segunda-feira, 4 de outubro de 2010
Moçambique, terra queimada (xiii)
Escrito por Jorge Pereira Jardim
Escrito aquilo que vivi e testemunhei, apoiado em documentos e citações irrefutáveis, poderia talvez dispensar-me de o condensar num juízo final.
Só o faço por entender que possa estar em melhor posição de relacionar factos e interpretar atitudes do que o observador eventualmente menos atento ou, por causas diversas, menos sensível à informação prestada.
Procurarei ser sucinto e claro.
Não ignoro que agravo, ainda mais, os riscos da minha posição pessoal.
Espero-o serenamente. Nada me pode deter quando tenho imperioso dever de consciência a cumprir.
A estratégia soviética visava, prioritariamente os dois grandes territórios portugueses de África (Angola e Moçambique), cuja resistência se opunha ao controle das rotas do Índico e do Atlântico e ao assalto aos recursos da África Austral.
Pouco preocupava o envolvimento americano nessa zona. Sabiam que o neutralizariam na altura própria.
Alarmava-os a crescente influência chinesa que se consolidaria, a partir de 1975 como também não o ignoravam os serviços de informações ocidentais. Os soviéticos, actuando sobre minorias destinadas a dominar os movimentos nacionalistas, não podiam deixar que se alcançasse o limite de confrontação directa com os chineses. Conheciam a sua capacidade de retaliação se a esse extremo se chegasse. Tinham de antecipar-se.
O encaminhamento das guerras nos territórios portugueses não lhes permitia obter uma solução urgente. Por isso se impunha actuar em Portugal em termos de conduzir à queda desses bastiões africanos.
Essa estratégia foi entendida pelos defensores que, no entanto, se deixaram iludir por excessivas preocupações quanto à infiltração chinesa e nela concentraram atenções. Isso serviu os propósitos soviéticos.
Por outro lado, muitos dos responsáveis não entenderam que só a efectiva independência dos territórios ultramarinos, enquanto era tempo de o fazer em condições de preservar o equilíbrio da sua vida, poderia abortar a manobra comunista.
Portugal, liberto das guerras que enfrentava, fortalecer-se-ia em termos de não ser vulnerável à subversão. Engrandecia-se como condutor de uma vasta "Comunidade Lusíada" em que se associavam países de equilibrada tendência ideológica e beneficiários de uma explosão de progresso apoiada pelas forças ocidentais.
A agilidade de uns e as hesitações de outros conduziram ao êxito soviético.
O assalto político em Portugal só era viável através de um golpe militar. A avaliação da capacidade dos partidos, feita em sucessivas campanhas eleitorais, havia-o demonstrado.
PARA isso, era indispensável motivar os quadros, cuja agitação se iniciara explorando razões de ordem profissional. A carência de politização dos militares, mesmo que infiltrados pelos oficiais milicianos doutrinados, não consentia desencadear qualquer golpe sob a bandeira de uma ideologia revolucionária. Isso ficara demonstrado nas reuniões de oficiais integrados no "Movimento dos Capitães".
Com o fito de a todos mobilizar, arrastando os mais influentes e que eram os menos sensíveis à doutrinação subversiva, havia que provocar uma afronta à sua honra militar e fazê-los crer que se transformavam, perante a nação, em culpados de faltas que não lhes pertenciam.
Por isso se provocaram os incidentes da cidade da Beira, em Janeiro de 1973.
Importa recordar que o crime atribuído à "Frelimo" para agitar a população, ainda hoje é duvidoso que tenha sido por esse movimento cometido. Lembro que o Dr. Kaunda me assegurou que tal procedimento não se enquadrava na actuação da "Frelimo", mas que admitiu poder ter sido realizado por algum grupo actuando à margem das ordens superiores.
O que não oferece dúvidas é que o frio assassinato duma mulher europeia foi executado em termos revoltantes e em zona onde pudesse causar a reacção civil, afrontosa para os militares, que os "democratas" comunistas fizeram desencadear.
O Gen. Costa Gomes surge em Moçambique, e concretamente na Beira, e exactamente na altura dos incidentes. Numa viagem programada antecipadamente.
A viva emoção causada nos oficiais levou-os às atitudes drásticas que relatei, com a complacência dos comandossuperiores em cujo vértice o Gen. Costa Gomes se encontrava. A partir daí o "Movimento dos Capitães" amplia-se e motiva-se para derrubar o regime que responsabilizava pelos insultos recebidos. Nascera o "Movimento das Forças Armadas".
A minha intervenção tinha evitado que a agitação popular alcançasse as dimensões planeadas, mas não impediu que fosse suficiente para se realizarem esses objectivos.
O Gen. Costa Gomes regressou de Moçambique dispondo de todos os elementos necessários: a revoltada motivação dos militares, a excitada disposição das populações e os contactos locais a utilizar no futuro.
Sabia, porque o levara consigo, o que representaria como estandarte aglutinador, o livro do Gen. Spínola. Servido por um nome prestigioso enquadrava-se, perfeitamente, na exploração das condições criadas. Não podia ter dúvidas sobre os resultados que o seu lançamento causaria.
Apressa-se, então, o Gen. Costa Gomes a dar ao governo um parecer tranquilizador e procura, mesmo, convencer o Doutor Marcello Caetano de ser indispensável a sua permanência no poder.
Como fruto desta hábil manobra surgiu uma revolução a que ninguém se opôs e em que os militares apresentavam uma frente unida.
O "Programa do MFA", cuja elaboração se confia ao Maj. Melo Antunes, é redigido em termos de congregar as vontades que ainda se encontrassem dispersas, de obter a adesão de todas as correntes políticas e, mesmo, a contemporização das camadas conservadoras da sociedade portuguesa.
O "Programa" fora, porém, habilmente redigido em termos de vir a consentir leituras e interpretações diversas daquelas que inicialmente aparentava.
Com a vitória da revolução, mantêm-se o Gen. Spínola como figura adormecedora das preocupações internas ou externas que pudessem esboçar-se. No elenco da "Junta de Salvação Nacional" participam outros nomes que a todos justificam confiança.
Havia, porém, que iniciar a tarefa descolonizadora. Para isso se fizera a revolução.
Não era fácil conduzi-la para os propósitos da estratégiaa soviética sobre a presidência do Gen. Spínola apesar do domínio influente que sobre ele exercia o Gen. Costa Gomes.
Tudo teve de ser feito com método e de acordo com os planos delineados.
O Gen. Costa Gomes volta a deslocar-se a Moçambique. Dali traz o Dr. Almeida Santos para Ministro da Coordenação Interterritorial, dali envia emissários a Samora Machel e ali reforça a posição dos "democratas". Servindo-se do Dr. Almeida Santos impede que o Gen. Silvino Silvério Marques assuma as funções de governador-geral e comandante-chefe em Moçambique. Em seu lugar, instaura o governo provisório do Dr. Soares de Melo, escolhido pelas sua docilidade obediente e incapacidade governativa.
Tendo confirmado a minha influência e as minhas ligações moçambicanas, consegue reter-me em Lisboa. Com isso, também o Gen. Costa Gomes impede os meus contactos com o Dr. Banda e o Dr. kaunda (evitando a possibilidade de negociações imediatas com a "Frelimo"), denunciando-se ao documentar por escrito o seu propósito de arredar a Zâmbia e o Malawi da acção mediadora que tinham oferecido. Quando se inteira da firmeza daqueles paaíses africanos em meu favor, recorre à cilada para tentar prender-me.
Para minar resistências deixa Moçambique resvalar para o caos, a anarquia e a bancarrota. Agrava-se a instabilidade interna fomentando a incerteza das soluções e promovendo a confrontação tribal.
Envolve o Dr. Mário Soares em negociações destinadas ao insucesso, mas que fariam recair sobre os socialistas, ávidos de alcançarem prestígio político, as maiores responsabilidades aparentes da descolonização.
Quando me escapo às suas malhas, o Gen. Costa Gomes lança campanha de descrédito calunioso que iria até à invenção de acções subversivas, ataques de mercenários e propósitos de racismo colonialista. Impede Otelo Saraiva de Carvalho de se encontrar comigo para se esclarecer sobre os problemas moçambicanos e, mais tarde, haveria de repetir a manobra com Rosa Coutinho.
Sucedem-se os mandatos de captura, o congelamento das contas bancárias e o anúncio de rigoroso inquérito aos meus actos. Multiplicam-se as pressões diplomáticas e chega-se ao corte de relações com o Malawi.
Neste processo intimidador, o Gen. Costa Gomes transmitiu a ordem para as tropas me abaterem se cruzasse a fronteira de Moçambique.
Perante nada recuava quando era necessário retardar a solução do caso descolonizador moçambicano.
Consegue-o, levando as unidades militares ali presentes ao desespero e frustração.
Só nessa altura surge o Maj. Melo Antunes como o negociador que tudo salvaria. Ultrapassa o Dr. Mário Soares e o Dr. Almeida Santos (parceiros já de secundária ordem) depois destes terem desempenhado o papel que neste complexo jogo lhes estava atribuído.
O Maj. Melo Antunes não negoceia. Confraterniza.
Entende-se com os extremistas da "Frelimo" e com eles concerta as fórmulas que correspondiam aos comuns propósitos. Também os nacionalistas daquele movimento haviam sido ultrapassados.
Perante a resistência do Gen. Spínola utiliza-se o argumento de que as tropas em Moçambique não estão dispostas a sustentar posições que ainda ali mantinham. O Gen. Costa Gomes, como chefe do Estado Maior General, confirma-lhe que assim é. Admite-se o perigo da capitulação militar.
O velho soldado, traído, acaba por transigir e o acordo "Samora Machel-Melo Antunes" é assinado em Lusaka, em 7 de Setembro de 1974.
As Forças Armadas ficariam, para sempre, como "bode expiatório" desse compromisso vergonhoso. Ninguém explica a verdade da situação e a forma como os militares haviam sido minados por longos meses de propositado retardamento das soluções e premeditada deterioração das condições de Moçambique.
