SAVANA Maputo, Sexta-feira, 27.10.00, Ano VI Nº 354
Tema da semana
Fanuel Malhuza continua a desafiar as teses da Frelimo sobre a História:
“Urias Simango foi vítima da demagogia do tsonga”
Por Salomão Moyana
“Urias Simango nunca foi reaccionário. Foi apenas vítima
da demagogia tsonga.Quer dizer, os estatutos da Frente de Libertação de
Moçambique diziam que, em caso de morte do presidente, o vice-presidente,
automaticamente, ascendia à presidência. Mas, quando morreu Mondlane, três
tsongas vão a casa de Simango pedir-lhe para não tomar o poder, alegando que
era preciso mais tempo para se organizar uma tomada mais pomposa do poder.
Simango comete o grande erro de aceitar a proposta dessas pessoas, não tomando
o poder, o que deu campo para todas as manobras que culminaram com a sua
expulsão da Frelimo, com nomes feios de reaccionário, traidor, etc.”.
É o nosso entrevistado da semana passada, Fanuel Guidion Mahluza, que nos diz
estas coisas, as quais não são muito diferentes das que já ouvimos doutros moçambicanos,
igualmente, participantes da libertação nacional. Ele fala o resto.
Uma vez o senhor disse-me que Urias Simango tinha sido vítima de demagogia
do tsonga. Pode explicar isso melhor para o público conhecer a sua versão?
- Tudo isso vem à tona quando o primeiro presidente da FRELIMO é assassinado no
dia 3 de Fevereiro de 1969. É que nessa altura não se respeitam os estatutos e,
consequentemente, Urias Simango não assume as responsabilidades de presidente
da frente.
O que é que diziam os estatutos da
FRELIMO quanto à sucessão do presidente em caso de morte deste?
- Que o vice-presidente, automaticamente, e sem perguntar a ninguém, assume a
responsabilidade da presidência da frente.
Mas os tsongas, incluindo o actual Presidente da República, dizem a Urias
Simango que tudo o que estava nos estatutos iria ser cumprido, mas que antes
disso, por um período de três meses, vamos formar um triunvirato para fazer a
preparação da sua passagem para a presidência da FRELIMO.
Urias Simango, por complexo de inferioridade, aceita.
Se Urias Simango fosse um tsonga, garanto-lhe que não teria aceite, teria
imediatamente assumido a presidência da FRELIMO, tal como rezavam os estatutos.
Mas o Simango aceita perante o pedido dos tsonga de esperar três meses para a
subida ao poder. Pôs-se, então, Simango como presidente, Marcelino dos Santos
como presidente e Samora Machel como presidente. Eles já sabiam o quê que eles
queriam.
Os três eram presidentes com poderes
iguais?
- Os três presidentes com igual poder. Não há nada que o outro pode fazer sem o
conhecimento dos restantes dois. E o grupo tsonga, durante aqueles três meses
estava a cavar o Simango.
Quando o Simango descobre o que se estava a passar, salta e vai para imprensa e
publica um documento intitulado “The Gloomy Situation in FRELIMO”, e logo os
dois saem e vêm a público dizer: “Estão a ver? É o que a gente disse. Nós os
três temos os mesmos poderes e ele está aí a insultar a nossa organização. Ele
não tem poder para fazer isso, porque ele não é presidente. Ele é um ambicioso,
é confuso!”
Imediatamente, começa uma vasta campanha visando a expulsão de Urias Simango da
FRELIMO. O grupo tsonga consegue essa façanha, consegue-se expulsar Urias
Simango, Samora Machel entra na presidência da Frelimo com Marcelino dos Santos
como vicve-presidente e o triunvirato termina por aí.
Simango nunca foi traidor.
Nunca? - Sou eu que estou a dizer.
Escre
a isso.
Simango nunca foi traidor. É feito traidor pela demagogia do tsonga. É que o
tsonga tem um grande complexo de superioridade em relação ao ndau e este, às
vezes, tem um grande complexo de inferioridade em relação ao tsonga!...
Eu sou mutsonga, mas posso lhe dizer que o tsonga é demagogo e tem um grande
complexo de superioridade em relação aos outros grupos étnicos moçambicanos.
Desde a fundação da Frelimo que essa demagogia tsonga foi evidente.
Portanto, Urias Simango nunca foi traidor, foi apenas vítima duma cilada do
tsonga. Eu disse isso mesmo ao Chissano no dia em que fui falar com ele. E ele
começou a rir. E talvez ele próprio não sabia.
Mas participou no afastamento de
Simango...
- Com instinto pode ter participado. Por exemplo, eu escrevi para Mondlane a
convidá-lo para se vir juntar a nós, não porque soubesse de alguma coisa, mas
esse era um instinto que eu tinha. Eu também fiz, mas era um instinto, sem
saber exactamente o quê que estava a fazer e porque é que fazia exactamente
aquilo. Mas fiz porque algo no íntimo me dizia que a liderança da frente tinha
de ser feita por um tsonga.
Coitado, nunca foi traidor?
- Não. Eu é que estou a dizer que ele nunca foi traidor e ninguém vai desmentir
e nem sequer responder a isto. Nunca ninguém apresentou evidências concretas
das várias acusações contra Simango. Diz-se tudo dele mas nunca ninguém provou
que ele matou Mondlane, nunca ninguém provou que fosse traidor de seja o que
for. Nós sabemos que Simango nunca foi isso tudo. Simango foi apenas vítima da
demagogia tsonga, de não aceitar outros grupos à frente da Frelimo. E isso
ainda hoje o senhor pode ver na mesma como se organiza o poder no País.
