Este é um texto em homenagem descarada ao G-40, cujas exéquias fúnebres estão a ser lidas por muitos. É um ode à política tal e qual ela é, e não tal e qual ela devia ser. Uso propositadamente esta lenda persa (Ali Baba e os 40 ladrões) para confundir aqueles que têm maus hábitos de leitura. A lenda é simples. Ali Baba, pobre, descobriu as palavras mágicas (“abre-te Sésamo”) que davam acesso à gruta onde um bando de 40 ladrões guardava o seu espólio. O seu irmão, rico, extorquiu-lhe a senha, foi à gruta e de tanta excitação não se lembrou mais da senha para a saída, foi apanhado e esquartejado pelos ladrões. Preocupado, Ali Baba procurou pelo irmão, encontrou-o morto, levou-o de volta à casa, entregou o cadáver à escrava Morgiana que preparou o seu enterro. Quando os 40 ladrões regressaram à gruta e não encontraram o cadáver, procuraram por ele usando todo o tipo de artimanhas que a escrava foi frustrando até todos eles serem mortos, incluindo o próprio chefe dos bandidos pela mão da escrava. Como recompensa, Ali Baba casou a escrava com o seu próprio filho.
Quem nunca leu esta lenda pode pensar que os 40 ladrões são uma óptima descrição do G-40 e que Ali Baba é o líder que acaba de ceder o lugar ao novo empregado do povo moçambicano. A imagem é bastante sugestiva, sobretudo o substantivo próprio “ladrões”. Eu acho, porém, que este é um grande equívoco que revela a pobreza da nossa abordagem do político em Moçambique. Os 40 ladrões foram pessoas sem cara nem protagonismo próprio. Dois foram mortos pelo chefe depois de terem sido ludibriados pela escrava e os restantes foram mortos à espera das instruções do chefe que, subsequentemente, também foi morto pela escrava. A figura chave nesta lenda é a escrava. É ela que tem todo o protagonismo, antecipa-se, toma a dianteira e trabalha em prol da segurança de Ali Baba. E Ali Baba representa, na verdade (bom, na minha interpretação), um ideal, a saber um ideal em prol do qual a escrava se empenha. A questão que se levanta aqui é que ideal é esse e que meios são aceitáveis para a sua prossecução. É esta questão que a gente não analisa quando considera o fenómeno dos G-40. E isso prejudica uma melhor abordagem do político no País.
Infelizmente, a discussão pública usa uma ideia de G-40 que é própria da polémica política e, por isso, pouco interessada numa boa conceitualização. Penso que uma discussão útil teria que começar por tentar identificar o que é genérico nesse fenómeno. Em minha opinião, o que é genérico é o facto de serem pessoas que participam activamente na política em defesa de algo que elas consideram importante. Isto distingue o grupo de muitos de nós (eu próprio incluo-me nesse “nós”) que optamos pelo mais simples, isto é colocarmo-nos por cima do muro como “analistas independentes” a quem o País interessa apenas como objecto de análise e que só merece a nossa intervenção quando é para o proteger daqueles que têm uma ideia mais ou menos clara do que ele devia ser e se envolvem na contenda política para esse efeito. Só que protegemos o País falando mal desses outros, não intervindo na arena política como tal. Os piores nisto tudo são os que se consideram membros dum partido, mas ao invés de agirem no interior desse partido em prol da sua própria agenda ficam de fora a vociferar impropérios feios aos que lutam pela sua agenda. Creio que esta caracterização é importante antes de passarmos para outras questões também pertinentes.
Uma questão pertinente é a relativa à forma como esse empenho por uma agenda própria se revela. Aqui de novo o problema da generalização não nos permite uma melhor abordagem dos assuntos. Há muita intriga e golpes baixos na política. Mas há também jogo limpo, solidariedade e honestidade. Os membros do G-40, enquanto actores políticos, não poderiam ser diferentes. Há os que fazem jogo sujo, mas há também os que fazem jogo limpo. Há inclusivamente os que fazem as duas coisas. Com isto não quero defender uma moral instrumental ao estilo do entendimento popular do Maquiavelismo. Nunca é moralmente correcto fazer o que é moralmente incorrecto. Em nenhuma circunstância. Mas a limpeza do jogo político não é algo que surge do nada, nem é de estranhar num contexto como o moçambicano onde circunstâncias estruturais sempre nos vão impelir na direcção da polarização e radicalização. Na verdade, o jogo sujo na política não é uma prerrogativa moçambicana. Sempre que houver a oportunidade para tal (é só pensar em Nixon ou no último Bush nos EUA; ou pensar na campanha anti-Dilma no Brasil actualmente) o actor político vai fazer mão de tudo o que estiver ao seu alcance para avançar a sua agenda. A limpeza do jogo político é resultado de processos civilizacionais que ocorrem no interior dos partidos políticos e na esfera pública. Neste sentido, o jogo sujo que os “analistas” sempre atribuem ao G-40 é, na verdade, manifestação dum problema civilizacional nacional, logo, um problema de todos nós. Eles próprios não são, de resto, inocentes.
