib (Noroeste) cercadas pelos rebeldes. Desde 30 de Abril, ou seja já 110 dias, que não entra ajuda em nenhuma delas, sublinhou De Mistura. “Não vale a pena ter uma reunião sobre ajuda humanitária se não há um plano humanitário”.
Já nesta sexta-feira, depois de semanas de apelos em vão, Mistura conseguiu que o Crescente Vermelho sírio fosse autorizado a retirar 18 civis, 13 delas crianças gravemente doentes, de Madaya, e outros 18 de Foua e Kafraya. Numa das ambulâncias que seguiram em direcção a Damasco ia Yaman Ezzdin, um menino de dez anos que há um mês agonizava com dores numa clínica improvisada de Madaya, sem que os médicos conseguissem aliviar-lhe o sofrimento. “Que Deus poupe qualquer pai ou mãe de ver o seu filho neste estado”, disse há dois dias o pai de Yaman numa entrevista por telefone à AFP. “Tenho medo que seja demasiado tarde para o meu filho.”
Numa pequena réstia de esperança para Alepo, a Rússia disse estar disponível para apoiar o cumprimento de uma trégua de 48 horas, durante todas as semanas, para que ali possa entrar ajuda humanitária. De Mistura, que há muito a pedia, está em contacto com Moscovo e disse esperar que seja posta em prática “assim que possível”. Até lá os combates não param – Moscovo anunciou nesta sexta-feira ter disparado mísseis de cruzeiro contra alvos da Al-Nusra, incluindo em Alepo, e há combates muito intensos no sudoeste da cidade. Segundo o Observatório Sírio dos Direitos Humanos, 422 civis morreram desde o início do mês nos dois lados da cidade, 142 dos quais eram crianças.
“Nada vai mudar”
Ninguém conhece melhor estes balanços do que quem luta contra a morte nos corredores insalubres de hospitais bombardeados. “Há milhares de histórias de crianças amputadas e feridas”, disse à AFP Abu al-Baraa, cirurgião pediátrico, e um dos 35 médicos que ainda resistem na metade Leste de Alepo. Sabe que já compararam as imagens do pequeno Omran às de Aylan Kurdi, o menino curdo sírio que morreu, há quase um ano, afogado na travessia do Mediterrâneo. A fotografia do seu corpo franzino numa praia turca alertou consciências para o drama dos refugiados e há quem espere que o rosto do pequeno alepino faça o mesmo pelas seis milhões de crianças sírias que necessitam de ajuda urgente. “Nada vai mudar”, responde o doutor al-Baraa. “O mundo olha todos os dias para fotos e vídeos de crianças que retiramos dos escombros, mas não faz nada.”Há duas semanas, 15 destes médicos enviaram uma carta ao Presidente norte-americano, Barack Obama, pedindo-lhe que use os seus meios na região para impor uma zona de exclusão aérea sobre os bairros rebeldes de Alepo. Washington, que limita as suas operações militares na Síria à ofensiva contra o Estado Islâmico, recusou sempre iniciativas deste género, que colocariam a Administração americana em rota de colisão não só com as forças de Assad, mas também com Moscovo. “Há cinco anos que assistimos a incontáveis doentes, amigos e colegas a sofrerem mortes violentas e com grande sofrimento. E há cinco anos que o mundo assiste impassível, que diz que a situação na Síria ´é muito complicada’”, escreveram.
E há poucos horrores, poucas atrocidades que Alepo não tenha visto. Primeiro foram os barris carregados de explosivos largados pelos helicópteros sírios. Nas últimas semanas surgiram novos relatos de pelo menos dois ataques com cloro e já nesta semana foi a vez de a Human Rights Watch denunciar o uso de bombas incendiárias sobre zonas habitadas. Denúncias que chovem também sobre a rebelião, incluindo a decapitação de uma criança que foi filmada por homens que se identificaram como combatentes de um grupo apoiado pelos EUA.
“De cada vez que trato crianças, muitas delas com feridas terríveis e traumatizadas, penso se aquelas que sobreviveram tiveram menos sorte do que as que morreram”, disse ao Guardian o médico sírio-americano Zaher Sahloul, que nos últimos meses arriscou várias vezes a vida para ajudar os colegas de Alepo. Segundo a UNICEF, 3,7 milhões de crianças sírias nasceram desde o início da guerra (em Março de 2011) e, como Omram, não conheceram outro contexto que não “o da violência, do medo, do desenraizamento”.
Mas Hamid Dabashi, professor de Estudos Iranianos da Universidade de Colômbia, indigna-se com quem vê em Omar Daqneesh um ícone da guerra na Síria. “A palavra ‘icónico’ tornou-se absolutamente obscena. A Síria já esgotou os seus ícones. A Síria é uma dor para a qual não há medida ou barómetro”, escreveu num artigo para a Al-Jazira, repudiando que, confortáveis nos seus sofás, líderes e cidadãos se limitem a acusar estes ou aqueles por uma culpa de que ninguém está isento. “Perante aquele rosto e aqueles olhos, todos os deuses em todos os céus e todas as criaturas à face da terra, da Casa Branca ao Kremlin, de Ancara a Riad, de Teerão ao Cairo, se sentam no banco dos réus.”
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