quinta-feira, 3 de março de 2016

Chambocadas na Linha da Frente

Chambocadas na Linha da Frente
- Bom dia amigos.
- Bom dia camarada comandante – responderam em uníssono.
O Comandante António Chichava revolvendo os olhos, anunciou:
- Meus amigos, faço lembrar que a nossa marcha durará 30 dias, pelo que devem estar preparados para enfrentar todas as adversidades.
Após a distribuição equitativa de granadas a caravana pôs-se em marcha.
(...)
O Comandante António Chichava decidiu interromper a marcha.
- Alto! Podemos acampar aqui mesmo. Penso que já fizemos mais de 80 km – suspirou – façam um círculo e ponham o morteiro no meio. O Primeiro Pelotão deverá ficar de sentinela.
A Companhia espalhou-se, formando o círculo solicitado.
(...)
Entretanto, Zeca e José esticaram a capa-de-chuva, e adormeceram profundamente.
Enquanto dormitavam embalados com o farfalhar sedativo da chuva persistente, uma serpente desdobrou-se, levantando a cabeça. Agitou-a lentamente, em seguida poisou-a no solo. Contraiu os músculos da barriga, deslizando-se suavemente na direcção onde estava o Zeca. Contornou-lhe até descobrir uma brecha entre as pernas e introduziu-se no cobertor como que sugado por um aspirador. Enrolou-se calmamente nas suas costas e adormeceu também. Os dois passaram uma noite calma e repousante.
De manhãzinha, muito cedo, o Zeca espreguiçou-se ao comprido no cobertor, apertando um pouco mais a cobra, sentiu algo estranho. Gelado. Mole. Desviou um dos braços de modo a tactear o estranho corpo. Hesitou. O peito arfava. As costas continuavam geladas e a cobra ainda adormecia. Zeca, de novo, esticou-se. Desta vez a cobra desdobrou-se um pouco. Assustou-se, amaldiçoando a existência daquele bicho estranho que lhe congelava as costas como um frigorífico carregado de pedras de gelo. Levantou-se acabrunhado, e puxou pela AK 47. Quando a cobra saiu do cobertor, o susto do Zeca agigantou-se. Como que sob o efeito de artes mágicas, apertou instintivamente o gatilho, cuspindo uma saraivada de balas que deceparam o réptil em dois pedaços.
Houve um momento de tensão na companhia. Todos abriram as seguranças das armas, aguardando pelo novo disparo. Nada!
José esclareceu:
- Foi aqui, camaradas! Uma cobra queria matar-nos e...
Houve um murmúrio de desagrado. Uma cobra. Uma saraivada daquelas só por causa de uma cobra. Bolas!
O Comandante mandou-os chamar. Entortou a cabeça e decidiu:
- Durmam! Cada qual deve receber dez chambocadas... vá durmam...
Os dois estenderam-se, exasperados.
As chambocadas foram dadas com relativa mestria. Duras, doridas e desgostosas.
O Comandante António Chichava soergueu-se, exibindo o peito desmedido.
- Espero que isto sirva de lição para todos. Aqui só se dispara em função da minha ordem. Caso contrário, só poderão fazê-lo em casos extremos – continuou – , disparar sem motivos só nos leva a um profundo descalabro. Se o inimigo estiver perto, estamos perdidos. Monta-nos uma emboscada e... pimba. Por isso digo, meus amigos, essa punição não é contra vocês, mas sim, contra as vossas ideias. (1)
1. Trecho extraído do livro «Caminhos da Violência» de Augusto Macaba, editado pela Ndjira – Colecção Ondas do Índico. Maputo, Setembro de 2015.

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