CRÓNICA
RICARDO GARCIA
05/04/2015 - 07:50
- Ah! Alface com terra! – gritou minha mulher, e eu já fui me preparando para a reprimenda. Não me lembrava de ter feito nada de errado. Tinha cumprido com as instruções dadas, seguira fielmente a lista de compras, não faltava nada, nem havia nada a mais – duas situações passíveis de descompostura conjugal.
- Alface com terra! Com terra! Com terra! – clamava ela, no entanto, e a cada repetição eu sentia-me mais culpado, embora sem saber de quê. Temendo o pior, apresentei-me na cozinha, resignado e cabisbaixo. E só então notei-lhe um sorriso franco, de orelha a orelha.
- Esta alface vem com terra, que maravilha! Olha só, terra de verdade! – disse-me ela, empunhando a verdura pelas folhas, de modo expor-lhe as raízes.
Era uma reacção clínica de oito meses sem vir a Portugal, fruto de um exílio em solo britânico, onde o clima é pouco consentâneo com a variedade alimentar. Há uns anos, a BBC perguntou a alguns especialistas qual seria o verdadeiro vegetal nacional. A resposta andou entre as ervilhas, os aspargos, a couve-flor, o repolho, as batatas e, numa surpreendente capitulação transfronteiriça, os alhos franceses e as couves de Bruxelas.
Mimado pela abundância, porém, o cidadão contemporâneo não se contenta com meia dúzia de opções locais. E eis que nas prateleiras dos supermercados– ali como em grande parte do auto-intitulado mundo desenvolvido – habite uma profusão organizada de alimentos multicoloridos, produzidos em terras distantes mas aparentemente sem contacto com terra nenhuma, dada a sua total neutralidade organoléptica. A beringela sabe a tomate, o tomate sabe a pimento, o pimento sabe a cogumelo, o cogumelo sabe a espinafre, o espinafre sabe a alface, e a alface não sabe a nada.
Na sua dupla missão de matar a fome do mundo e encher os bolsos de uns tantos, a agricultura em grande escala vive deste paradoxo: chega facilmente a todo o lado mas tem alguma dificuldade em impressionar o palato. A produção industrializada de alimentos atingiu tamanho grau de irrelevância gustativa que três rodelas de tomate das estufas espanholas de Almería são capazes de anular a dupla azeite-vinagre numa salada, absorvendo-a num insípido buraco negro.
Para a sustentabilidade do planeta, as exportações são uma faca de dois gumes. Reforçam o pilar económico, mas chocam com o pilar ambiental, por causa do transporte. Se o objectivo é proteger o planeta, o melhor é dar preferência aos produtos locais.
Mas a auto-suficiência alimentar é uma miragem, com grande presença nodiscurso político e pouca na realidade. E os salários baixos, os adubos sintéticos, os pesticidas e a exploração do homem pelo homem – enfim, a competitividade – encurtaram irresistivelmente as distâncias entre as deslavadas bananas do Equador e o variado apetite dos europeus, para citar apenas um par alimento-boca.
Aluno bem aplicado, Portugal também tem feito por levar os seus produtos para longe. E o sector agro-alimentar nacional está estrategicamente a apostar na imagem dos “produtos frescos” do país.
Se me permitem, deixo aqui uma sugestão alternativa: a marca “produtos com gosto”, que é algo que cá não falta. No deserto de sabores que anda por aí, um tomate que sabe a tomate é um bem precioso, que merece um preço mais elevado. É uma ironia do sistema mercantil, pois está-se a cobrar mais por algo que simplesmente é o que deveria ser.
Que seja. Se apostarmos na internacionalização da alface com terra, ainda ficamos ricos.
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