Eles podem me matar hoje, alegando que estou a insultar o governo, eu não
recuo, porque sei que Simango nunca foi um traidor. Ele apenas foi traidor da
demagogia do tsonga e mais nada.
E sendo o senhor um membro fundador da
FRELIMO porque é que abandonou a Frelimo?
- Olha, naquela demagogia do tsonga, o grupo Simango descobre que eu é que
chamo Mondlane para tomar a liderança.
Quando é que descobre isso?
- Em 1963. Descobre-se de que eu é que tinha chamado Mondlane, impedindo que
Urias Simango ficasse presidente da FRELIMO. Portanto, a partir daí, sou posto
na lista daqueles que deviam desaparecer.
Só que entre os membros da segurança da FRELIMO, um deles era meu amigo e ele
faz-me chegar a informação de o meu nome estar na lista dos que deviam
desaparecer.
Perante estes factos, ponderei e cheguei à conclusão de que era melhor ser um
herói vivo do que um herói morto.
Sai da FRELIMO e vai para onde?
- Vou para uma nova organização que depois nasce em 1963. Lembre-se que, em
1963, a FRELIMO teve desavenças, onde muitos membros fundadores são expulsos e
um deles é Gumane, David Mabunda e mais outros.
E isso acontece em 1963?
- Exactamente, em 1963. E acontece que estes todos eram meus amigos e assim
nasce o COREMO (Comité Revolucionário de Moçambique) que é exactamente formado
em 1963.
É então que quando decido deixar a FRELIMO vou entrar no Comité Revolucionário
de Moçambique, COREMO, onde desempenhei as funções de secretário da Defesa, do
princípio até ao fim.
E o COREMO fez o quê?
- COREMO é quem, efectivamente, lutou em Tete. E o COREMO chegou até à
província de Manica, enquanto a FRELIMO só chegou, praticamente, no fim da
guerra. Por outro lado, a FRELIMO não se fez sentir muito na província da
Zambézia. A luta da FRELIMO era mais intensa nas províncias de Cabo Delgado e
Niassa.
Estavam a lutar duas organizações para
libertar o mesmo país?
- Sim. E esta organização era liderada por Gumane, o COREMO. O presidente era
Gumane e eu era o secretário da Defesa. Mas quando chegam as negociações que
levaram à assinatura do Acordo de Lusaka, acontece que Nyerere convence Kaunda
a acabar com o COREMO, que era para não perturbar as conversações entre a
FRELIMO e Portugal. Então, Kaunda acaba mesmo com o COREMO.
Afinal, quem dava armas ao COREMO?
- Era Kaunda. Mas quando chega o último momento, Kaunda e Nyerere ficam juntos,
pois levam os membros do COREMO e metem na prisão como forma de evitar que
aqueles pudessem participar nas negociações de Lusaka com Portugal.
O COREMO fez muito. Uma vez conseguiu capturar 24 soldados portugueses duma só
vez, facto que a FRELIMO nunca tinha feito. O COREMO termina em 1974?
- Sim. Durante as negociações que culminaram com os Acordos de Lusaka.
Quando há negociações Kaunda manda
prender a todos vocês?
- Ele mandou prender todos nós.
E o senhor também esteve preso?
- Estive preso, sim senhor, em Lusaka.
E depois como é que saem daí?
- Bom, eu era secretário de Defesa. Sabe que o guerrilheiro é uma pessoa muito
difícil. Tínhamos militantes e tudo. Armas e tudo. Os meus amigos disseram para
eu fugir da prisão. Então, fugi da prisão e fui me reunir com os militantes a
quem expliquei sobre o ponto da situação naquele momento, traçando ao mesmo
tempo as instruções que deveriam seguir dali em diante.
Mahluza no Moçambique “D”
Expliquei a eles que poderiam entrar para a FRELIMO como instrução superior dos
dirigentes do COREMO.
Só que depois de ter realizado este trabalho, mais tarde voltaria a ficar
preso.
Foi preso aonde?
- Mesmo em Lusaka. Mas depois disso fugi de novo e voltei para o interior de
Moçambique, mais concretamente para esta cidade antes de ser Maputo, quando
ainda se chamava Lourenço Marques.
Só que quando cheguei aqui o Presidente Samora Machel mandou prender-me também.
Em que ano foi isso?
- Em 1975. Isso ocorreu poucos dias depois da Independência, facto que me
obrigou a estar durante nove meses no Comando da Polícia\; permaneci seis meses
na Cadeia Civil\; fiquei quatro meses na Cadeia da Machava e, finalmente, fui
levado para Pemba, onde estive numa cadeia subterrânea sem roupa durante três
meses.
Depois daí, fui mandado para o chamado “Moçambique D”, em Cabo Delgado.
“Moçambique D”? - Sim. “Moçambique
D” era onde se eliminavam todas as pessoas que fossem consideradas
reaccionárias pela F
ELIMO.
Como é que era esse “Moçambique D”?
- Era uma prisão dentro de Moçambique.
Estava aonde e em que zona?
- Estava na província de Cabo Delgado, na região de Ruáruá.
Fui levado para lá para ser morto, mas com a vantagem de ser guarnecido por
soldados que tinham acabado de ser recrutados para as fileiras do exército.
Durante o governo de Transição.
E isso era vantajoso porquê?
- É que eu como guerrilheiro experiente vir a ser guarnecido por
recém-recrutados de certa forma era uma vantagem para empreender qualquer
tentativa de fuga. É verdade que o comandante do tal “Moçambique D” era irmão
deste Lagos.
