Canal de Opinião por Matias Guente
O que me impressiona em Moçambique não é capacidade do partido Frelimo em fazer mal às pessoas. Endenta-se aqui o mal como um circunscrito acto de torturar e até assassinar, que é a subdivisão máxima da maldade e o muro mais alto da estupidez humana. Não me impressiona e já nem assusta o facto de eu saber que a Frelimo assassina pessoas e depois envia condolências às famílias enlutadas. Não é isso que me impressiona. Nem tão pouco me causa mossa o facto de eu saber que a qualquer altura também posso ser vítima de uma encomenda de morte, com retoques disfarçantes do tipo atropelamento, bala perdida ou mesmo acidente de viação. Estas possibilidades não me assustam. Não me assusta a ideia de saber que estamos numa coutada em que o pensamento próprio paga-se com a vida própria. Isso também não me assusta. Tal como não me causa o mínimo desconforto o facto de eu saber que o que eles querem é que todos pensemos segundo a estupidificante lógica de rebanho, em que a directiva máxima é reproduzir e seguir. Tudo isso não me assusta.
Provavelmente o estimado leitor já esteja com os nervos à flor da pele perguntando a si mesmo: “Mas, afinal, qual é o acto susceptível de causar um valente susto a este fulano?”.
Pois então lhe digo e apresento desde já as minhas indulgências pela provável decepção. O que me assusta, a mim, é a incomum capacidade que todos nós temos de nos esquecermos das coisas facilmente. Isso, sim, me causa o maior medo. Esta espécie de amnésia colectiva que nos tolda o discernimento e reduz os acontecimentos que vivemos a autênticos “take-aways”. Assusta-me o nosso esquecer colectivo. E é isso que os algozes usam para inspirar e anexar confiança aos seus próximos actos macabros. Esquecemo-nos facilmente, e para eles ainda bem, porque o esquecimento colectivo ou singular dá lugar à repetição de um acto passado como sendo novo, com o condão de suscitar uma reacção do passado, mas que, devido ao esquecimento, parece nova.
O refrão de exigência colectiva de justiça que estamos a ouvir desde a manhã de terça-feira – quando, já crivado de balas, o professor catedrático Gilles Cistac era contabilizado como coeficiente de um Estado dirigido por criminosos – é fruto dessa amnésia colectiva. E há uma pergunta básica que sustenta toda esta tese: “A quem estamos a pedir justiça?”. A resposta sincera a esta questão faz lembrar o período áureo da brutalidade feudal, tempo em que as mulheres violadas tinham de comparecer a uma tribuna de “justiça” e, para sua falta de sorte, encontravam lá o mesmo senhor que as violou, não na condição de acusado ou suspeito, mas na condição de juiz, que, curiosamente, tinha todas as provas de que a vítima era culpada.
A quem estamos nós a exigir justiça? Uma incursão à história das execuções promovidas por este mesmo regime mostra-nos que estamos num exercício amnésico de exigir algo que já exigimos e a entidades erradas. E, devido à amnésia, estamos a exigir hoje da mesma forma o que não nos foi dado no passado, quando exigimos de similar maneira. Quando foi assassinado Carlos Cardoso, exigimos justiça. Tecnicamente nada aconteceu, e damos graças ao tempo, que tem feito a sua própria justiça.
Assassinaram Siba-Siba Macuácua, exigimos justiça, e nada foi feito. Assassinaram Orlando José, exigimos justiça, e nada foi feito. Ou seja, estamos num acto circular, que não nos está a levar a lado algum senão para a morte de mais cidadãos que decidiram abraçar a integridade.
A amnésia colectiva está a levar-nos a exigir justiça numa situação em que o juiz é o assassino. Veja-se, por exemplo, que ontem a Polícia da República de Moçambique já tinha uma tese racista de que Cistac “foi baleado por um cidadão de raça branca”, quando testemunhas dizem que no carro não havia nenhum cidadão de raça branca. Só nas declarações de Arnaldo Chefo, o porta-voz da PRM, já é possível saber de que lado joga o juiz a quem estamos a exigir justiça. E como que a responder à evolução dos tempos, aqui já não é o sistema feudal de condenar à prisão. Na era moderna, quando o violador é juiz, condena-se a vítima não a uma pena de prisão, mas condena-se ao esquecimento, convocando para tal umas investigações que nunca mais terminam e, consequentemente, nunca produzem resultados. No “caso Cardoso”, houve uma investigação que foi conduzida até aos autores materiais, mas foi desviada exactamente quando a investigação estava com o braço esticado para bater à porta do autor político e moral do acto. No caso de Siba-Siba, a vítima foi condenada ao esquecimento. Orlando José também foi condenado ao esquecimento. O juiz é o assassino.
Dentro dos próximos dias, Cistac será também condenado ao esquecimento. O juiz é o mesmo. É o assassino de todos os outros. Mas, devido à amnésia, esquecemo-nos facilmente do carácter deste juiz a quem hoje suplicamos justiça. Estamos a exigir justiça com métodos e à entidade errada. No lugar de justiça, temos que exigir um novo juiz. Exigir um novo juiz é a mínima exigência de justiça que podemos fazer. Agora, como se exige um novo juiz, não sei lá muito bem. Mas a indignação colectiva e o cansaço de todos estes anos que andamos a aturar assassinos a serem juízes das desgraças que eles próprios causam pode ser um bom ponto de partida. (Matias Guente)
CANALMOZ – 05.03.0215
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