domingo, 5 de abril de 2015

Eu quero a minha bolacha eu!


 · Basileia · 

Há muita coisa que a gente pode aprender de crianças. Não das bem comportadas. Das mal comportadas. Imaginem a seguinte situação: mãe e filho numa loja. O filho vê bolachas e diz à mãe que quer bolacha; a mãe diz que não, compraram bolachas da última vez que estiveram na loja, desta vez não. O filho insiste que quer bolacha; a mãe diz que vão almoçar daqui a pouco, não faz sentido. O filho grita que quer bolacha; a mãe diz que não pode comprar as bolachas porque não são saudáveis, o filho já consome muitos doces. O filho começa a gritar que quer bolacha; a mãe diz que se ele grita aí é que não vai comprar mesmo. O filho repete em voz suave que quer bolacha; a mãe diz que já disse que não ia comprar. A situação escala. O filho grita que quer bolacha, deita-se no chão, chora e toda a loja a assistir ao espectáculo gratuito. A mãe começa a ameaçar o filho: levanta-te e para já de chorar! O miúdo continua, desta vez com soluços entrecortados por “eu quero a minha bolacha eu”. A mãe ameaça: não te levo mais comigo às compras, nem te vou levar aos sorvetes no domingo. O filho continua a chorar e a exigir a sua bolacha.
Esta é uma demonstração de determinação. O único desfecho possível aqui é: quem verga primeiro? Na verdade, é o único desfecho possível de três que a mãe tem: (i) deixar que a situação escale (deixar o miúdo contorcer-se lá no chão e só garantir que se não magoe); (ii) ceder exigindo uma contrapartida (tipo, quando chegarmos a casa quero que faças o teu TPC); (iii) ceder mostrando claramente ao filho que é contra a sua própria vontade. Naturalmente que há sempre uma história por detrás de qualquer relação entre mãe e filho (ou pai e filho) e essa história pode ser determinante para o desfecho desta demonstração de força. Dum modo geral, contudo, eu aconselharia a todo o pai ou mãe o primeiro desfecho. Não é por crueldade contra menores. É porque a situação é desigual dum modo que o bom senso sempre perde. Os trunfos todos estão do lado do filho. O primeiro trunfo é que ele não precisa de argumentar. Na verdade, se fosse possível entrar na cabecinha dele seria possível ver, por exemplo, que ele até percebe que está a ser irrazoável, que a mãe tem razão quando fala do perigo de cáries ou gordura a mais, que pode não ser oportuno desta vez que lhe seja feita a vontade. Ele sabe isso tudo. Mas quer a bolacha. E a razão porque ele quer a bolacha é porque quer a bolacha. Aquela bolacha é dele, aliás, ficou dele a partir do momento em que a mãe se interpôs. Eu quero a minha bolacha eu!
O segundo trunfo é que é criança e sempre vai atrair as simpatias dos circundantes. O empregado da loja vai sorrir de forma condescendente e mostrar compreensão. Isso não vai escapar aos olhos da criança. Haverá um ou outro cliente na loja que vai começar a comentar o caso, estilo “porque é que não pode dar ao miúdo o que ele quer?”; outros vão falar de mães que tratam tão mal os seus filhos; vão olhar para a roupa que ela traz e o seu saco de compras e vão dizer que aquilo é só avareza mesmo, o que é que custa comprar um pacote de bolachas. Até pode ser que esteja um encarregado de educação dum colega do filho que vai comentar em voz alta que o miúdo é bem comportado, tem boas notas, etc. O papel de mau da fita está garantido à mãe, faça o que ela fizer, desde o momento que não consista em satisfazer o desejo do filho. O miúdo fecha-se a todos os argumentos da mãe porque os seus ouvidos e olhos só estão sintonizados aos comprimentos de onda que vêm deste outro lado. E cada um destes apoios é sinal para ele persistir, fincar o pé e ficar bem convencido de que a sua causa é justa, tão justa que em nome dela tudo pode ser sacrificado. Depois de mim o dilúvio, diz ele a si próprio, mas a minha bolacha é que eu vou ter, ah, isso sim. Pior ainda quando aparecerem aqueles que vão dizer que os dois estão a proporcionar um espectáculo triste aos clientes, aí o filho vai dizer a si próprio “ah, afinal a mãe também está a ser culpada, prontos, eu tenho razão”.