O Lagos Lidimo?
- Sim, Lagos Lidimo. E era muito mau.
Tal como o irmão?!...
- Lá cheguei a presenciar pessoas que eram enterradas vivas apenas porque
estavam doentes. Aquele comandante ordenava que se enterrasse qualquer pessoa
que naquele centro prisional se apresentasse doente. Eu vi isso com estes meus
olhos. Quando presenciei essas situações disse para comigo que aquele não era
local para eu permanecer por muito tempo. Tinha que fugir daquele lugar.
-Quanto tempo é que ficou no “Moçambique
D”?
- Fiquei uns seis meses.
E organizei a minha fuga para a Tanzânia.
Então, todo este tempo ainda se estava à
espera da ordem para o matar?
- Sim, para me matarem. Entretanto, eu tomei a dianteira porque consegui
organizar a minha fuga com destino à Tanzânia. Só que quando chego a Tanzânia
sou preso acusado de ter entrado naquele país sem documentação e ainda por cima
e sem visto de entrada.
Levado a tribunal, fui condenado a um ano de prisão. Passei muito mal.
Trabalhei na cadeia durante aquele período até ser liberto decorrido um ano.
Quer no acto da minha detenção como durante o tempo que estive na cadeia em
cumprimento da pena de prisão, mantive a falsa informação de que eu era cidadão
malawiano, emitindo propositadamente o facto de ser moçambicano, por temer ser
extraditado. Tinha receio de que em caso de descobrirem a minha identidade me
pudessem recambiar para Moçambique onde a situação que me esperava não era
agradável.
Por isso, fiquei na prisão como malawiano, uma pessoa que não entendia uma
palavra sequer de kiswahili, quando, na realidade, eu percebia tudo.
Repare que durante a minha permanência na prisão, as pessoas podiam falar mal
da minha pessoa em kiswahili sem que eu pudesse manifestar algum interesse,
porque tinha de manter nas pessoas a ideia de ser malawiano que entrara para o
território tanzaniano pela primeira vez quando fui preso.
Alguns amigos do cativeiro começaram a sentir pena de mim e daí começaram a me
ensinar uma língua que julgavam desconhecer e também ia na onda.
O meu comportamento manteve-se assim até concluir o cumprimento da minha pena.
Quando saí da cadeia, continuei a minha viagem com destino ao Quénia, onde me
estabeleci e vivi estes últimos 22 anos juntamente com a minha família.
Quando estava preso a sua família estava
aonde?
- Não. Eu tenho duas famílias. Há a família que estive com ela durante o tempo
da guerra. Essa família está em Inhambane e os meus filhos já estão crescidos.
Agora, esta família que tenho agora e no Quénia é que quando fugi em 1977
organizei-me lá no sentido de constituir outra família.
Sabe que em gíria popular tsonga diz-se que um homem viaja sempre com a sua
enxada que é para poder cultivar onde quer que esteja.
Então, tenho família no Quénia e quatro filhos, a mais velha das quais já é
estudante universitária, lá no Quénia.
Agora, como é que se tornou dirigente da
Renamo?
- Eu estava no Quénia a trabalhar, na minha qualidade de engenheiro-técnico de
refrigeração. Fui naquele país, professor durante quinze anos.
Professor de quê?
- Professor de refrigeração.
Onde é que aprendeu a refrigeração?
- No Quénia mesmo.
Fui professor desta disciplina por um período de quinze anos e durante esse
período fui considerado um dos melhores professores. A razão dessa situação
resulta de que muitos professores só ensinam teoria. Mas ao contrário de mim,
ensino teoria e ao mesmo tempo ensino prática. Se ensino de manhã teoria à
tarde volto à escola para ensinar prática.
Por isso, como vê, no Quénia, eu estava a fazer praticamente a minha vida.
Acontece que uma vez dessas discute-se na Renamo que existe por aí, um fulano
com “um rabo muito grande” em matéria de política o qual poderia dar algum
empurrão à situação da Renamo. Tal pessoa de quem falavam era exactamente a
minha pessoa.
Então, em 1982 eles pro-curam por mim e apanham- me.
Levam-me para a Renamo e lá me explicam o que queriam de mim e em seguida me
dão o posto de Secretário de Relações Externas da Renamo. Essa função foi logo
me atribuída.
Logo que falaram comigo e me atribuíram aquelas responsabilidades, logo aceitei
porque para além de querer ser de alguma forma útil ao meu País, também queria
me vingar daquilo que me tinha acontecido na Frelimo.
Mas deixe-me explicar-lhe que naquela altura a Renamo não era aceite no mundo.
Porque em muitas partes a Renamo era considerada como uma organização do antigo
colono.
E foi para transformar esta situação que me escolheram. De facto custou-me nos
primeiros momentos desvendar aquele mito de que a Renamo era uma organização do
colono.
Os boeres temiam que a Renamo
passasse para americanos
Fui para Europa e fui para América. A primeira vez não podia. A segunda vez já
tinha bons adeptos da causa defendida pela Renamo. A terceira vez tinha ganho
exactamente porque comecei a descrever o comunismo em Moçambique, a maneira
como eu conhecia o percurso das coisas e as explicações apresentadas foram
aceites. As explicações foram bem aceites mesmo em lugares muito sensíveis e
susceptíveis de não acreditarem facilmente nas explicações que eu apresentava
sobre a causa da Renamo.
Essas instituições até diziam: “Não aceitamos nem ao próprio Dhlakama.
Aceitamos a você, mas ao próprio Dhlakama, não”.