A outra questão pertinente é a de saber que ideal os G-40 associam a Ali Baba. Estranhamente, nunca ninguém se preocupou em tentar entender isto. Contentamo-nos com o palpite pouco útil segundo o qual os membros do G-40 seriam oportunistas e lambe-botas à espera duma oportunidade para singrarem no aparelho do Estado. É claro que deve haver muitos que têm esse tipo de motivações da mesma forma que alguns dos seus críticos também têm o mesmo tipo de ambição. É normalíssimo. Mas o debate político só vai andar para a frente se ao lado da condenação desse tipo de motivações também procuramos saber que ideia de País essas pessoas têm, e discutirmos essa ideia. Na circunstância, essa ideia não é muito clara. Dum modo geral, quando leio as intervenções dos que são considerados membros do G-40 vejo várias ideias, algumas das quais entram até em choque entre si. O denominador comum parece ser a ideia de que a Frelimo é o único partido com um projecto político legítimo, ideia essa que leva alguns a olharem para os outros partidos como traidores da causa nacional. É um pouco a partir desta postura que se desenvolvem espantalhos do tipo “os brancos”, “os Chissanistas”, “os comunistas, etc. para caracterizar os adversários internos e “mercenários”, “divisionistas” e “vendedores da pátria”, etc. para caracterizar os adversários externos. Foi sempre assim na Frelimo (e é assim no País em geral) e isso não porque a Frelimo seja por natureza intolerante, mas sim porque todo o grupo político com um projecto totalitário age assim mesmo. É por isso que tenho pouca paciência para as críticas de pessoas como Jorge Rebelo, pois nada do que ele critica hoje é diferente da postura política que ele não criticou (que eu saiba) no passado. Na altura eram os “reaccionários”, “Xiconhocas”, “inimigo interno”, “infiltrados”, etc. e com todas as consequências drásticas que daí advieram sem que até hoje tenha havido (que eu saiba) um pedido de desculpas. Mas, lá está, como haveria pedido de desculpa se eram movidos pelos objectivos mais nobres? É tudo a mesma cultura política.
Hoje, com a passagem do testemunho partidário de Guebuza para Nyusi, festeja-se o fim do G-40. Isto parece-me revelar ingenuidade se eu estiver correcto na minha impressão de que o G-40 seja essencialmente um grupo de actores políticos. Celebrar-se o seu fim seria algo como celebrar o fim da política (outra ideia tipicamente totalitária), o dia a partir do qual viveremos felizes para todo o sempre. Pudera. O próprio Nyusi pode ter dado um tiro no próprio pé ao se deixar levar na onda daqueles que exigiam a passagem automática deste testemunho. Com Guebuza no leme, pessoa que revitalizou a Frelimo nos últimos tempos (mas acabou sendo vítima do seu próprio sucesso), ele poderia ter tido as costas livres para consolidar o seu poder e dar maior contorno ao seu próprio programa governamental. Se não tiver um Secretário-Geral forte, estratega e politicamente hábil corre o forte risco de ver o seu próprio programa inviabilizado pelo seu próprio partido. Os que o apoiam hoje não o fazem necessariamente por simpatia com o seu projecto. Podem o fazer por antipatia a Guebuza. Mas como dizem os americanos (numa expressão idiomática popularizada, entre nós, pelo cantor Billy Ocean) “when the going gets tough, the tough get going” (quando a situação fica mal, os fortes empenham-se mais ainda). Talvez Nyusi faça parte dos “fortes” e esteja realmente à espera deste teste para demonstrar isso. O grande erro que iria cometer seria de esperar que esse empenho fosse possível sem política. Aí corre o risco de não ter o G-40, mas sim os 40 ladrões de Ali Baba, aqueles que apenas cumprem ordens e cuja motivação é apenas a obediência ao chefe.
Pode vir a ser pior. E os primeiros a atirarem pedras (os 38 ladrões arrumados em bidões de óleo à espera do sinal do chefe que consistia em pedras atiradas da janela do seu quarto morreram assim mesmo) não vão ser os G-40 supostamente derrotados, mas sim aqueles que fora ou nas margens do partido festejam o fim da política. A maior afronta à política no País vem desses, não dos G-40, desses que compartilham todo o texto (bem ou mal escrito, correcto ou equivocado) desde o momento que bata forte nos seus inimigos. Eu não concordo com certas intervenções de pessoas associadas ao G-40, mas tenho um grande respeito por elas por darem na cara com um compromisso político, por muito mal ou bem que ele esteja formulado. Discutir esse compromisso político seria vital para a consolidação da democracia no País. E para fazer isso é preciso trazê-lo à superfície. Um País faz-se na política. Não se faz apenas nas lamentações de quem acha que é melhor do que os outros, tão bom que está inclusivamente acima do jogo político.
Essa é uma maneira muito hipócrita de fazer política.
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