A analogia é longa, mas o leitor mais atento já deve ter visto onde quero chegar. E vou dizer as coisas da forma mais clara e dramática possível. Calton Cadeado, um analista político moçambicano, é citado por muitos como tendo dito uma vez o seguinte: “não se negoceia com o mesmo bandido duas vezes”. Quando o governo moçambicano assinou o acordo de cessação de hostilidades militares com a Renamo muita gente castigou psicologicamente o autor dessa pérola do Índico. Lembro-me de participar numa discussão em que o defendia com recurso a dois argumentos. O primeiro era de que como ele não era o governo o facto de o governo ter negociado duas vezes com o mesmo bandido não punha em causa o que ele tinha dito; o segundo argumento era de que tínhamos que esperar para ver se ele tinha razão ou não ao alertar contra isso. Quem for honesto, intelectualmente, claro, vai ter que reconhecer que ele tinha razão. Algumas pessoas vão querer perder tempo com uma discussão sobre o termo “bandido”. Não creio que a referência seja ao termo “bandido armado” do tempo da guerra de desestabilização, nem acho que seja uma designação pejorativa da Renamo. O termo pode ser entendido como a descrição da figura geral de quem se colocou à margem da lei. Só isso. E para efeitos retóricos quem se sente incomodado com esse termo pode emprega-lo para designar o governo.
Calton Cadeado tinha razão porque essa feliz expressão tem o mérito de reconhecer a estrutura do conflito moçambicano. Estamos perante uma demonstração de determinação. Alguém quer a sua bolacha aqui. Nenhum argumento vai dissuadi-lo a mudar de ideias. Ou tem a bolacha, ou não vai dar paz a ninguém. Nós como sociedade temos que fazer uma escolha semelhante à da mãe: vergarmos ou não. Pessoalmente, sou pela segunda opção: não vergar. Já durante as famosas “hostilidades militares” defendi aqui no Facebook que o governo não devia negociar com a Renamo, que devia, isso sim, proteger o povo (alguém interpretou isto como opção pela guerra quando o que eu escrevi foi que o governo devia proteger o povo). Ninguém me deu ouvidos, claro, nem esperava que o fizessem. Quando chegou a vez de assinar a lei da amnistia voltei a dizer que os deputados deviam chumbar essa proposta para o bem da paz. E mais uma vez ninguém me ligou (idem). Hoje há homens armados a rumar aí pelas planícies de Gaza a “comprar” cabeças de gado bovino por 100 Meticais (segundo o que conta Lázaro Mabunda no seu mural) e não faltam aqueles que festejam o grande estratega militar que é o dono da bolacha.
O que torna difícil uma reflexão ponderada das opções é que há muitos mitos em torno do assunto e, pior, o governo, ao ceder pela primeira vez enfraqueceu a sua posição (o maior auto-enfraquecimento de todos foi a assinatura do acordo com pompa e circunstância). O principal mito é o do poderio militar da Renamo. Esta é uma das maiores mentiras nacionais. A única vantagem que os homens armados levam sobre o exército nacional é estratégica: dificilmente podem ser derrotados. Dito doutro modo, enquanto tiverem 5 homens a espalharem terror pelas matas (ou pelas cidades) eles sempre podem dizer que estão aí. Neste sentido, uma estratégia militar que consista em querer derrotar militarmente um grupo armado (por muito pequeno que seja) está votada ao fracasso e devia sair da cabeça dos nossos militares. O nosso exército não tem capacidade para ganhar esse tipo de confrontação, e isso nem importa. O único que deve fazer é conter o inimigo onde for possível, um pouco ao estilo do que fez com sucesso no ano passado. O dono das bolachas reconheceu isso e se hoje se mostra confiante é porque as concessões do governo, os banhos de multidão e os títulos de figura do ano toldaram a sua mente. O acordo do ano passado salvou a sua reputação militar. Enquanto, portanto, persistir o mito do poderio militar da Renamo nunca, provavelmente, haverá solução para os nossos problemas.