Mas com tanto trabalho diplomático realizado, fui capaz de penetrar e fazer com
que a Renamo e o seu presidente começassem a ser aceites, sobretudo nos Estados
Unidos.
Com que organizações americanas é que a
Renamo trabalhou nessa altura?
Na América, eu fui convidado a falar de Moçambique na grande Igreja Presbiteriana
americana, a qual tem milhões de fiéis. Expliquei-lhes que em Moçambique Deus
foi declarado “person non grata” pelo governo da Frelimo e que, para termos
contacto com Deus, nós, moçambicanos, tinhamos que viajar para a Suazilândia,
África do Sul ou outros países não comunistas onde pudéssemos, à vontade,
prestar homenagem a Deus.
Essas minhas palavras tiveram grande impacto no seio dos presbiterianos, os
quais, de imediato, prometeram grande apoio moral e financeiro à Renamo.
Fui também falar para uma das mais ricas fundações do mundo, a Jefferson
Foundation, a fundação que financiava a UNITA. Falei dos males do comunismo em
Moçambique e dos objectivos da Renamo. Fui aceite e recebi imensas promessas de
apoio.
Fui levado por uns congressistas americanos até ao Pentágono, onde já tinham
ouvido falar de mim através da Jefferson Foundation e dos presbiterianos. O
Pentágono queria que eu apresentasse a nossa lista das necessidades militares.
Eu respondi que não era eu a pessoa mais indicada para apresentar a lista das
necessidades militares, que isso seria melhor apresentado pelo próprio
presidente da Renamo, Afonso Dhlakama. E perguntaram-me, então, em quanto tempo
seria eu capaz de fazer Dhlakama viajar aos Estados Unidos. Eu respondi: em
três meses. Então, ficou acordado que dentro de 3 meses eu levaria Dhlakama ao
Pentágono.
Conseguiu levar Dhlakama para lá?
Não. Acontece que os meus sucessos diplomáticos eram minuciosamente
acompanhados pela representação diplomática da África do Sul nos Estados Unidos,
a qual mandou, antes de eu regressar a África sequer, um relatório completo
sobre as organizações que eu andava a contactar na América e os seus interesses
estratégicos. Esse relatório alarmou os generais sul-africanos que começaram a
sentir que a Renamo lhes fugia ao controlo e que corria o risco de cair no
controlo dos americanos. Então, os generais sul-africanos mandam informar ao
Dhlakama para me matar ou me expulsar o mais rapidamente possível da
organização.
E como é que ele reagiu a isso?
- Acatou as ordens dos sul-africanos. Quando terminei os meus contactos
diplomáticos na América, a caminho de Pretória onde pretendia prestar o
relatório ao presidente da Renamo, passei pela casa, em Nairobi, para ver a
família após longas semanas de ausência em serviço da Renamo. Quando chego a
casa, mesmo antes de me encontrar com a direcção da Renamo para prestar o
relatório, encontro em casa um documento da Renamo assinado pelo próprio
presidente que me informava que eu estava expulso da Renamo a partir daquele
momento que eu lia o documento.
Que razões é que apresentaram para tão
drástica medida?
Nenhumas razões foram invocadas. Apenas me diziam que a partir daquele momento
eu já não pertencia à Renamo. E tudo acabou aí. Os três filhos da Nyokasi Fanuel
Guidion Mahluza deteve-se muito a explicar-me aspectos relacionados com a
origem de alguns grupos populacionais moçambicanos, que ele melhor conhece.
isse que o que sabe sobre os povos desta região do País resulta, primeiro, das
explicações obtidas dos seus avós e pais. Depois, de pesquisas que tem vindo a
levar a cabo junto de fontes orais e escritas, sobretudo da África do Sul, zona
antigamente conhecida por Gazankulo, ora chamada por Northen Province.
Já tivemos oportunidade de discutir esta temática com Abner Sansão Muthemba,
esse outro conhecedor da História desta região do País, mas achamos que a
contribuição de Mahluza acrescenta muito ao conhecimento que se vai construindo
sobre quem somos nós.
Quem era Sochangane e o que é que ele
representa para a História deste País?
- Era um príncipe zulu, da Zululândia, particularmente da etnia nguni.
Ele sai de Zululândia ou por causa de guerras ou porque, como príncipe, tinha
que arranjar um novo império para si. E ele vai, deixa os suázis e vai até ao
Northen Transvaal, onde é mais conhecido por Gazankulo e aí se casa com a
Nyokasi. E esta Nyokasi passa a ostentar o título de Rainha.
Como um príncipe e mais tarde como um rei, Sochangane tinha muitas mulheres.
Mas a Nyokasi era a Nkosikazi. Portanto, quando a gente fala dos filhos de um
rei a gente não fala acerca dos filhos de todas as mulheres que andam com o
rei. Falamos tão somente dos filhos gerados pela Rainha.
Portanto, com a Nyokasi, Sochangane teve três filhos, a saber Ndawe, como sendo
o primeiro filho do casamento, a seguir vem Tsonga, que é o segundo filho e,
finalmente, nasce o Venda que é o terceiro e último filho de Sochangane com
Nyokasi.
Portanto, a nossa referência, eu gosto sempre de dar um ponto de referência,
Nyokasi é o primeiro nome das mulheres tsonga. É de Nyokasi que nascem Niosi,
Mantchasi, Ntewasi, Nkothasi, Yothasi, Newasi, Hlavasi, Mevasi, Ntavasi,
Yethasi, etc, todos esses nomes derivam de Nyokasi, a esposa de Sochangane.
