Por Marcelo Mosse TEMA DA SEMANA Savana 26-09-2014
Guebuza usou binóculos para apreciar os novos barcos da Marinha. Uma herança pesada.
Num momento em que a
violência eleitoral aumenta,
Armando Guebuza
assiste mudo e quedo,
como quem aprova. E senta-se em
palanques alcatifados para apreciar
o aparato militar em que ele investiu
nos últimos três anos, uma opção duvidosa sob o ponto de vista
do interesse nacional. O actual PR
vai deixar uma herança pesada para
o próximo Governo: uma militarização
onerosa num contexto de
crescente endividamento externo,
e em face de uma perspectiva ainda
ao devidamente assente de que
o boom dos recursos naturais vai, a
breve trecho, reduzir a dependência.
Em plena campanha eleitoral e
após o ressurgimento em peso do lí-
der da Renamo, Afonso Dhlakama,
o Governo de Armando Guebuza
decidiu marcar as celebrações dos
50 anos do 25 de Setembro (data
do desencadeamento da luta armada)
com um exercício militar naval e
um show da Força Aérea. Foi Guebuza
no seu melhor, reeditando as
antigas paradas militares que, em finais de 70 e princípios de 80, faziam
parte do roteiro das festividades do
25 de Setembro.
Com o fim da guerra civil e a construção
da democracia, esse tipo de
exibição pública de arsenal bélico,
herdado de regimes comunistas,
tinha passado de moda. Nos últimos
anos, com o país sob a batuta
de Joaquim Chissano, o 25 de Setembro
não era para demonstrações
de prontidão militar. Bastava uma
coroa no Monumento aos Heróis
e os habituais banquetes de Estado
no Palácio da Ponta Vermelha.
Mas, depois que em 2011 Guebuza
decidiu-se por uma escalada de
militarização, a tentação de exibição
do poder castrense ganhou terreno.
No ano passado, o 25 de Setembro
viu um MIG rasgando os céus de
Maputo. Este ano, a coisa agudizou.
Como se trata do seu último 25 de
Setembro como PR, decidiu mostrar
a herança bélica que deixa.
Show de marinha na baía
Nesta quarta-feira, a marginal de
Maputo, na baixa da cidade, assistiu
a um dos momentos mais altos
das celebrações: demonstração de
várias embarcações da Marinha de
Guerra e dos famigerados barcos da
Ematum. A mostra correspondeu
à simulação de um caso de ataque
pirata. Oficiais da marinha moçambicana,
devidamente equipada, manipulando
as novas embarcações,
encetaram uma perseguição ao barco
pirata.
A encenação foi perfeita e Guebuza
bateu palmas. Representantes da
firma francesa (o estaleiro da CMN
de Cherbourg) que fez este “excelente”
negócio da Ematum (850
milhões de USD, que sobrou para
os moçambicanos como dívida a ser
paga com juros comerciais) também
saíram embevecidos. A operação
Ematum é um daqueles negócios
públicos celebrados na calada e em
condições comerciais que remetem
para a ideia de que nem sempre o
interesse do Estado pesou.
Seja como for, Guebuza recebeu todos
os detalhes de funcionamento
de uma operação anti-pirata numa
cabine dentro do Comando da
Marinha de Guerra. Os barcos da
Ematum também desfilaram. Mas,
para além da habitual corte oficial
e de militares de todos os ramos, o
público não parecia encantando. A
maioria dos civis eram mirones de
circunstância e os utentes da travessia
para a Catembe, que esteve
interrompida quase toda a tarde.
Muitos não gostaram.
Na quinta-feira, foi a vez do show
aéreo. O SAVANA fechou a edição
sem testemunhar esse momento,
marcado para o Estádio do Zimpeto.
O programa prometia pompa. O
plano envolvia uma exibição áerea
das novas coqueluches da aviação
militar nacional. Como, no novo
equipamento, há dos aviões “Festival”,
daqueles que deixam rastos de
colorido pela cauda, advinha-se que
houve festa. Nos últimos meses, a
Força Aérea beneficiou de reequipamento
com MIGs recondicionados,
importados da Roménia, sendo
provável que esses motores também
tenham sido postos a voar, como
aconteceu no passado 3 de Fevereiro,
aquando das comemorações do
Dia dos Heróis.