Com o "Movimento Moçambique Livre", para que foi arrastada uma população que planeadamente se conduziu a extremos de desespero, estão encontradas todas as justificações para se acelerar a saída das camadas humanas mais válidas de que Moçambique dispunha. Dessa tarefa se encarrega o Com. Vítor Crespo, nomeado Alto Comissário. Sem preparação para cargo tão responsabilizante, tinha determinação política para levar a cabo essa missão.
A resignação do Gen. Spínola, que tarde descobriu a traição enleadora do Gen. Costa Gomes, deixa o caminho facilitado à "descolonização original" que se aceleraria com o seu afastamento (Setembro de 1974) e com o exílio, agravado pela prisão de muitos oficiais desiludidos (Março de 1975).
Com Vasco Gonçalves no governo (onde Costa Gomes o manteria até a reacção popular forçar, meses depois, o seu afastamento) aniquilam-se as estruturas portuguesas em termos de nenhum reflexo poderem ter nos territórios ultramarinos em vias de descolonização. O vazio estava criado para que a estratégia soviética pudesse alcançar os objectivos fixados.
Foi Vasco Gonçalves o instrumento da entrega de Moçambique à falsa "Frelimo" que os extremistas controlavam.
Agravava-se, em termos incomportáveis, a situação dos portugueses e dos moçambicanos que ali viviam e conviviam. Por isso foram saindo às dezenas de milhar, como se pretendia que acontecesse. Ali ficaram milhões escravizados a uma democracia popular.
O Gen. Costa Gomes havia realizado a sua missão.
Como veio a realizar em Angola, onde tudo se preparou para ser possível a esmagadora intervenção soviética.
Para a culminar haveria de tomar a iniciativa e a responsabilidade de reconhecer o regime do "MPLA" (Fevereiro de 1976) aproveitando a ausência do Primeiro-Ministro, do chefe do Estado Maior da Armada, do chefe do Estado Maior da Força Aérea, do ministro da Administração Interna e do ministro da Cultura.
Nessa capitulação desnecessária (a que a ameaçada Zâmbia resistiu) o Gen. Costa Gomes teve o apoio aberto e previsível do Maj. Melo Antunes. O binómio descolonizador ficou, só por isso, claramente identificado.
Melo Antunes atreveu-se a declarar que essa decisão merecera a inteira solidariedade do Conselho da Revolução e do MFA.
Valeu-lhe isso o desmentido público e corajoso do Gen. Morais e Silva em termos que não deixam dúvidas sobre a manobra do Maj. Melo Antunes que se atrevera a acrescentar: "estamos longe de considerar que tenhamos reconhecido um governo pró-soviético"!
Só um comunista poderia afirmar essa convicção.
Com as tropas cubanas e os tanques russos a ocuparem Angola!
Tenho exacta noção das responsabilidades que assumo com o que escrevo. Estou disposto a responder por elas. Num regime de liberdade garantida, não deixaria de estar presente no país cujos governantes acuso.
Como isso tardará em ser possível terei de me conservar no exílio.
Quanto ao livro (editado quase que simultaneamente em mais de um país) não haverá manejos policiais que entravem a sua divulgação. Prevejo que o tentem mas não lhes auguro êxito.
Pelo que pessoalmente me diz respeito, estou certo de se intensificar a campanha de que tenho sido alvo desde que o Gen. Costa Gomes conseguiu ir tomando conta dos poderes. Tenho vivido há dois anos nesta situação. Já me habituei e já aprendi a defender-me.
Creio que voltarei a ser acusado de hipotéticos delitos comuns, com o objectivo de se exercerem novas pressões diplomáticas sobre os países que me abriguem. Até pode acontecer que provem, de repente, com improvisado rigor jurídico, o que não foram capazes de inventar durante os dois anos em que sujeitaram toda a minha vida a devassa rigorosa. Bem insisti, por todos os meios, para que as conclusões do inquérito anunciado fossem tornadas públicas. Dirigi ao Presidente da República a última exposição em 23 de Outubro de 1975.
Mas nada do que contra mim agora "provem" alterará a posição do problema que têm de enfrentar.
Admitindo que pudesse ser verdade tudo aquilo de que me venham a acusar (e não posso, sequer, prever o que seja) e que daí resultasse a evidência de eu ser o mais abjecto monstro do universo, o que fica de pé é saber se falo verdade, neste livro, ou não.
Se falo verdade é isso que importa.
Não têm de tentar destruir o livro. Não interessa que procurem eliminar a pessoa, renovando a ordem de me abater que foi dada em 1974.
O que têm é de provar que menti.
Porque se me acusarem de mentir, têm de provar a acusação.
Nestas últimas páginas creio ter resumido, concretamente, o que ao longo deste livro fui provando.
O juízo final só pode ser um.
A "descolonização original" constitui premeditado crime de traição, ao serviço dos interesses de uma potência estrangeira, conduzido metodicamente e agravando a honra das Forças Armadas que foram ardilosamente manipuladas ou iludidas.
O Gen. Francisco da Costa Gomes foi o implacável e frio chefe do bando que executou essa acção.
A ele pertence a responsabilidade por dezenas de milhar de mortes, por centenas de milhar de desalojados e por milhões de pessoas escravizadas.
É culpado pelos sofrimentos, pelos vexames e pelos roubos de que tantos foram vítimas.
É culpado pela desonra que atingiu Portugal.
Não insulto nem ofendo.
Apenas digo a verdade que muitos podem confirmar.
Acuso serenamente e sem ódio.
Porque serenamente e sem ódio terá de ser julgado.
Todos os crimes do Gen. Costa Gomes foram praticados estando no activo como oficial do Exército Português.
As penas estão previstas no Código de Justiça Militar.
Nem escapará a esse julgamento dos homens e nem ao do juízo final.
Não é por teimosia.
Não é só por acreditar no que desejo.
Tenho procurado ser realista e não correr atrás de aventuras.
Confio em que ainda seja possível que Moçambique se converta em terra de moçambicanos e deixe de ser colónia de intrusos.
Os desmandos, os abusos e os crimes avizinham-se do seu fim.
Surgem movimentos nacionalistas redentores, cresce a resistência por toda a parte e as gentes procuram conquistar o que lhes foi negado por uma minoria que desprezam: a liberdade de viver sem terror e a independência de disporem de si próprios.
"Frelimo" chegou a ser, para muitos, a palavra mágica que representava a esperança de se realizarem anseios de justiça.
"Frelimo" é, hoje, nome odiado por milhões de moçambicanos, depois de tudo quanto em seu nome foi cometido.
Em ambas as vezes se errou.
Não podemos praticar, na desilusão, o exagero que cometemos na esperança.
Na "Frelimo" estão muitos que sentem como todos nós sentimos.
É grande o número dos seus militantes valorosos que já sofreram a perseguição, o internamento, a tortura e a morte. Não transige, não concorda e não serve os implacáveis colonialistass que adominam. Esses bons nacionalistas também se sentem espoliados daquilo pelo que tantos irmãos seus deram a vida.
É dentro de Moçambique que se haverá de erguer o clamor imparável da revolta. Não é de fora que isso se poderá realizar.
Todos os movimentoss nacionalistas são dignos de encorajamento, quando não se apresentem como capa de novos colonialismos. Quando sejam autenticamente moçambicanos. Por isso, também a verdadeira "Frelimo" nacionalista tem lugar nesse levantamento nacional que está próximo. Com os seus quadros, com os seus soldados e com os postos de comando que ocupam. O dever de todos os moçambicanos é o de estar prontos a reforçá-los, distinguindo os irmãos dos "camaradas".
Sobre o sacrifício dos nossos mártires e sobre o sofrimento dos que tiveram de abandonar a terra a que pertenciam, estou certo de que construiremos o Moçambique Novo.
Onde se queime a bandeira da opressão para se erguer a bandeira de Moçambique. Onde ninguém tenha de se envergonhar da cor da pele e cada qual seja livre de praticar a sua religião. Onde as tradições tribais sejam respeitadas no fortalecimento dos laços comuns que cada vez mais nos unem. Onde voltemos a ser irmãos para deixarmos de ser "camaradas".
Ninguém quer voltar para trás. Todos pretendíamos seguir em frente.
O nosso exemplo multi-racial, em paz e harmonia, será a melhor arma para destruir racismos que ainda nos rodeiam. Com o amor das novas gerações, que têm de viver e confundir-se sem preconceitos, conseguiremos mais, do que outros pretendem obter com o ódio e com as armas.
Os tiranos não podem perdurar e, porque o sabem, tentam prolongar a ditadura evitando que o Povo fale. Mas um povo não pode ser amordaçado. São milhões de bocas a clamar por justiça e a exigir liberdade.
Não se atrevem a perguntar-lhe a opinião. Não são capazes de fazer uma eleição. Não ousam consentir a cada cabeça um voto porque sabem o que todas as cabeças pensam. Não consentem o governo da maioria que para outros dizem reclamar.
Os tiranos são do Maputo. Foram eles quem escolheu o nome que lhes fica bem como apelido. O Povo não é Maputo. O Povo é de Moçambique.
Os ditadores do Maputo, no seu desespero, espiam, perseguem e matam.
Todos sabemos os crimes que estão a cometer.
Não percebem que por cada vítima que tombe aumentará o número dos verdadeiros combatentes da liberdade. Abençoado seja o seu sacrifício e que se converta no cimento indestrutível do Moçambique Novo.
Os tanques russos não podem passar nas nossas picadas; as armas modernas de nada servem contra as armas que não temos; a as nossas aldeias são tantas que não há mercenários comunistas suficientes para as ocuparem. Mas eles, que são poucos, podem ser alvo fácil para a resistência do Povo, quando se desencadeie a sua revolta.
Por isso nunca se atreverão a ir mais longe. Já atingiram o máximo a que podiam chegar.
Daqui por diante só lhes resta recuar. Para embarcarem nos transportes de fuga que prepararam.
Nós seremos os que estão e os que voltam. Para fazer o governo da maioria dentro de Moçambique.