O que é que acontece. Ndawe, como príncipe, forma o seu exército e por regra
todos os príncipes deviam ter os seus próprios exércitos. Então, ele quando
cresce informa ao pai que pretendia arranjar o seu próprio Império, o que foi
imediatamente aceite pelo pai. E Ndawe foi-se.
Na viagem de pesquisa do tal Império, Ndawe segue o curso do rio Limpopo, vem
com o Limpopo e chega numa parte onde aquele rio faz uma confluência com o rio
Shengane.
Acontece que nessa época em que ocorrem estes acontecimentos, era tempo de
guerras de conquista e ocupação. A coisa mais importante para os povos dessa
época e seus reinos era guerra. E o Ndawe sabia perfeitamente, como militar,
que estabelecendo-se naquele local estratégico somente poderia ter preocupação
de se defender contra possíveis invasões apenas de um único lado, porque pela retaguarda
tinha a defesa natural constituída pelos rios Limpopo e Shengane. E estabelece
a sede do seu reino em Mukhotweni, um local igualmente estratégico porque
situa-se no ponto mais alto daquela região que possibilita uma visão geral dos
povoados em redor de si. E vai reparar que na antiga sede do reino de Ndawe, em
Mukhotweni, até aos nossos dias ninguém habita aquele local, de tão sagrado o
consideram os habitantes daquela região.
Todo aquele lugar está cheio de pequenas dunas, espécie de viveiros de “murmuchém”
que nunca dali desaparecem.
E foi então ali que Ndawe estabeleceu a sede do seu reino.
E -a partir de então ele passa a cobrar vassalagem a Macia, vassalagem em
Maputo, em Khosene, vassalagem que vem daquele lado que hoje chamamos de
Mandlakazi e em Utswene, ficando aquilo ali conhecido por Império do Ndawe.
Enquanto isto, o Tsonga está a crescer e assim que a idade vai avançando forma
também o seu exército pessoal, na sua qualidade de príncipe.
Uma particularidade interessante do Tsonga é que ele era muito querido pela
mãe, comparativamente aos outros dois irmãos. Era o filho mais próximo da
Rainha Nyokasi.
Nyokasi era uma mulher muito difícil que até tentava, por vezes, impor-se ao
próprio Rei Sochangane. Era, por outro lado, uma mulher muitíssimo inteligente.
E encontrou no Tsonga o filho obediente que cumpria escrupulosamente tudo
quanto a mãe dizia ou ordenava e isso fazia-a muito feliz quando estivesse com
aquele seu filho.
Assim, o Tsonga ficou o filho mais próximo de sua mãe Nyokasi.
Portanto, a Nyokasi deixou para Tsonga tudo quanto ela tinha.
Então, quando Tsonga cresceu, diz, uma vez, ao pai Sochangane que pretendia ir
visitar o seu irmão Ndawe. E quando os preparativos da partida estavam em
curso, a Nyokasi entende que aquela viagem iria separá-la por alguma temporada
do seu filho mais querido.
Por isso, ela disse o seguinte ao Rei Sochangane: Vou com meu filho para ir ver
o outro meu filho também.
Tsonga inicia guerra contra NdaweE
assim, Sochangane deixa Nyokasi seguir viagem com o Tsonga.
Então, Tsonga acompanhado da mãe seguem viagem e vão à procura do irmão Ndawe.
Quando chegam são recebidos com pompa e circunstância por Ndawe porque estava
muito satisfeito em acolher no seu reino a mãe e o seu irmão mais novo.
A visita de Tsonga e mãe aos domínios de Ndawe não era uma coisa que durasse
apenas uma semana ou um mês, tratava-se de uma permanência que levou uns dois a
três anos.
Eis que um dia, a Rainha Nyokasi chama de lado Tsonga e lhe diz o seguinte: meu
filho, qual é o melhor Império que mais precisas do que este? Você, por mais
que percorra inúmeras distâncias, jamais encontrará melhor Império que este.
Tsonga perguntou à mãe o que devia fazer então, tendo em consideração que
aquele era Império do seu irmão.
Nyokasi não hesitou: Guerra!... Faça
guerra com o seu irmão!
Tsonga pensou duas vezes sobre o significado das palavras da mãe. Mas, como
fosse filho obediente e que sempre desde criança aprendera a respeitar os
conselhos e as ideias da mãe, decidiu-se a seguir a decisão da mãe.
Foi assim que Tsonga levanta-se em guerra contra o seu irmão mais velho, Ndawe.
Tal guerra não foi de um dia, dois dias, um ano. A guerra levou um bom pedaço
de tempo, até que o Ndawe foi vencido pelo seu irmão mais novo, o Tsonga.
O Ndawe cai nas mãos do seu irmão mais novo, ajudado pela mãe. Apesar de ser
vencido pelo exército do irmão mais novo, Ndawe não foi morto, mas simplesmente
expulso do seu reino e acompanhado até ao rio Save onde foi atirado para o
Norte desse rio com a advertência de nunca mais retornar ao seu antigo reino.
Ndawe faz guerra contra senas
Tsonga fica satisfeito em dominar o antigo Império do irmão que parte do rio
Save até à fronteira com os zulus e suázis, no Sul.
Portanto, historicamente, Tsonga como venceu o irmão tem complexo de
superioridade perante este e Ndawe tem complexo de inferioridade diante do
Tsonga, até hoje. Isto é assim até hoje..
E o Ndawe morreu aí?