Os contornos do reequipamento
militar
Nos últimos três anos, Guebuza
iniciou um plano de reabilitação
do aparato das Forças Armadas,
que se consubstanciou num aumento
substancial da fatia orçamental
dedicada ao exército. A vaga de
militarização foi, nos últimos dois
anos, confirmada por vários indicadores,
nomeadamente a opção
militar forçada contra a Renamo, a
emergência, no discurso do poder, e
na prática, da designação “Forças de
Defesa e Segurança” composta por
elementos policiais (FIR, guarda
fronteira) e da FADM, um figurino
que nem consta na Constituição da
República, a criação de um Instituto
Superior de Estudos de Defesa
e Segurança, elementos de desfiles
militares (incluindo um avião de
guerra nas comemorações do 25
de Setembro de 2013) bem como a
uniformização de jovens, meninas e
rapazes, em cerimónias oficiais.
O aumento drástico, nos últimos
três anos, da parte orçamental para
a defesa, da Polícia e dos Serviços
de Segurança não esconde essa
crescente militarização do Estado.
Em 2014, as Forças Armadas de
Defesa de Moçambique (FADM)
tiveram um incremento orçamental
de 17.8%. E no ano passado, quando
a tensão militar com a Renamo
estava ao rubro, o Governo começou a fazer encomendas de aviões
de guerra. Mas também beneficiou
da chamada “cooperação militar”.
No início deste ano, foi anunciado
que a Presidente do Brasil, Dilma
Roussef, aprovou uma doação
a Moçambique de três aparelhos
EMB-312 Tucanos, descontinuados
pela Força Aérea do Brasil. Dilma
também prometeu financiar a
aquisição de três Super Tucanos, foi
na altura alegado pela contraparte
brasileira, “aumentar as capacidades
operacionais e de combate das forças armadas moçambicanas”.
Este anúncio, recorde-se, foi feito
após a visita de Celso Amorim,
Ministro brasileiro da Defesa, em
Março deste ano, que fez um tour
a Moçambique, Angola e África do
Sul, numa operação não apenas de
cooperação, mas também de marketing
da tecnologia militar brasileira.
Dessa operação de marketing ressaltou
o interesse de Moçambique,
expresso pelo Ministro da Defesa,
Agostinho Mondlane, em adquirir
mais equipamento militar aéreo
brasileiro. Depois de asseverar que
a doação de Dilma teria de receber
uma aprovação da Assembleia da
República, Mondlane manifestou
o interesse de Moçambique adquirir
três EMB-314 Super-Tucano
(para treino avançado) e uma aeronave
leve, de ataque. O Super Tucano
é um aparelho a turbo-hélice
desenhado para ataques ligeiros,
combate de insurgentes, apoio e
reconhecimento aéreo em ambientes
de ameaça leve e também treinamento
de pilotos, e pode operar
em ambiente de alta temperatura e
extremas condições de humidade,
estando habilitado para aterrar em
terrenos convencionalmente inapropriada.
Os EMB-314 Super Tucano são,
por sinal, mais onerosos que os
EMB-312 Tucano e, por isso talvez,
Mondlane tenha tido o cuidado de
afirmar, na altura, que essa aquisi-
ção adicional poderia ter lugar no
quadro de uma operação de financiamento
brasileiro de médio ou
longo prazos. O cuidado tinha uma
razão de ser: o impacto que causou
a operação Ematum nas relações
entre o Governo e os G19, grupo
de doadores que apoia o Orçamento
Geral do Estado. Também a referencia
à aprovação parlamentar se
enquadrava nessa tentativa de mostrar
que o Governo se subordina à
Assembleia da República quando
se trata de decisões com impacto
orçamental significativo – embora
no caso vertente tratava-se de aparelhos
oferecidos.
A cooperação militar com o Brasil
também envolve o âmbito naval.
O Brasil prometeu oferecer a Mo-
çambique um simulador de treino
para a nossa Marinha de Guerra
e já enviou missões para avaliação
das condições concretas para redimensionamento das bases navais de
Maputo e Pemba.
Quanto à Força Aérea, em Setembro
do ano passado, o Governo
recebeu, em segunda mão, um Hawker
850 XP Business Jet, construído
em 2005. E em Novembro
foram adquiridos dois antonovs
An-26Bs, oito MiG-21, seis MIG
21 Bis e dois MIG 21 UM para instrução,
ao mesmo tempo que uma
aeronave L-39 e duas denominadas
“Festival”.
São estes motores que estiveram
programados para um desfile acrobático
ontem nos céus do Zimpeto.