Regressarão muitos, para todos nos ajudarmos. Para voltarmos a ter universidades, escolas, hospitais, indústrias, portos, caminhos de ferro, estradas, comércio e agricultura. Sobretudo para termos, finalmente, liberdade.
Para isso contamos com a ajuda de todos. Sabemos que contamos com a "Frelimo" nacionalista, que é tão moçambicana como nós o somos. Confiamos na protecção dos soldados moçambicanos.
Surgem já raios de Sol a romper o fumo da queimada.
Em breve veremos o céu que é azul. E essa será a cor da nossa bandeira. A bandeira de Moçambique erguida pelo governo da maioria.
Sob essa bandeira espero ainda viver em Moçambique.
Tal como eu, haverá muitos milhares que regressarão. Porque não sabem viver noutra terra. Porque querem viver nessa a que pertencem.
Não tornaremos a consentir que nos enganem, que nos dividam e que nos escravizem. Os que queiram tentá-lo não terão lugar em Moçambique. Aprendemos a conhecê-los. Eram só "camaradas", nunca foram nossos irmãos.
O Povo poderá escolher. Por cada cabeça um voto. A pensar cada um como quiser. O mundo ficará a saber o que queriam os moçambicanos.
Neste livro contei uma história triste. Espero poder escrever outro a contar coisas diferentes.
Haverei de o fazer nesta terra em que quero viver e onde espero, um dia, vir a morrer.
Entretanto, a luta continua... E construiremos o Moçambique Novo (ob. cit., pp. 403-416).
A esquina do Café Monumental, no cruzamento entre as Avenidas da República e Dom Luiz, actualmente as Avenidas 25 de Setembro e Marechal Samora Machel. |
Juízo Final
Escrito aquilo que vivi e testemunhei, apoiado em documentos e citações irrefutáveis, poderia talvez dispensar-me de o condensar num juízo final.
Só o faço por entender que possa estar em melhor posição de relacionar factos e interpretar atitudes do que o observador eventualmente menos atento ou, por causas diversas, menos sensível à informação prestada.
Procurarei ser sucinto e claro.
Não ignoro que agravo, ainda mais, os riscos da minha posição pessoal.
Espero-o serenamente. Nada me pode deter quando tenho imperioso dever de consciência a cumprir.
Estratégia soviética
A estratégia soviética visava, prioritariamente os dois grandes territórios portugueses de África (Angola e Moçambique), cuja resistência se opunha ao controle das rotas do Índico e do Atlântico e ao assalto aos recursos da África Austral.
Pouco preocupava o envolvimento americano nessa zona. Sabiam que o neutralizariam na altura própria.
Alarmava-os a crescente influência chinesa que se consolidaria, a partir de 1975 como também não o ignoravam os serviços de informações ocidentais. Os soviéticos, actuando sobre minorias destinadas a dominar os movimentos nacionalistas, não podiam deixar que se alcançasse o limite de confrontação directa com os chineses. Conheciam a sua capacidade de retaliação se a esse extremo se chegasse. Tinham de antecipar-se.
O Café-Restaurante Djambu, no edifício do Hotel Tivoli na Baixa de Lourenço Marques, nos anos 60. |
Essa estratégia foi entendida pelos defensores que, no entanto, se deixaram iludir por excessivas preocupações quanto à infiltração chinesa e nela concentraram atenções. Isso serviu os propósitos soviéticos.
Por outro lado, muitos dos responsáveis não entenderam que só a efectiva independência dos territórios ultramarinos, enquanto era tempo de o fazer em condições de preservar o equilíbrio da sua vida, poderia abortar a manobra comunista.
Portugal, liberto das guerras que enfrentava, fortalecer-se-ia em termos de não ser vulnerável à subversão. Engrandecia-se como condutor de uma vasta "Comunidade Lusíada" em que se associavam países de equilibrada tendência ideológica e beneficiários de uma explosão de progresso apoiada pelas forças ocidentais.
A agilidade de uns e as hesitações de outros conduziram ao êxito soviético.
Emboscada em Abril
A revolução comunista em Portugal (25 de Abril de 1974). |
PARA isso, era indispensável motivar os quadros, cuja agitação se iniciara explorando razões de ordem profissional. A carência de politização dos militares, mesmo que infiltrados pelos oficiais milicianos doutrinados, não consentia desencadear qualquer golpe sob a bandeira de uma ideologia revolucionária. Isso ficara demonstrado nas reuniões de oficiais integrados no "Movimento dos Capitães".
Com o fito de a todos mobilizar, arrastando os mais influentes e que eram os menos sensíveis à doutrinação subversiva, havia que provocar uma afronta à sua honra militar e fazê-los crer que se transformavam, perante a nação, em culpados de faltas que não lhes pertenciam.
Por isso se provocaram os incidentes da cidade da Beira, em Janeiro de 1973.
Importa recordar que o crime atribuído à "Frelimo" para agitar a população, ainda hoje é duvidoso que tenha sido por esse movimento cometido. Lembro que o Dr. Kaunda me assegurou que tal procedimento não se enquadrava na actuação da "Frelimo", mas que admitiu poder ter sido realizado por algum grupo actuando à margem das ordens superiores.
O que não oferece dúvidas é que o frio assassinato duma mulher europeia foi executado em termos revoltantes e em zona onde pudesse causar a reacção civil, afrontosa para os militares, que os "democratas" comunistas fizeram desencadear.
O Gen. Costa Gomes surge em Moçambique, e concretamente na Beira, e exactamente na altura dos incidentes. Numa viagem programada antecipadamente.
A minha intervenção tinha evitado que a agitação popular alcançasse as dimensões planeadas, mas não impediu que fosse suficiente para se realizarem esses objectivos.
O Gen. Costa Gomes regressou de Moçambique dispondo de todos os elementos necessários: a revoltada motivação dos militares, a excitada disposição das populações e os contactos locais a utilizar no futuro.
Sabia, porque o levara consigo, o que representaria como estandarte aglutinador, o livro do Gen. Spínola. Servido por um nome prestigioso enquadrava-se, perfeitamente, na exploração das condições criadas. Não podia ter dúvidas sobre os resultados que o seu lançamento causaria.
Apressa-se, então, o Gen. Costa Gomes a dar ao governo um parecer tranquilizador e procura, mesmo, convencer o Doutor Marcello Caetano de ser indispensável a sua permanência no poder.
Como fruto desta hábil manobra surgiu uma revolução a que ninguém se opôs e em que os militares apresentavam uma frente unida.
O "Programa do MFA", cuja elaboração se confia ao Maj. Melo Antunes, é redigido em termos de congregar as vontades que ainda se encontrassem dispersas, de obter a adesão de todas as correntes políticas e, mesmo, a contemporização das camadas conservadoras da sociedade portuguesa.
O "Programa" fora, porém, habilmente redigido em termos de vir a consentir leituras e interpretações diversas daquelas que inicialmente aparentava.
Uma "descolonização original"
Junta de Salvação Nacional (da esq. para a dir.: Rosa Coutinho, Pinheiro de Azevedo, Costa Gomes, António de Spínola, Jaime Silvério Marques, Carlos Galvão de Melo. |
Havia, porém, que iniciar a tarefa descolonizadora. Para isso se fizera a revolução.
Não era fácil conduzi-la para os propósitos da estratégiaa soviética sobre a presidência do Gen. Spínola apesar do domínio influente que sobre ele exercia o Gen. Costa Gomes.
Tudo teve de ser feito com método e de acordo com os planos delineados.
O Gen. Costa Gomes volta a deslocar-se a Moçambique. Dali traz o Dr. Almeida Santos para Ministro da Coordenação Interterritorial, dali envia emissários a Samora Machel e ali reforça a posição dos "democratas". Servindo-se do Dr. Almeida Santos impede que o Gen. Silvino Silvério Marques assuma as funções de governador-geral e comandante-chefe em Moçambique. Em seu lugar, instaura o governo provisório do Dr. Soares de Melo, escolhido pelas sua docilidade obediente e incapacidade governativa.
Tendo confirmado a minha influência e as minhas ligações moçambicanas, consegue reter-me em Lisboa. Com isso, também o Gen. Costa Gomes impede os meus contactos com o Dr. Banda e o Dr. kaunda (evitando a possibilidade de negociações imediatas com a "Frelimo"), denunciando-se ao documentar por escrito o seu propósito de arredar a Zâmbia e o Malawi da acção mediadora que tinham oferecido. Quando se inteira da firmeza daqueles paaíses africanos em meu favor, recorre à cilada para tentar prender-me.
Para minar resistências deixa Moçambique resvalar para o caos, a anarquia e a bancarrota. Agrava-se a instabilidade interna fomentando a incerteza das soluções e promovendo a confrontação tribal.
Envolve o Dr. Mário Soares em negociações destinadas ao insucesso, mas que fariam recair sobre os socialistas, ávidos de alcançarem prestígio político, as maiores responsabilidades aparentes da descolonização.
Da esq. para a dir.: Agostinho Neto, Rosa Coutinho e Jonas Savimbi. |
Sucedem-se os mandatos de captura, o congelamento das contas bancárias e o anúncio de rigoroso inquérito aos meus actos. Multiplicam-se as pressões diplomáticas e chega-se ao corte de relações com o Malawi.
Neste processo intimidador, o Gen. Costa Gomes transmitiu a ordem para as tropas me abaterem se cruzasse a fronteira de Moçambique.
Perante nada recuava quando era necessário retardar a solução do caso descolonizador moçambicano.
Consegue-o, levando as unidades militares ali presentes ao desespero e frustração.
Só nessa altura surge o Maj. Melo Antunes como o negociador que tudo salvaria. Ultrapassa o Dr. Mário Soares e o Dr. Almeida Santos (parceiros já de secundária ordem) depois destes terem desempenhado o papel que neste complexo jogo lhes estava atribuído.
O Maj. Melo Antunes não negoceia. Confraterniza.
Entende-se com os extremistas da "Frelimo" e com eles concerta as fórmulas que correspondiam aos comuns propósitos. Também os nacionalistas daquele movimento haviam sido ultrapassados.