- Nada. O Ndawe atravessa o rio Save, empurra os sena até para o Norte da Beira
e estabelece o seu Império a partir do rio Save até quase à fronteira com o
Zimbabwe, ocupando as zonas que vão até Beira e toda a zona Sul da Beira,
estabelecendo-se em Mussapa ou Rusape. Depois de ter vencido os sena e
empurrando-os muito mais para cima da Beira, Ndawe fica assim com o complexo de
superioridade perante o sena. O sena, por seu turno, aceita o complexo de
inferioridade perante o ndau.
Estes complexos ainda hoje existem na nossa sociedade e se for a analisar com a
atenção a razão dos nossos actuais conflitos poderá confirmar algumas destas
coisas que estou a dizer.
E então, o Tsonga quando volta da expulsão de Ndawe vai até ao lugar que não
sei qual é que era o nome, mas que hoje chamamos “Ka Khambane” ou então
Mandlakazi. E ali se estabelece o “Kraal” (Khokholo, fortaleza). É um kraal
muito difícil de vencer. Nunca ninguém conseguiu conquistar esse “kraal”.
Nasceram muitos vários filhos, as gerações se sucederam, a vida foi andando até
que chega o momento em que nasce o Khambane e o Chilengue.
Eram filhos de quem?
- São filhos do príncipe Dzovo Wa Mbinguane.
Este Dzovo Wa Mbinguane vem de onde?
- É, naturalmente, família do Tsonga. Mas aqui não se sabe quem era quem, isto
é, se Dzovo era filho directo de Tsonga ou neto ou sobrinho de Tsonga. Mas
sabe-se que é um príncipe da família real Tsonga e que é pai de dois filhos com
grande história, nomeadamente o Khambane e Chilengue.
Khambane era um indivíduo muito forte e tinha saído exactamente a seu pai que
também era um homem muito forte. Quando dançasse, até os celeiros abanavam como
se viessem abaixo desmoronar, de tão forte e pesado era ele.
Khambane, o dançarino e Chilengue, o
inteligente
Contrariamente à figura do Khambane, o Chilengue era um jovem de estatura
mediana, nem alto e nem baixo, não forte mas também não muito magrinho e acima
de tudo era um jovem elegante que tinha saído à figura esguia da mãe, uma
mulher muito bela. Acima destas características, o Chilengue era um sujeito
muito inteligente, qualidades que o irmão dele, o Khambane, não tinha.
Quando houvesse festas, o Khambane dançava e toda a gente ficava muito
satisfeita com a forma como ele executava as danças, principalmente as que
simbolizavam actos guerreiros.
As raparigas quase que ficavam com os pescoços doridos de tanto procurarem
seguir todos os pormenores da dança de Khambane. De resto tratava-se da dança
executada por um dos príncipes do reino.
Todavia, apesar de satisfação geral com o desempenho de Khambane, a mãe dos
dois não estava satisfeita porque o seu querido e inteligente filho, Chilengue
nunca tinha se feito à pista de dança para mostrar as suas qualidades.
Um dia, a mãe pega no Chilengue e diz: “meu filho, tu não danças e o teu pai
está muito satisfeito com o teu irmão Khambane, mas está muito triste contigo e
mesmo o povo não está satisfeito com o facto de tu nunca dançares”.
Então, foi quando Chilengue disse: “deixa lá isso, mãe. Um dia qualquer vou
dançar”...
Chilengue inventa marimba
Nisto e a partir daquele mesmo dia, Chilengue entra no mato. Usando a
inteligência, engenho e arte, ele consegue arrumar cabaças de “massala” e
“macuacua” e fabrica timbila. Deste modo, consegue fazer marimba. Inventa uma
dança nova e uma orquestra nunca antes sonhada. Ensaia no mato, às escondidas e
não deixa que o pai e o irmão mais velho, o Khambane, se apercebam de que ele
se organiza para dançar.
Assim, no dia da festa, Chilengue informa à mãe para ir dizer ao pai que
naquele dia e, pela primeira vez, ele também iria entrar na pista para dançar.
Transmitido o recado ao Dzovo Wa Mbinguane, tudo ficou na expectativa de ver o
que seria a tal dança de Chilengue, a quem nunca ninguém tinha visto a dançar.
O pai aceitou que Chilengue dançasse mas somente depois de Khambane, cuja dança
todos já conheciam.
E a dança de Khambane era tipicamente
guerreira?
- Sim. Depois de Khambane, Chilengue foi mandado entrar em cena. Transportando
a sua orquestra de marimba, Chilengue começou a sua actuação com aquela melodia
desconhecida e pôs-se imediatamente a dançar “makhara”.
A situação alterou-se por completo, porque ao contrário da dança de Khambane,
aquela executada por Chilengue era suave e sensual, razão porque todas as
raparigas começaram a deleitarem-se com os feitos do novo dançarino que durante
longo tempo se manteve no anonimato.
Efectivamente, com o desempenho tão conseguido do irmão, Khambane, até então
ídolo do pai e das raparigas do reino, não ficou nada feliz, antes pelo
contrário, ficou muito furioso com o desempenho do seu irmão.
Assim, em conversa com o pai após a exibição das duas danças, prometeu que
havia de eliminar o irmão porque tinha afrontado a sua honra e ameaçava a
estabilidade do próprio reino.
Todavia, a mãe conseguiu captar o que estava sendo preparado na conversa entre
pai e filho.
Assim, ela decidiu alertar o filho sobre a situação, convencida de que seria
melhor ter o filho algures por aí vivo do que tê-lo em casa, mas morto.
Assim, ela pegou no Chilengue e disse-lhe assim: “Meu filho, vai para o mar que
aqui corres perigo de vida. Lá no mar irás encontrar muitas coisas. Leva
contigo estacas de mandioca para plantar onde vais, semente de amendoim e de
feijão e vai te embora para o mar.