A operação de reequipamento das
forças armadas começou a ganhar
mais fôlego no segundo semestre de
2012, altura em que Moçambique
começou a encaixar as primeiras
receitas decorrentes de taxação sobre
mais-valias geradas na venda de
activos entre os principais actores
do sector extractivo no país. Nessa
altura, para lá de um incremento de
mancebos e aquisição de armamento
e viatura militares, num contexto
de crescente hostilidade entre o
Governo e a Renamo, o executivo
manifestou o interesse de adquirir
à Rússia dois helicópteros da marca
Kazan Ansat-U e quatro Mi-17. A
opção de compra destes aparelhos
à Rússia ganhou corpo após um
acordo entre Moscovo e a firma
sul-africana, Denel Aviation, com
o objectivo de garantir operações de
manutenção.
Na altura, o Ministro russo da Indústria
e Comércio, Denis Manturov,
que esteve em Maputo, disse
que Moçambique era um “mercado
emergente” e que havia boas perspectivas
de Moscovo fechar acordos
de venda de material bélico a Maputo.
“Maputo quer os nossos helicópteros...
quer um grande número
deles, embora as suas possibilidades
sejam limitadas”, dizia Manturov
à agencia Inter-Tass. O Ansat-U é
uma máquina leve desenhada para
treinamento de pilotos, com uma
capacidade de carga de uma tonelada
e 10 passageiros. É fabricado
pela Kazan Helicópteros, uma
subsidiária da Rússia Helicópteros.
O Mi-17 é uma máquina de propósitos
múltiplos, incluindo assalto,
podendo carregar 36 homens.
O crescente reequipamento do
exército foi decidido pelo Governo
em 2011, no início do segundo
mandado de Guebuza. Um documento
na posse do SAVANA, intitulado
Balanço Militar, datado desse
ano, mostrava uma Força Aérea
completamente careca em termos
de equipamento e sem nenhum
aparelho de combate (tinha apenas
algum equipamento de transporte,
nomeadamente dois Antonovs
AN-26, dois CASA 212 e um Cessna
181, para além de alguns Zlin
Z-326, para treino). O pontapé de
partida para a modernização aconteceu
mesmo em 2011, quando
Portugal, no âmbito da chamada
Cooperação Técnico-Militar, ofereceu
dois FTB-337G Milirole, para
formação.
Mais recentemente, outra cooperação
técnica-militar foi assinada
com a Itália, aquando da vinda a
Moçambique do navio italiano de
patrulha Borsini, que esteve cá a
formar quadros locais durante dois
meses.
Herança pesada para o futuro
governo
Alguma cooperação militar com
Moçambique, incluindo a que mantém
com África do Sul, enquadra-se
em esforços conjuntos de combate
à pirataria, mas nos últimos dois
anos o incremento da aquisição de
equipamento teve como mote um
desejo férreo do Governo de resolver
as hostilidades com a Renamo
por via militar, uma opção que redundou
num autêntico fracasso. A
Renamo, com uma guerrilha debilitada,
conseguiu forçar uma solução
negociada, que abriu portas à presente
campanha eleitoral. Armando
Guebuza vai deixar uma herança de
militarismo ao futuro Presidente,
mas muitos analistas ouvidos pelo
SAVANA crêem que o Governo
anda a gastar rios de dinheiro
com equipamento militar quando
Moçambique não tem ameaças de
agressão externa (fora a pirataria no
Índico).
Quanto à Ematum, este continua
ainda um assunto de extrema controvérsia.
Os detalhes do negócio,
que causou uma enorme fenda nas
relações entre o Governo e os doadores,
são sobejamente conhecidos
e o dossier continua ainda num espaço
central da mesa do diálogo político
entre as duas partes (a reunião
mais recente teve lugar há cerca de
um mês sem a habitual publicidade).
O investimento do Governo no
aparato militar não tem sido tema
de discussão na presente campanha
eleitoral – em que discursos populistas
e uma crescente onda de violência
tomaram o lugar da discussão
de políticas. Qualquer que for a
cor do Governo que iniciar funções
entre Janeiro e Fevereiro de 2015,
uma coisa é certa: como reverter o
actual peso orçamental do investimento
em equipamento militar, um
investimento que está a aumentar a
dívida externa (através da venda de
dívida no mercado externo de capitais,
como no caso da Ematum, e
créditos comerciais).
Observadores em Maputo enquadram
as demonstrações militares
do 25 de Setembro numa exibição
de musculatura bélica, um exercício de reafirmação do poderio do
exército, numa altura em que alguma
“inteligência” prevê que a rota
final das eleições em Moçambique
seja marcada por alguma violência.
Um alerta da Embaixada americana
em Maputo, publicado esta
semana, apelando os seus cidadãos
para eventuais perigos de violência
em Moçambique no quadro das
eleições é a nota mais saliente. E
soa muito ensurdecedor o silêncio
de Guebuza perante os ataques de
membros da Frelimo a políticos da
oposição.
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