Perante a resistência do Gen. Spínola utiliza-se o argumento de que as tropas em Moçambique não estão dispostas a sustentar posições que ainda ali mantinham. O Gen. Costa Gomes, como chefe do Estado Maior General, confirma-lhe que assim é. Admite-se o perigo da capitulação militar.
O velho soldado, traído, acaba por transigir e o acordo "Samora Machel-Melo Antunes" é assinado em Lusaka, em 7 de Setembro de 1974.
As Forças Armadas ficariam, para sempre, como "bode expiatório" desse compromisso vergonhoso. Ninguém explica a verdade da situação e a forma como os militares haviam sido minados por longos meses de propositado retardamento das soluções e premeditada deterioração das condições de Moçambique.
Com o "Movimento Moçambique Livre", para que foi arrastada uma população que planeadamente se conduziu a extremos de desespero, estão encontradas todas as justificações para se acelerar a saída das camadas humanas mais válidas de que Moçambique dispunha. Dessa tarefa se encarrega o Com. Vítor Crespo, nomeado Alto Comissário. Sem preparação para cargo tão responsabilizante, tinha determinação política para levar a cabo essa missão.
A resignação do Gen. Spínola, que tarde descobriu a traição enleadora do Gen. Costa Gomes, deixa o caminho facilitado à "descolonização original" que se aceleraria com o seu afastamento (Setembro de 1974) e com o exílio, agravado pela prisão de muitos oficiais desiludidos (Março de 1975).
Dois traidores comunistas de Lesa-Pátria: Vasco Gonçalves e Costa Gomes. |
Foi Vasco Gonçalves o instrumento da entrega de Moçambique à falsa "Frelimo" que os extremistas controlavam.
Agravava-se, em termos incomportáveis, a situação dos portugueses e dos moçambicanos que ali viviam e conviviam. Por isso foram saindo às dezenas de milhar, como se pretendia que acontecesse. Ali ficaram milhões escravizados a uma democracia popular.
O Gen. Costa Gomes havia realizado a sua missão.
Como veio a realizar em Angola, onde tudo se preparou para ser possível a esmagadora intervenção soviética.
Para a culminar haveria de tomar a iniciativa e a responsabilidade de reconhecer o regime do "MPLA" (Fevereiro de 1976) aproveitando a ausência do Primeiro-Ministro, do chefe do Estado Maior da Armada, do chefe do Estado Maior da Força Aérea, do ministro da Administração Interna e do ministro da Cultura.
Nessa capitulação desnecessária (a que a ameaçada Zâmbia resistiu) o Gen. Costa Gomes teve o apoio aberto e previsível do Maj. Melo Antunes. O binómio descolonizador ficou, só por isso, claramente identificado.
Melo Antunes atreveu-se a declarar que essa decisão merecera a inteira solidariedade do Conselho da Revolução e do MFA.
Valeu-lhe isso o desmentido público e corajoso do Gen. Morais e Silva em termos que não deixam dúvidas sobre a manobra do Maj. Melo Antunes que se atrevera a acrescentar: "estamos longe de considerar que tenhamos reconhecido um governo pró-soviético"!
Só um comunista poderia afirmar essa convicção.
Com as tropas cubanas e os tanques russos a ocuparem Angola!
Só a verdade interessa
Tenho exacta noção das responsabilidades que assumo com o que escrevo. Estou disposto a responder por elas. Num regime de liberdade garantida, não deixaria de estar presente no país cujos governantes acuso.
Como isso tardará em ser possível terei de me conservar no exílio.
Quanto ao livro (editado quase que simultaneamente em mais de um país) não haverá manejos policiais que entravem a sua divulgação. Prevejo que o tentem mas não lhes auguro êxito.
Pelo que pessoalmente me diz respeito, estou certo de se intensificar a campanha de que tenho sido alvo desde que o Gen. Costa Gomes conseguiu ir tomando conta dos poderes. Tenho vivido há dois anos nesta situação. Já me habituei e já aprendi a defender-me.
Creio que voltarei a ser acusado de hipotéticos delitos comuns, com o objectivo de se exercerem novas pressões diplomáticas sobre os países que me abriguem. Até pode acontecer que provem, de repente, com improvisado rigor jurídico, o que não foram capazes de inventar durante os dois anos em que sujeitaram toda a minha vida a devassa rigorosa. Bem insisti, por todos os meios, para que as conclusões do inquérito anunciado fossem tornadas públicas. Dirigi ao Presidente da República a última exposição em 23 de Outubro de 1975.
As praias do Dragão de Ouro e do Miramar em Lourenço Marques, na segunda metade dos anos 60. |
Admitindo que pudesse ser verdade tudo aquilo de que me venham a acusar (e não posso, sequer, prever o que seja) e que daí resultasse a evidência de eu ser o mais abjecto monstro do universo, o que fica de pé é saber se falo verdade, neste livro, ou não.
Se falo verdade é isso que importa.
Não têm de tentar destruir o livro. Não interessa que procurem eliminar a pessoa, renovando a ordem de me abater que foi dada em 1974.
O que têm é de provar que menti.
Porque se me acusarem de mentir, têm de provar a acusação.
Perante Deus e os homens
Nestas últimas páginas creio ter resumido, concretamente, o que ao longo deste livro fui provando.
O juízo final só pode ser um.
A "descolonização original" constitui premeditado crime de traição, ao serviço dos interesses de uma potência estrangeira, conduzido metodicamente e agravando a honra das Forças Armadas que foram ardilosamente manipuladas ou iludidas.
O Gen. Francisco da Costa Gomes foi o implacável e frio chefe do bando que executou essa acção.
A ele pertence a responsabilidade por dezenas de milhar de mortes, por centenas de milhar de desalojados e por milhões de pessoas escravizadas.
É culpado pelos sofrimentos, pelos vexames e pelos roubos de que tantos foram vítimas.
É culpado pela desonra que atingiu Portugal.
Não insulto nem ofendo.
Apenas digo a verdade que muitos podem confirmar.
Acuso serenamente e sem ódio.
Porque serenamente e sem ódio terá de ser julgado.
Todos os crimes do Gen. Costa Gomes foram praticados estando no activo como oficial do Exército Português.
As penas estão previstas no Código de Justiça Militar.
Nem escapará a esse julgamento dos homens e nem ao do juízo final.
Construiremos o Moçambique Novo
A Praia do Bilene, situada a cerca de 200 kilómetros a Norte de Maputo, na margem de uma das lagoas de água salgada ali existentes. |
Não é só por acreditar no que desejo.
Tenho procurado ser realista e não correr atrás de aventuras.
Confio em que ainda seja possível que Moçambique se converta em terra de moçambicanos e deixe de ser colónia de intrusos.
Os desmandos, os abusos e os crimes avizinham-se do seu fim.
Surgem movimentos nacionalistas redentores, cresce a resistência por toda a parte e as gentes procuram conquistar o que lhes foi negado por uma minoria que desprezam: a liberdade de viver sem terror e a independência de disporem de si próprios.
"Frelimo" chegou a ser, para muitos, a palavra mágica que representava a esperança de se realizarem anseios de justiça.
"Frelimo" é, hoje, nome odiado por milhões de moçambicanos, depois de tudo quanto em seu nome foi cometido.
Em ambas as vezes se errou.
Não podemos praticar, na desilusão, o exagero que cometemos na esperança.
Na "Frelimo" estão muitos que sentem como todos nós sentimos.
É grande o número dos seus militantes valorosos que já sofreram a perseguição, o internamento, a tortura e a morte. Não transige, não concorda e não serve os implacáveis colonialistass que adominam. Esses bons nacionalistas também se sentem espoliados daquilo pelo que tantos irmãos seus deram a vida.
É dentro de Moçambique que se haverá de erguer o clamor imparável da revolta. Não é de fora que isso se poderá realizar.
Todos os movimentoss nacionalistas são dignos de encorajamento, quando não se apresentem como capa de novos colonialismos. Quando sejam autenticamente moçambicanos. Por isso, também a verdadeira "Frelimo" nacionalista tem lugar nesse levantamento nacional que está próximo. Com os seus quadros, com os seus soldados e com os postos de comando que ocupam. O dever de todos os moçambicanos é o de estar prontos a reforçá-los, distinguindo os irmãos dos "camaradas".
Carmo Jardim |
Onde se queime a bandeira da opressão para se erguer a bandeira de Moçambique. Onde ninguém tenha de se envergonhar da cor da pele e cada qual seja livre de praticar a sua religião. Onde as tradições tribais sejam respeitadas no fortalecimento dos laços comuns que cada vez mais nos unem. Onde voltemos a ser irmãos para deixarmos de ser "camaradas".
Ninguém quer voltar para trás. Todos pretendíamos seguir em frente.
O nosso exemplo multi-racial, em paz e harmonia, será a melhor arma para destruir racismos que ainda nos rodeiam. Com o amor das novas gerações, que têm de viver e confundir-se sem preconceitos, conseguiremos mais, do que outros pretendem obter com o ódio e com as armas.
Os tiranos não podem perdurar e, porque o sabem, tentam prolongar a ditadura evitando que o Povo fale. Mas um povo não pode ser amordaçado. São milhões de bocas a clamar por justiça e a exigir liberdade.
Não se atrevem a perguntar-lhe a opinião. Não são capazes de fazer uma eleição. Não ousam consentir a cada cabeça um voto porque sabem o que todas as cabeças pensam. Não consentem o governo da maioria que para outros dizem reclamar.
Os tiranos são do Maputo. Foram eles quem escolheu o nome que lhes fica bem como apelido. O Povo não é Maputo. O Povo é de Moçambique.
Os ditadores do Maputo, no seu desespero, espiam, perseguem e matam.
Todos sabemos os crimes que estão a cometer.
Não percebem que por cada vítima que tombe aumentará o número dos verdadeiros combatentes da liberdade. Abençoado seja o seu sacrifício e que se converta no cimento indestrutível do Moçambique Novo.