Vale a pena eu te perder de vista, mas sabendo que estás vivo do que matarem-te
eu a ver, pois isso não vou aguentar”.
Assim, Chilengue saiu e foi se estabelecer lá no mar. Posso não estar muito
certo, mas a lenda conta que Chilengue foi se estabelecer numa zona entre o mar
e o lago Nyambavale, numa das localidades do Posto Administrativo de
Chidenguele.
Chilengue, como tivesse medo de ser morto pelo irmão mete-se naquela zona,
fixa-se e fica.
No decurso disto, ele lembra-se dos ditos da mãe que lhe tinha dito na
despedida que no mar havia peixe. Prepara uma canoa e dirige-se à água e
procura o peixe, mas não apanha nem um sequer.
Como homem inteligente que fosse, Chilengue retira o amendoim que trazia
consigo e lança-o à água. Assim, o peixe sobe à tona para vir receber o
amendoim, mas quando ele tenta apanhar com as mãos o peixe, este escorrega e
nada consegue.
Quando chega à casa e começa a pensar na melhor maneira de capturar o peixe,
decide fabricar algum armamento apropriado para isso, tendo fabricado a seta e
o arco.
Diz-se que a marimba nasce em Moçambique e depois vai para todo o mundo,
provindo de Chilengue. Pode ser que os outros povos tivessem outros diferentes
instrumentos com a mesma finalidade que a marimba. Mas, em Moçambique, a
marimba nasce com Chilengue, filho de Dzovo Wa Mbinguane, assim como a seta e o
arco.
Mesmo hoje, entre nós, os tsongas comemos peixe, mas quem come o melhor peixe
não é outro senão o Chilengue.
É daqui que nasce o problema de que no Sul, o homem mais inteligente deve ser o
Chilengue, senão mesmo em todo o Moçambique. Pode realizar alguma investigação
vai concluir que o chamado mulengue é o mais inteligente no Sul.
Mulengue provém de Chilengue, é isso?
- É Chilengue. E a pessoa é mulengue. Mas
o que é mulengue? Existe alguém chamado mulengue?
- Estou a ver que o senhor está a ficar admirado porque estou a falar de
mulengue e nem está a compreender quem é mulengue.
O mulengue é a pessoa que a gente chama hoje de “mutchopi” ou “machopi”. Aquele
não é “mutchopi” nem “machopi”. É mulengue de uma forma geral.
E muitos, mesmo entre eles há velhos que sabem que eles são mulengue, mas a
maioria de nós todos chama-lhes de “vatchopi” ou “mutchopi”.
Eles são “valengue”, no plural, descendentes de Chilengue.
E então, vamos ver donde vem o nome de “mutchopi”, que como disse não é nome
daquele grupo étnico.
Mas antes de chegar aí, eu gostaria que
situasse melhor isso tudo para se poder perceber bem o que é isso de grupo
tsonga, ou seja, quem é realmente tsonga?
- O grupo tsonga, tem aqui muitos grupinhos.
Portanto, estamos a ver o grupo tsonga a
partir da sua sede no “kraal” de Mandlakazi, isto é, a partir do “kraal”
principal?
- Mandlakazi era o “kraal” principal, a sede. Temos os Vatswa, são tsonga\;
temos os Valengue, são tsonga\; temos Vahlengwè, são tsonga\; temos Vakhambani,
são tsonga\; temos Vabulandlela que estão entre Chimonzo, Magule até Mapai,
passando por Chókwè e Guijá, são todos eles tsonga\; depois temos Vakhosa que
são de Magude, Varonga e temos também aquela mistura de Bitsonga todos estes
são tsonga.
Acerca dos “bitsonga” dizer que os árabes quando faziam o seu comércio iam até
à baía de Inhambane onde realizavam preferencialmente o seu negócio.
Normalmente, vinham aqui com Maswahil, gente de Tanzânia e tudo mais.
Esses homens quando vieram intercalaram com a mulher mulengue e mutsua e
nasceram assim “bitonga” ou “bitsonga”. E esta palavra quer bitonga ou bitsonga
não é nossa palavra é uma palavra de origem europeia pois, como o senhor sabe
“bi” significa duas coisas. E assim com os cruzamentos de raças que deram
origem às populações que passaram a viver aquela região da província de
Inhambane passaram a ser conhecidas por “bitsonga” ou “bitonga”, como queira.
E eles também fazem parte do grupo tsonga.
Agora donde é que vem Ngungunhane?
- Ngungunhane, eu já disse aqui de que Sochangane era um zulu que foge de
Zululândia para o norte de Transvaal e estabelece-se aí.
Então, Ngungunhane, nunca foi tsonga, ele foi sempre nguni. Tanto é que quando
Ngungunhana entra já insistia que se falasse nguni. O meu avô falou nguni, por
insistência de Ngungunhane.
Então, Ngungunhane entrou, mas não
nasceu em Moçambique?
- Exactamente. Ele entrou, mas não nasceu em Moçambique. A ele podemos chamá-lo
de conquistador. Porque ele próprio sabe que tudo isto até Rusape, até Beira, é
gente dele. São ngunis dele.
Porquê são filhos de Sochangane?
- Sochangane provém do grupo nguni. E Ngungunhane, como príncipe começou a
seguir o rasto por onde passou a sua gente anteriormente para efeitos de
reconquistar o poder. Portanto, ele não é tsonga.
Ngungunhane vem aqui com o fim de
reconquistar?