Uma solução militar não é, claro, o único meio. E repito: solução militar não no sentido de procurar uma derrota militar dos homens armados, mas sim de os conter. O governo tem outros meios de pressão que há muito devia ter começado a usar, mas de forma pensada e planeada. Podia começar por dizer claramente que ninguém está acima da lei, que declarações que atentem contra o espírito e a letra da constituição terão consequências jurídicas. Podia também fazer depender o reconhecimento do estatuto de partido político da observância deste código de conduta sob pena de, nos termos da lei, ter de fazer diligências que conduzam ao levantamento desse estatuto, incluindo a suspensão do estatuto de deputados (que eles de resto não queriam). Mesmo um estado de emergência deve fazer parte do catálogo de acção do governo. Não pensar nisto é uma forma de se tornar vulnerável à chantagem de quem não esgrime argumentos, mas insiste apenas na sua bolacha. Não há glória num compromisso teórico com a paz quando essa paz não implica necessariamente uma melhor base de convivência. Eu não confio num Messias que não tem nenhum problema em dividir o País, que se coloca acima da lei, que ameaça publicamente mandar amarrar alguém e infligir castigos físicos, que diz que só aceita o processo democrático que é a seu favor.
Só que lá está: tem muita gente na loja. E com muita simpatia por quem só quer a sua bolacha. Em troca de fazerem as suas compras em paz estão preparadas a ceder. Essas pessoas, sobretudo os que se consideram neutros “eu só quero paz eu”, é que comprometem mais a paz na Pérola do Índico. Eu sou por um fim com horror (que não vai acontecer porque estamos a lidar com “bluff”) do que um horror sem fim.
  • Filipe Ribas Já li. Tudo, até o texto Elisio Macamo.
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  • Hermes Sueia Os neutros comprometendo a PAZ........e ainda existe muito boa gente a pensar que é no meio onde está a virtude.........É felizardo quem ainda se pode dar ao luxo de reivindicar uma bolacha.
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  • Alexandre Devissone Grande texto, e esta criança que estraga tudo por causa de bolacha pode revelar alguns mimos e a mão que os pais passam na cabeça e chamam-no de paizinho.O importante é não ceder ao pedido da bolacha mesmo que ameace se atirar no chão, pork da próxima vai chorar dizer que quer dormir do meio entre o papá e a mamã.
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  • Américo Matavele "Não há glória num compromisso teórico com a paz". As pessoas, os tais "curiosos" na loja, tem muita retórica pro paz, mas as suas acções vão ao encontro do que não contribui em nada para a paz. Tenho sempre dito que a marcialidade das mentes é o esteio para a marcialidade de um país. Não vou ser tão radical como um amigo italiano que disse que olhando-se no trânsito de um país pode se ter uma ideia do tipo de pensamento dos seus cidadãos, se pacífico ou marcial. Assim, o conteúdo ofensivo dos pronunciamentos dos sujeitos e os aplausos aos pronunciamentos marciais e de horrores, faz dos cidadãos os condutores do seu próprio carro funerário. Os nossos analistas, principalmente os "independentes", não tem capacidade de fazer duas linhas sem adjectivar negativamente quem quer que seja, e mais tarde, lá no fim, eles se porem no bico dos pés a reclamar o protagonismo pela promoção da paz. Pergunto: que paz é essa que tem inimigos? Afinal paz não é a transformação dos inimigos (ou adversários) em amigos? E essa linguagem ofensiva que se usa, esses adjectivos diminutivos, essa banalização das ideias construtoras do outro sem argumentos sólidos mas somente com adjectivação vem donde? Tenho comigo que primeiro temos que eliminar as palavras ofensivas, o aliar-se com palavras ofensivas pronunciadas por quem quer que seja para podermos nos impor como veículos da paz. Não há nenhum veículo da paz com capacidade para diminuir o outro, não importa os seus "pecados" assumidos ou presumidos. Antes de termos essa capacidade de esvaziarmos os rancores pessoais projectados para os "outros", nunca teremos capacidade de construir paz nenhuma.
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  • Andre Mahanzule Kanimambo Docodela Macamo.
  • Lindo A. Mondlane "pegar o touro pelos chifres" tipica expressao castelhana, telvez o governo deveria actuar e quanto antes e solucionar este problema duma vez para sempre, o estado nao deveria estar pendente e a merce dos caprichos de um individuo..
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