Os tanques russos não podem passar nas nossas picadas; as armas modernas de nada servem contra as armas que não temos; a as nossas aldeias são tantas que não há mercenários comunistas suficientes para as ocuparem. Mas eles, que são poucos, podem ser alvo fácil para a resistência do Povo, quando se desencadeie a sua revolta.
Por isso nunca se atreverão a ir mais longe. Já atingiram o máximo a que podiam chegar.
Daqui por diante só lhes resta recuar. Para embarcarem nos transportes de fuga que prepararam.
Nós seremos os que estão e os que voltam. Para fazer o governo da maioria dentro de Moçambique.
Regressarão muitos, para todos nos ajudarmos. Para voltarmos a ter universidades, escolas, hospitais, indústrias, portos, caminhos de ferro, estradas, comércio e agricultura. Sobretudo para termos, finalmente, liberdade.
Para isso contamos com a ajuda de todos. Sabemos que contamos com a "Frelimo" nacionalista, que é tão moçambicana como nós o somos. Confiamos na protecção dos soldados moçambicanos.
Surgem já raios de Sol a romper o fumo da queimada.
Em breve veremos o céu que é azul. E essa será a cor da nossa bandeira. A bandeira de Moçambique erguida pelo governo da maioria.
Sob essa bandeira espero ainda viver em Moçambique.
Tal como eu, haverá muitos milhares que regressarão. Porque não sabem viver noutra terra. Porque querem viver nessa a que pertencem.
Não tornaremos a consentir que nos enganem, que nos dividam e que nos escravizem. Os que queiram tentá-lo não terão lugar em Moçambique. Aprendemos a conhecê-los. Eram só "camaradas", nunca foram nossos irmãos.
O Povo poderá escolher. Por cada cabeça um voto. A pensar cada um como quiser. O mundo ficará a saber o que queriam os moçambicanos.
Neste livro contei uma história triste. Espero poder escrever outro a contar coisas diferentes.
Haverei de o fazer nesta terra em que quero viver e onde espero, um dia, vir a morrer.
Entretanto, a luta continua... E construiremos o Moçambique Novo (ob. cit., pp. 403-416).
sábado, 2 de outubro de 2010
Moçambique, terra queimada (xii)
Escrito por Jorge Pereira Jardim
A independência processou-se sem brilho nas cerimónias e sem autêntico entusiasmo popular no país. Tudo se circunscreveu aos actos oficiais e à organizada concentração popular no estádio que não alcançou as dimensões e a vibração de acto celebrados sob o regime colonial. Fez-se notar a ausência dos chefes de estado que mais haviam apoiado a "Frelimo" na sua luta e o Malawi, ostensivamente, nem sequer foi convidado.
Em contrapartida, estava presente, em lugar de destaque, o Dr. Álvaro Cunhal, na sua qualidade de secretário geral do partido comunista português. Isso foi devido à insistência de Marcelino dos Santos e tinha significado muito especial, uma vez que não constitui segredo a estreita ligação do Dr. Cunhal com Moscovo. Ninguém se esquece que foi um dos raros chefes comunistas ocidentais a apoiar a brutal intervenção que esmagou a rebelião de Praga.
Aos chineses não passou despercebido o que representava esta singular deferência PARA com o chefe comunista português. As dúvidas com que pudessem ficar desapareceriam ao ouvirem os discursos proferidos ou ao lerem os textos programáticos que foram sendo publicados.
Quando a nova (e feia) bandeira da República Popular de Moçambique foi içada no mastro da soberania, passava a União Soviética a dispor de mais um satélite.
A independência, tão duramente conquistada pelos nacionalistas moçambicanos, fora roubada à nascença.
A "Constitução" do novo estado é, do primeiro ao último artigo, um perfeito modelo de marxismo-soviético. Na mais pura linha das democracias-populares, o Comité Central da "Frelimo" (auto-designado como suprema autoridade da nação) assim o decidiu e reservando para si todos os poderes.
Sem qualquer esboço de consulta ao povo, uma minoria impôs a sua vontade a nove milhões de pessoas. Com total despudor nem se deram ao incómodo de praticar arremedo de legitimação democrática.
Razão tivera eu nas minhas apreensões ao ler o "acordo Samora Machel-Melo Antunes". O que aconteceu estava lá previsto ou, pelo menos, tinha-se deixado o caminho aberto para isso.
Foi este processo neo-colonialista que o primeiro-ministro português, presente nas cerimónias, classificou, emocionadamente como honrosa libertação de um povo. Não é estranhável que nesse pendor se tenha rebaaixado, servilmente, a pedir perdão para um passado em que abundavam razões de orgulho para qualquer português.
Tinha de ser Vasco Gonçalves a fazê-lo. Assim traía, mais uma vez, o "Programa do MFA" a cuja comissão directora presidira quando foi elaborado.
Desonrou a farda que, sem convicção, vestira.
Insultou a memória dos que, com a mesma farda, tinham caído para sempre e os tantos outros que sofreram na carne as mutilações de guerra. Paradoxalmente, haviam de vir de Samora Machel as palavras de apreço pelos que tinham sabido bater-se e de desprezo merecido pelos covardes que o não fizeram.
O guerrilheiro corrigiu o "general".
Ainda tinha lampejos dos tempos em que fora combatente. Iriam, porém, desaparecendo com a doutrinação que o cercava e o converteu, de soldado, em moleque dos novos senhores.
Na tal "Constituição" ainda se previa uma assembleia representativa, cuja escolha se acautelava para que o povo não pudesse intervir. Nem essa foi posta em funcionamento até hoje, com quase um ano volvido sobre a falsa independência. A única explicação viável é a de saberem que, mesmo no restrito campo dos dirigentes, o descontentamento alastra correndo paralelo com a frustração.
A perseguição a tudo quanto pudesse representar capacidade de pensar e, eventualmente, de discordar, passou a ser feroz. Nesse procedimento decapitador de um país não houve qualquer discriminação racial. Todos foram igualmente abrangidos.
As nacionalizações começaram exactamente pelas profissões liberais e com esse propósito. Médicos, advogados, engenheiros e professores saíram do país às centenas, deixando o vazio desejado e de que a população foi a grande vítima.
As prisões arbitrárias sucederam-se e nos campos de trabalho os detidos são tratados com requintes vexatórios e de brutalidade. O transporte de muitos desses milhares de infelizes faz-se em camiões de gado (e com tal indicação inscrita no exterior das viaturas) para impedir a identificação por algum curioso inconveniente. Mas aconteceu que um desses camiões teve de ser aberto (e sabe-se onde tal aconteceu) quando uma mulher branca deu à luz inesperadamente e soltou os normais gritos da maternidade que os guardas não conseguiram calar. Viu-se então, de que "gado" se tratava e houve organismos internacionais que do caso tomaram conhecimento. O escândalo foi abafado.
Poucos detalhes desta actuação policial, destinada a espalhar o terror e forçar a saída dos indesejáveis "reaccionários", têm sido divulgados pela imprensa, apesar de não faltarem (em Portugal e nos países limítrofes de Moçambique) testemunhos que poderiam ser usados. Os moçambicanos e portugueses continuam a sair do país, aos milhares, por todas as formas que conseguem. Alguns houve que até foram perseguidos, já dentro do território sul-africano, por milicianos armados que procuravam interceptá-los. Dezassete dos perseguidores foram presos pela polícia da República da África do Sul.
Os aviões da TAP e das outras companhias aéreas enchem-se com fugitivos em Johannesburg, Salisbúria, Blantyre e, até, Lusaka. Quem tiver dúvidas pode informar-se junto do pessoal do aeroporto de Lisboa e dos tripulantes da TAP que têm realizado esses voos. Não faltam histórias dramáticas para conhecer.
Enquanto que os excessos da "PIDE" ocupavam páginas inteiras dos jornais, raros são aqueles que manifestam interesse pelas incomparáveis monstruosidades cometidas pela "SNASP" ("Serviço Nacional de Segurança Popular"). Esta "SNASP" é responsável unicamente perante o presidente Samora Machel, conforme se prescreve no artigo 9.º da lei que promoveu a sua constitução. (...)
Também sem qualquer discriminação, Samora Machel desencadeou ofensiva contra todas as confissões religiosas. Nenhuma parece ter escapado.
Em insulto sem precedentes o ditador moçambicano entrou na mesquita sagrada da Ilha de Moçambique, sem se descalçar. Humilhou os "che", perante muitos fiéis maometanos congregados para receber o novo presidente. Não perdoava que os devotos de Meca (que somam ao redor de três milhões de crentes em Moçambique) se recusassem a aderir às doutrinas marxistas de que se convertera em arauto.
O contraste com a tolerância portuguesa ficou patente para toda essa gente. Recordam os tempos em que o governador-geral (Baltazar Rebello de Sousa) participava publicamente nas suas orações e a eles se dirigia, com respeito ecuménico, durante as solenidades que decorriam das prescrições do Profeta.
Os cristãos não-romanos tiveram igual sorte.
Leia-se o jornal sueco "Expressen" que, pela pena de Eric Sjoequist, denuncia a perseguição sofrida. A este se juntou o médico-missionário escandinavo, Dr. Koorsning, para descrever como milicianos invadiram os templos, as escolas e os hospitais e obrigaram a tudo abandonarem, sob a ameaça das armas. Os missionários estrangeiros, que tantas vezes tinham tomado a defesa da "Frelimo", foram acusados de serem agentes do imperialismo e de entravarem a marcha da revolução.
Creio, no entanto, que a seita religiosa que directamente mais sofreu foi a das "testemunhas de Jehovah". Dezenas de milhar (as melhores estimativas cifram-nos em 400 000) tinham procurado refúgio em Moçambique depois de serem perseguidos nos territórios vizinhos, especialmente no Malawi, por se recusarem a participar em qualquer actividade política. Percorri muitos desses campos de refugiados, estabelecidos pelas autoridades portugueses, em laboriosos trabalho de identificação (como cônsul do Malawi) para impedir que criminosos comuns com elas se misturassem, beneficiando da protecção que lhes era concedida em base humanitária.
Não tive quaisquer dificuldades. Encontrei sempre a melhor colaboração dos portugueses e dos refugiados. Entre estes encontravam-se médicos, engenheiros, advogados e abastados comerciantes.