- Sim. Vem reconquistar gente dele que dele fugiu de Zululândia, particularmente
do Ungoni.
Agora, deixou uma coisa atrás. Venda, o
terceiro filho de Sochangane o que foi feito dele?
- O terceiro filho de Sochangane não chegou de sair da África do Sul. Os dois
primeiros é que saíram, mas o último não.
Venda ficou lá no Northen Transvaal. E estas três línguas, aquilo que a gente
chama chindau, hoje, que parte do Ndawe, devia ser chindawe, chitsonga e
chivenda são três línguas muito similares.
Muito embora não entendemos muito bem quando as pessoas duma ou de outra língua
falam, mas há-de encontrar nelas muita coisa que faz com que as três sejam
semelhantes.
É como juntar estes três grupos étnicos com o grupo zulu se não temos em cada
uma das línguas 40 por cento de palavras semelhantes a cifra chega a subir para
50 por cento.
O senhor disse há pouco tempo que não há
changanas. O que é isso?
- Não há “changanas” porque o changanismo pertence a três grupos étnicos. Se eu
disser que sou changana, o ndau também é changana, assim como o venda. E isto é
assim: changana-ndau, changana-tsonga e changana-venda. Somos três grupos de
changanes.
Se eu chamo a alguém de changane estou geralmente errado. Porque se pretendo
dizer que alguém é changane, devo especificar de que tipo de changane me estou
a referir. Se falo do changane ndau, do changane tsonga ou do changane venda.
Por isso, muita gente tem estado a cair em erro diariamente ao se considerar
changane ou ao considerar aos outros de changane, porque o changane cobre
exactamente estes três grupos étnicos.
Agora, onde é que terminam os nguni lá
em cima?
- Os ngunis vão até Angónia, na província de Tete e também no Sul da Tanzânia.
Mas esses ngunis devem ter saído antes dos grupos tsonga e ndau. São
anteriores, julgo eu, a grupos tsonga e ndau porque se fosse depois dos tsonga
e ndau os tsongas e ndaus deviam ter desaparecido. Agora, voltando u
pouco atrás, porquê que o “mulengue” se chama “mutchopi”?
- Quando Ngungunhane está a vir, ameaça e se estabelece em Chibuto. Ameaça
dizendo que o reino Khambane, estabelecido em Mandlakazi não é nada, é força
duma simples mulher passível de ser facilmente desintegrado e conquistado.
Chilengue comanda tropas de Mandlakazi
contra Ngungunhane Perant
esta situação, Khambane manda chamar o seu irmão Chilengue lá na zona do Lago
Nhambavale onde foi se fixar. Só que Chilengue se recusou a atender o
chamamento e Khambane, devido aos problemas que os dois tinham entre si.
Khambane insistiu dizendo o seguinte a Chilengue: “Mesmo que recuses a
ajudar-me se eu for vencido, tu também o serás porque depois de mim vão te
atacar a ti”.
Perante tanta insistência do irmão, Chilengue aceitou ir ajudar Khambane mas na
condição de ele, Chilengue, ficar comandante supremo das forças dos dois
exércitos.
Relutantemente, Khambane cedeu mas ainda impôs a condição de querer estar perto
do irmão para ver como é que ele iria comandar as forças, imposição que foi
aceite por Chilengue.
Uma das primeiras ordens que Chilengue deu a Khambane foi de que ordenasse às
suas tropas para se desfazerem das suas armas. E depois disso Chilengue começou
a treinar os homens que integravam os dois exércitos de ambos os irmãos,
manejando como armas o arco e a flecha.
Cada soldado munia-se de um arco e 20 flechas nas costas.
Quando soou o primeiro dia de combate, Chilengue não obedeceu aos métodos clássicos
em que as duas forças se defrontavam corpo a corpo e ganhava quem tivesse
homens mais fortes e bem treinados. Quando as duas forças se encontraram ele,
assim que viu que a tropa inimiga se encontrava a 20 metros de distância,
ordenou aos seus homens que começassem a alvejá-los com as flechas apontando
todos eles na barriga dos soldados inimigos, dizendo: Di thumbo!.
Assim, os ngunis, antes que se apercebessem do que se estava a passar começaram
a perder muitos homens que cada vez que eram acertados na barriga caiam por
terra e muitos nunca mais se levantavam.
Então, mandaram um mensageiro comunicar a Ngungunhane que os homens estavam a
morrer e a pedir instruções.
Quando a ordem veio indicava que cada soldado de Ngungunhane devia proteger a
barriga com o escudo, ao mesmo tempo que fossem avançando ao encontro das
tropas de Chilengue e Khambane.
Chilengue, vendo que todos protegiam a barriga com os escudos de protecção,
ordenou aos seus homens para apontarem na cabeça, muito antes de o segundo
grupo se aproximar a mais de vinte metros de distância.
Perante o pânico que se estabeleceu com o crescendo das baixas nas tropas de
Ngungunhane, a ordem que veio do comando foi de que antes que todos fossem
dizimados, recuassem para a base.
Quando estavam a recuar Chilengue ordenou ainda que fossem alvejados nas costas
e assim ganhou o combate.
Então, os nguni depois daquele combate inédito em que foram batidos de forma
humilhante decidiram chamar a acção das tropas de Chilengue como sendo “Va si
Tchopile”, ou seja fomos alvejados, nascendo exactamente daqui o nome de
“Vatchopi” aos Valengue.
O nome de Vatchopi provém deste episódio
de guerra?
- Exactamente. O nome deles não é este. Eles são Valengue.
Salomão Moyana
SAVANA – 27.10.2000
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