O Malawi, mesmo não reconhecendo a seita, apreciava o filantrópico procedimento português e colaborou nas facilidades solicitadas para a saída de famílias ou bens, enquanto que o seu governo partilhava nos encargos com o sustento dessa gente.
Com o advento de Samora Moisés Machel tudo foi revirado repentinamente. E sabia-se que os guerrilheiros da "Frelimo" haviam utilizado os campos de refugiados para neles se abrigarem ao serem perseguidos pelas tropas portuguesas. Tinha acontecido isso na Angónia, em Milange e em Nova Freixo.
À ponta da baioneta os desgraçados foram obrigados a cruzar a fronteira para serem entregues às autoridades vizinhas. Os que tentaram escapar-se para permanecer em Moçambique foram tratados com incrível violência. Recebi cartas de membros da seita ccom quem tinha feito amizade, relatando as mortes, as feridas e fracturas graves ou os abusos sexuais. Calcula-se que mais de 3 000 pessoas foram friamente eliminadas. O próprio governo do Malawi, que os perseguira, apiedou-se deles e ofereceu-lhes abrigo contra tais excessos.
Mesmo assim, mais de dez mil "testemunhas de Jehovah" encontram-se hoje, em condições sub-humanas, em campos de trabalho nos distritos da Angónia e de Milange.
A Igreja Católica também não se eximiu à perseguição.
Em documento circulado pelo partido, foi acusada de actuação contra-revolucionária que procura obstaculizar a marcha da democracia-popular. Referiu-se a necessidade de "separar do Vaticano a Igreja de Moçambique" e (até mesmo!) de alterar a liturgia e as orações.
O Bispo de Nampula, um dos mais activos frelimistas do período colonial, foi restringido à zona do seu paço e notificado, por um cipaio, da decisão das autoridades de não lhe consentirem que pregasse na catedral.
Os bispos moçambicanos que sempre encontravam fórmulas, ainda que vagas, de criticar as autoridades portuguesas nos seus comunicados públicos e de as afrontar nos relatórios para Roma parecem remetidos a silêncio envergonhado.
O que terá acontecido aos missionários espanhóis tão largos no falar em defesa do seu povo cristão? Que é feito da voz de D. Eurico Noronha (respeitado Bispo de Vila Cabral e depois transferido para Sá da Bandeira) que se ofereceu para advogado dos padres-marxistas do Macuti, conforme carta que me escreveu?
Porque se calou, também, a Igreja Católica?
Impressiona a forma como desapareceu a coragem ao eminente Núncio Apostólico em Lisboa que tão presto era em denunciar as prepotências portuguesas.
Igualmente o Padre Hastings, denunciador dos massacres do Wiryamu, cala-se quando hoje se cometem verdadeiros e comprovados genocídios em Moçambique, que excedem tudo o que de imaginoso sobre as atrocidades portuguesas relatou em plena primeira página do respeitável "The Times" de Londres.
Nem o Bispo do Porto, tão fértil no apoio às acusações contra a guerra colonial, tem hoje uma palavra de caridade para as centenas de milhares de cristãos que penam em Moçambique uma das mais violentas perseguições religiosas que os tempos modernos conheceram.
Onde estão as cartas pastorais e as homilias versando o tema "Paz e Justiça"?
Há em tudo isto um silêncio cúmplice.
Ou há uma vergonhosa falta de coragem.
Como excepção confortadora pode apontar-se a figura admirável do Arcebispo de Braga, Primaz das Espanhas, que se ergue com personalidade ímpar dizendo as coisas pelos seus nomes. Mesmo depois dos vexames sofridos na sua dignidade de homem e de sacerdote impecável que até sabe perdoar.
Com a premeditada criação do ambiente para a fuga de todos os valores humanos e a instauração do terror que se alarga a todos os sectores da população, acontece que a economia moçambicana se encontra nas vizinhanças do colapso.
Estima-se que mais de duzentas mil pessoas abandonaram o país e cerca de quarenta mil se encontram nas prisões ou campos de trabalho. Se o governo moçambicano desmentir estas afirmações, desafi-o a consentir a livre entrada e circulação no país de uma comissão internacional à qual estarei pronto a fornecer os dados orientadores necessários para a verdade poder ser apurada.
Acresce que os atingidos, pela fuga ou pelo internamento, representavam o extracto mais válido nos diversos sectores produtivos.
Assim, não causa espanto que o rendimento industrial tenha caído em cerca de 70%, com total estagnação dos novos investimentos. Estas indicações podem pecar por optimismo quando se referem a um sector que era imperioso dinamizar.
Na actividade agrícola, afectada em muitas regiões por condições climáticas desfavoráveis, prevê-se que haja zonas onde no corrente ano a quebra de produtividade alcance os 75%.
Estes índices alarmantes parecem todavia mais favoráveis que a realidade quando se comparam com outros números já publicados. Assim, só na região de Manica e Sofala (distritos da Beira e do Chimoio) a produção de batata caiu de 15 000 toneladas em 1974 para 3 000 toneladas em 1975. Nos citrinos desceu-se de 270 000 caixas de laranjas para 11 000 no mesmo período. No milho, sempre na mesma base de comparação, tombou-se de 20 000 toneladas para 8 000 toneladas.
Já não se trata de ter produtos para exportar mas, apenas, de ter alimentação para as populações. A partir deJunho a fome apresenta-se como ameaça para todos. Há cidades onde o pão desapareceu há muito e onde a carne é luxo só acessível aos dignatários do partido.
O desemprego alcança nível nunca anteriormente conhecido. As aldeias começam a conhecer o afluxo dos que regressam desiludidos e esfomeados dos centros urbanos onde não conseguem encontrar ocupação.
Com a carência de pessoal qualificado, os portos e os caminhos de ferro estão reduzidos a movimentar apenas uma quarta parte da sua capacidade anterior.
As rebeliões começam a surgir em vários pontos do território, como as que em Dezembro se registaram em Lourenço Marques e forçaram Samora Machel a ocultar-se, durante dias, em parte incerta.
Como invariavelmente acontece nestas circunstâncias, a minoria dominadora tinha de inventar uma "guerra de conveniência".
Samora Machel deu o primeiro passo enviando algumas unidades para Angola, para combaterem ao lado dos "camaradas" do MPLA. Sabia quanto isso seria desagradável ao Dr. Kaunda (a quem tantos favores ficou a dever), mas tinha de cumprir as ordens soviéticas. Sobretudo, porém, procurava ver-se livre de soldados cuja atitude receava.
Mandou moçambicanos morrerem em Angola por motivos que nada tinham que ver com a causa de Moçambique, embora pudessem ser importantes para a sua segurança e interesses pessoais.
O segundo passo tinha de seguir-se com a "guerra de conveniência" contra a Rodésia.
O bloqueio que determinou não representava a punhalada mortal que quis fazer acreditar haver desferido. Como os portos e caminhos de ferro estavam já limitados à reduzida capacidade que referi (e nem tudo se dirigia à Rodésia) aconteceu que o regime de Salisbúria sofreu muito menos do que se poderia pensar. Até já tinha activado outras vias alternativas para compensar a ineficiência moçambicana.
Assim, esta outra "guerra de conveniência" converteu-se num enorme "bluff" que permitia a Samora Machel aliviar o tráfego externo, para atender às mais prementes necessidades de transporte no país e buscar ajuda internacional para cobrir os invocados prejuízos que, da aplicação das ineficazes sanções, afirmava resultarem.
Será muito duvidoso que alcance o auxílio internacional pretendido (em termos de compensar o colapso económico em que, por outras causas, se encontra) apesar da inteligente argumentação que Chissano utilizou em New York.
Uma coisa é obter votações favoráveis no Conselho de Segurança, afirmando intenções e receber mensagens de simpatia de certos governos. Outra coisa é recolher o dinheiro quando chegar a hora de fazer contas e justificar o pedido. Os governos ocidentais não têm motivo para subsidiar um satélite soviético. Os árabes não se devem inclinar em auxílios generosos a quem persegue milhões de maometanos. Do oriente veremos o que lhe enviam. Talvez que mais armas e menos pão...
Com o desaparecimento do cimento agregador que os sectores mais cultos representavam e com a destruição das estruturas administrativas voltaram as populações à condição de terem de se refugiar na vida tribal. A perseguição religiosa agrava essa tendência.
Com isso se reacende o tribalismo e dilui-se o frágil sentimento de unidade nacional que se ia erguendo.
Tendo de viver cada vez mais sobre si mesmos e recebendo cada vez menos da comunidade nacional, os povos reforçam instintivamente as suas estruturas tradicionais.
Não é compensável esse fenómeno desagregador pela eventual assistência de técnicos importados (e que por isso não dispõem de comunicabilidade) ou pela pressão dos grupos dinamizadores que parecem apostados a copiar os maus métodos da acção psico-social do regime anterior. Esses grupos, na generalidade, têm falhado rotundamente e os comícios que organizam, tiveram de passar a ser feitos em recintos fechados ou, de dia, em espaços abertos fiscalizados. Tais procedimentos resultaram, de, sem essas precauções, a assistência arrebanhada nas aldeias se escapar na sombra da noite, ou pelas portas entreabertas, ficando os doutrinadores limitados, ao cabo de algum tempo, à presença das autoridades ou dos sentados nas filas mais em evidência.
O incentivo dado ao tribalismo é, assim, consequência da acção exercida pela minoria marxista da "Frelimo", completamente desenraízada das realidades da vida rural. Essa engloba mais de sete milhões de moçambicanos que esses elitistas (como Marcelino dos Santos) são incapazes de compreender porque nunca com eles conviveram e nem sequer a alguma tribo pertencem. Já recordei que a maior parte dos intelectuais do partido nem negros são.
Enquanto que, por exemplo, o Dr. Banda e o Dr. Kaunda souberam vencer a barreira da cultura para se apoiarem no povo, por sobre as divisões tribais, acontece que Samora Machel, querendo exibir cultura assimilada bruscamente, perdeu a função agregadora nacional que poderia ter realizado. Ter-lhe-ia bastado seguir a corrente nacionalista da "Frelimo" em vez de se deixar arrastar pela minoria intelectual marxista que o deslumbra e domina.
Porque fez a opção errada já teve de afirmar publicamente que "os moçambicanos são um povo de reaccionários". Apenas com isto quer dizer que são um povo que não o segue.
É impossível governar, duravelmente, contra a vontade dos povos.
Se o tribalismo é um fenómeno contrário à construção da unidade nacional, não pode deixar de reconhecer-se que constitui arma terrível contra a opressão que se queira impor às gentes.
Já foi defesa quase indomável no período das guerras de pacificação. Volta a sê-lo quando novo colonialismo lhes bate à porta.
Os mais irredentistas (os macondes) fizeram-no sentir ao assaltarem um campo de trabalho, libertando os presos e massacrando a guarnição que não conseguiu fugir a tempo. Os pacíficos macuas (que são terríveis quando chegam ao limite da sua tradicional resignação) ocuparam povoações em que, como suprema afronta, queimaram a bandeira da "Frelimo" e hastearam a portuguesa. No território dos ajauas, não creio que Samora Machel se atrevesse a presidir a uma banja da população; são teimosos, falam pouco e não aceitam inovações que não entendam. Nas regiões nyanjas, o grau de cultura é muito elevado e por isso não podem digerir a luta de classes que Karl Marx prognosticou quando já suplantaram, tribalmente, esse problema há muito tempo. Os orgulhosos zulus mantêm a tradição aristocrática de Gungunhana que volta a reaparecer no norte, entre os seus descendentes angonis que não toleram ordens de estranhos na sua terra.
Se continuasse a citar reacções tribais, teria de escrever um outro livro, falando apenas daqueles com quem convivi intimamente durante mais de vinte anos em que gastei no mato, a aprender, tempo apaixonante da minha vida.
Apenas procurei citar exemplos para que se possa entender a gravidade e a importância do caso tribalista em Moçambique. Não cabe no esquema doutrinário de Karl Marx. É mais assimilável à dignidade da diferenciação nos árabes que Lawrence nos deixou descrita.
Samora Machel (e o elitista Marcelino dos Santos) ganhariam mais em estudar Lawrence do que em tentarem assimilar Marx.
Com os árabes há muito que aprender. Até na capacidade de luta que evidenciaram para alcançarem a vitória que se avizinha, depois de enganados e traídos pelas grandes potências que julgavam poder fazer geometria sobre terras que são a sua pátria.
Depois, têm aquele aforismo terrível que recomenda sentar-se à porta da tenda o tempo necessário para ver passar o enterro do inimigo.
Com o sangue árabe que me honro de ter nas veias não me esqueci desse conselho ditado pela sabedoria. (...)
Para muitas pessoas a grande incógnita está na possível intervenção de cubanos e russos em Moçambique. Têm naturalmente presente o que se passou em Angola.
Mas os dois casos não são assimiláveis, pelo menos para este efeito.
Não creio que haja risco de assistirmos a agressão semelhante.
Explico porquê.
Em Angola travava-se uma guerra quase do tipo clássico, comparável à que se registou no Vietnam. Para a semelhança ser mais completa, nem faltou o recuo dos americanos, abandonando aqueles que haviam encorajado. Com a experiência, meditada, do passado recente, nunca esperei outra coisa. Ao menos não tive as desilusões que outros, mais ingénuos, sofreram.
Em Moçambique nunca haverá uma "vietnamização". O que pode haver, a partir do tribalismo exarcebado, é uma "congolização" com mais tribos e com maior dispersão no terreno onde as vias de comunicação, em consequência da própria geografia, se tornam extremamente difíceis.
Contra este tipo de revolta, que cabe nas previsões mais realistas, nem os pesados tanques, nem os "orgãos de Staline", nem os mísseis teleguiados e nem a infantaria cubana podem ter remota esperança de êxito.
Só podem ser úteis para prevenir uma revolta por parte da única força militar organizada que existe: a própria "Frelimo". Se os chefes dos combatentes moçambicanos consentissem tal intromissão, estariam a condenar-se a si próprios. Nem a pretexto de se lhes consentir a passagem para agredirem a Rodésia, creio que embarquem em tal aventura. Seriam dominados totalmente e passariam a subalternos soviéticos.
Os comandantes da "Frelimo" (que foram os que se bateram no mato durante dez anos) não podem esquecer o mandato nacionalista dos seus mortos. Não podem desprezar Magaya e os seus homens, não podem ver-se humilhados perante os aguerridos macondes que conduziram e que, além de terem lutado no seu planalto, vieram a ser a flecha audaciosa que se infiltrou em Tete.
A presença militar de cubanos e russos seria o cativeiro sem esperança dos soldados da "Frelimo". Não creio que o permitam e ainda têm força para impedir tal decisão.
A guerra tribal seria, então, inevitável. A unidade de Moçambique estaria irremediavelmente perdida. Nem o próprio Samora Machel se atreveria a dar tal passo.
Olhando os factores externos não se pode ignorar as possibilidades da reacção chinesa.
Os chineses nunca tentaram, ao contrário dos soviéticos, realizar uma penetração política. Quanto muito fizeram divulgação cultural. Não buscaram conquistar adeptos de novo imperialismo. Cuidaram mais de fazer amigos. Por esta via exercem a sua influência. Foram eles que, com a sua persistente capacidade de organização, permitiram à "Frelimo" ultrapassar as fases mais críticas e resistir até lhes ser proporcionada a vitória. Os militares da "Frelimo" sabem que foi assim.
Será, no entanto, compreensível que os chineses, depois dessa participação activa no que era a luta de libertação de Moçambique, não estejam dispostos a assistir impassíveis ao novo colonialismo soviético já por demais evidente e que se tornaria gritante com o hipotético desembarque de forças cubanas ou russas.
Além de um acto de desprestígio para a China Popular, isso seria uma provocação contra a sua influência cultural e contra a libertação autêntica dos territórios em que se envolveu tão profundamente. Há que não esquecer que o "TANZAM", ligando a Zâmbia à Tanzânia foi produto do esforço e do financiamento chinês. Na altura pareceu que visava apenas libertar a Zâmbia do risco da asfixia por parte dos portugueses mas, vistas bem as coisas, pode acontecer que os chineses tenham projectado a sua visão a mais longe. Hoje pode converter-se em antídoto contra eventual manobra imperialista soviética.
Acontece, por outro lado, que Moscovo teme Peking por conhecer a sua capacidade de reacção ao longo de uma extensa fronteira comum em que nenhuma vantagem está do lado russo. Os chineses são os únicos que não carecem de recorrer à ameaça da bomba atómica para dissuadir os soviéticos. São também aqueles contra quem os soviéticos nunca se atreveriam a usá-la.
Não deixam de ter presente o realista aviso de Mao-Tse-Tung: "se houvesse uma guerra atómica, o último sobrevivente sobre a terra seria certamente chinês". Mao-Tse-Tung, até hoje, não cometeu um único erro de previsão nos seus dizeres.
A China Popular não toleraria um desembarque cubano-russo em Moçambique. As advertências de Peking têm mais peso do que as de Washington. Os chineses, para reagirem, não têm de se envolver nos meandros democráticos do Capitólio. Os russos sabem-no e o primeiro aviso parece já haver sido dado num oportuno incidente de fronteira noticiado pelos jornais.
Por todos os factores anunciados, em que o último não é certamente o menos importante, não creio na intervenção militar soviética em Moçambique.
Atrevo-me a fazer este vaticínio.
É certo que armamento ligeiro abundante tem estado a ser desembarcado em Nacala e a ser dali transportado pelas "Linhas Aéreas de Moçambique" para diferentes portos do território. Destina-se a armar as guerrilhas rodesianas e a reforçar o equipamento militar da "Frelimo".
Até aí podem chegar os soviéticos.
Samora Machel e os seus conselheiros fariam bem em pensar contra quem podem ser disparadas essas armas.
Enquanto tudo isto se passa e Moçambique sofre a escravidão imposta por uma ditadura odiosa, o mundo parece não se dar conta da importância e da gravidade de quanto ali acontece.
Já o mencionei anteriormente, mas julgo oportuno voltar a referi-lo neste comentário final.
O caso de Angola, pela espectacularidade dramática que o rodeou, fez com que mais gente pensasse nele. Não o conheço com a profundidade de informação de que disponho sobre a tragédia que Moçambique atravessa.
Não quero fazer comparações porque para a dor não existe padrão de medida.
O que acontece é que sobre Moçambique quase se abateu uma muralha de silêncio enquanto ali se passa um dos dramas da descolonização portuguesa.
Não deixo de ser sensível ao sofrimento das gentes da Guiné, ao terrível e irresponsável abandono de Timor, aos horrores que tombaram sobre Angola.
No julgamento do processo da descolonização não pode ficar de fora a destruição da Pátria Portuguesa, abalada criminosamente da sua possibilidade de sobrevivência e afastada talvez para sempre da posição que lhe pertencia no mundo.
Creio, com profundidade de fé, que todos os autênticos nacionalistas dos vários quadrantes onde chegara a presença lusitana, preservávamos como ponto de honrosa convergência a grandeza de Portugal a que nos sentíamos ligados pelo sangue ali amorosamente misturado, pela fusão de culturas promovida com desvelo e pelos rasgados horizontes que nos prometia o sabermos que seríamos, em breve, mais de duzentos milhões a venerar o vínculo abençoado que nos reunia.
Queríamos ter casa própria.
Mas também queríamos que nela coubessem os irmãos que houvessem construído a sua, como esse portentoso Brasil que era para nós exemplo e farol de guia.
A possível arrogância apaixonada com que nos sentíamos moçambicanos, e pretendíamos poder sê-lo, nada continha de ofensivo para Portugal.
Talvez que mesmo, nesse nacionalismo africano, afervorasse o nosso amor pela Pátria-Mãe de todos nós.
Os meus filhos e os meus netos de qualquer cor nunca esqueceriam os pais ou os avós.
Ambicionávamos que os que não tivessem os mesmos laços se sangue sentissem como eles sentiriam, uma vez que eles sentiriam como eles.
Esse esteve para ser o milagre português.
Só pretendi, neste livro, provar porque assim não foi.
A descolonização de Moçambique, país promissor convertido em terra queimada, não foi o único caso e nem terá porventura, sido o mais trágico.
Mas foi o problema que eu vivi. Aquele que intimamente conheci. E que mais procurei, por isso mesmo, salvar da queimada que pressentia avizinhar-se.
Assim me devotei a escrever tantas e tão dolorosas páginas sobre o drama que testemunhei.
Bem desejaria que outros o fizessem sobre o que experiências diferentes possam oferecer.
Assim ergueríamos o processo de descolonização.
E os homens responsáveis por ela haveriam de enfrentar o tribunal que um dia os julgará, sem apelo diante da História.
Enquanto o tribunal de Deus, em que creio, não lhes toma contas dos actos cometidos (ob. cit., pp. 383-399). (...)
Continua
Kremlin (Moscovo). |
Novo satélite soviético
A independência processou-se sem brilho nas cerimónias e sem autêntico entusiasmo popular no país. Tudo se circunscreveu aos actos oficiais e à organizada concentração popular no estádio que não alcançou as dimensões e a vibração de acto celebrados sob o regime colonial. Fez-se notar a ausência dos chefes de estado que mais haviam apoiado a "Frelimo" na sua luta e o Malawi, ostensivamente, nem sequer foi convidado.
Em contrapartida, estava presente, em lugar de destaque, o Dr. Álvaro Cunhal, na sua qualidade de secretário geral do partido comunista português. Isso foi devido à insistência de Marcelino dos Santos e tinha significado muito especial, uma vez que não constitui segredo a estreita ligação do Dr. Cunhal com Moscovo. Ninguém se esquece que foi um dos raros chefes comunistas ocidentais a apoiar a brutal intervenção que esmagou a rebelião de Praga.
Aos chineses não passou despercebido o que representava esta singular deferência PARA com o chefe comunista português. As dúvidas com que pudessem ficar desapareceriam ao ouvirem os discursos proferidos ou ao lerem os textos programáticos que foram sendo publicados.
Quando a nova (e feia) bandeira da República Popular de Moçambique foi içada no mastro da soberania, passava a União Soviética a dispor de mais um satélite.
A independência, tão duramente conquistada pelos nacionalistas moçambicanos, fora roubada à nascença.
Governo da minoria
A "Constitução" do novo estado é, do primeiro ao último artigo, um perfeito modelo de marxismo-soviético. Na mais pura linha das democracias-populares, o Comité Central da "Frelimo" (auto-designado como suprema autoridade da nação) assim o decidiu e reservando para si todos os poderes.
Ernesto Guevara com membros da direção da Frelimo numa reunião na Tanzânia, onde se pode reconhecer Samora Machel. |
Razão tivera eu nas minhas apreensões ao ler o "acordo Samora Machel-Melo Antunes". O que aconteceu estava lá previsto ou, pelo menos, tinha-se deixado o caminho aberto para isso.
Foi este processo neo-colonialista que o primeiro-ministro português, presente nas cerimónias, classificou, emocionadamente como honrosa libertação de um povo. Não é estranhável que nesse pendor se tenha rebaaixado, servilmente, a pedir perdão para um passado em que abundavam razões de orgulho para qualquer português.
Tinha de ser Vasco Gonçalves a fazê-lo. Assim traía, mais uma vez, o "Programa do MFA" a cuja comissão directora presidira quando foi elaborado.
Desonrou a farda que, sem convicção, vestira.
Insultou a memória dos que, com a mesma farda, tinham caído para sempre e os tantos outros que sofreram na carne as mutilações de guerra. Paradoxalmente, haviam de vir de Samora Machel as palavras de apreço pelos que tinham sabido bater-se e de desprezo merecido pelos covardes que o não fizeram.
O guerrilheiro corrigiu o "general".
Ainda tinha lampejos dos tempos em que fora combatente. Iriam, porém, desaparecendo com a doutrinação que o cercava e o converteu, de soldado, em moleque dos novos senhores.
Na tal "Constituição" ainda se previa uma assembleia representativa, cuja escolha se acautelava para que o povo não pudesse intervir. Nem essa foi posta em funcionamento até hoje, com quase um ano volvido sobre a falsa independência. A única explicação viável é a de saberem que, mesmo no restrito campo dos dirigentes, o descontentamento alastra correndo paralelo com a frustração.
Estado policial
A perseguição a tudo quanto pudesse representar capacidade de pensar e, eventualmente, de discordar, passou a ser feroz. Nesse procedimento decapitador de um país não houve qualquer discriminação racial. Todos foram igualmente abrangidos.
As nacionalizações começaram exactamente pelas profissões liberais e com esse propósito. Médicos, advogados, engenheiros e professores saíram do país às centenas, deixando o vazio desejado e de que a população foi a grande vítima.
Os Campos de Extermínio ou Campos da Vergonha (Moçambique). |
Poucos detalhes desta actuação policial, destinada a espalhar o terror e forçar a saída dos indesejáveis "reaccionários", têm sido divulgados pela imprensa, apesar de não faltarem (em Portugal e nos países limítrofes de Moçambique) testemunhos que poderiam ser usados. Os moçambicanos e portugueses continuam a sair do país, aos milhares, por todas as formas que conseguem. Alguns houve que até foram perseguidos, já dentro do território sul-africano, por milicianos armados que procuravam interceptá-los. Dezassete dos perseguidores foram presos pela polícia da República da África do Sul.
Os aviões da TAP e das outras companhias aéreas enchem-se com fugitivos em Johannesburg, Salisbúria, Blantyre e, até, Lusaka. Quem tiver dúvidas pode informar-se junto do pessoal do aeroporto de Lisboa e dos tripulantes da TAP que têm realizado esses voos. Não faltam histórias dramáticas para conhecer.
Enquanto que os excessos da "PIDE" ocupavam páginas inteiras dos jornais, raros são aqueles que manifestam interesse pelas incomparáveis monstruosidades cometidas pela "SNASP" ("Serviço Nacional de Segurança Popular"). Esta "SNASP" é responsável unicamente perante o presidente Samora Machel, conforme se prescreve no artigo 9.º da lei que promoveu a sua constitução. (...)
Perseguição religiosa
Também sem qualquer discriminação, Samora Machel desencadeou ofensiva contra todas as confissões religiosas. Nenhuma parece ter escapado.
Em insulto sem precedentes o ditador moçambicano entrou na mesquita sagrada da Ilha de Moçambique, sem se descalçar. Humilhou os "che", perante muitos fiéis maometanos congregados para receber o novo presidente. Não perdoava que os devotos de Meca (que somam ao redor de três milhões de crentes em Moçambique) se recusassem a aderir às doutrinas marxistas de que se convertera em arauto.
Mesquita Sagrada de Meca. |
Os cristãos não-romanos tiveram igual sorte.
Leia-se o jornal sueco "Expressen" que, pela pena de Eric Sjoequist, denuncia a perseguição sofrida. A este se juntou o médico-missionário escandinavo, Dr. Koorsning, para descrever como milicianos invadiram os templos, as escolas e os hospitais e obrigaram a tudo abandonarem, sob a ameaça das armas. Os missionários estrangeiros, que tantas vezes tinham tomado a defesa da "Frelimo", foram acusados de serem agentes do imperialismo e de entravarem a marcha da revolução.
Creio, no entanto, que a seita religiosa que directamente mais sofreu foi a das "testemunhas de Jehovah". Dezenas de milhar (as melhores estimativas cifram-nos em 400 000) tinham procurado refúgio em Moçambique depois de serem perseguidos nos territórios vizinhos, especialmente no Malawi, por se recusarem a participar em qualquer actividade política. Percorri muitos desses campos de refugiados, estabelecidos pelas autoridades portugueses, em laboriosos trabalho de identificação (como cônsul do Malawi) para impedir que criminosos comuns com elas se misturassem, beneficiando da protecção que lhes era concedida em base humanitária.
Não tive quaisquer dificuldades. Encontrei sempre a melhor colaboração dos portugueses e dos refugiados. Entre estes encontravam-se médicos, engenheiros, advogados e abastados comerciantes.
O Malawi, mesmo não reconhecendo a seita, apreciava o filantrópico procedimento português e colaborou nas facilidades solicitadas para a saída de famílias ou bens, enquanto que o seu governo partilhava nos encargos com o sustento dessa gente.
Com o advento de Samora Moisés Machel tudo foi revirado repentinamente. E sabia-se que os guerrilheiros da "Frelimo" haviam utilizado os campos de refugiados para neles se abrigarem ao serem perseguidos pelas tropas portuguesas. Tinha acontecido isso na Angónia, em Milange e em Nova Freixo.
À ponta da baioneta os desgraçados foram obrigados a cruzar a fronteira para serem entregues às autoridades vizinhas. Os que tentaram escapar-se para permanecer em Moçambique foram tratados com incrível violência. Recebi cartas de membros da seita ccom quem tinha feito amizade, relatando as mortes, as feridas e fracturas graves ou os abusos sexuais. Calcula-se que mais de 3 000 pessoas foram friamente eliminadas. O próprio governo do Malawi, que os perseguira, apiedou-se deles e ofereceu-lhes abrigo contra tais excessos.
Mesmo assim, mais de dez mil "testemunhas de Jehovah" encontram-se hoje, em condições sub-humanas, em campos de trabalho nos distritos da Angónia e de Milange.
Basílica de S. Pedro (Roma). |
Em documento circulado pelo partido, foi acusada de actuação contra-revolucionária que procura obstaculizar a marcha da democracia-popular. Referiu-se a necessidade de "separar do Vaticano a Igreja de Moçambique" e (até mesmo!) de alterar a liturgia e as orações.
O Bispo de Nampula, um dos mais activos frelimistas do período colonial, foi restringido à zona do seu paço e notificado, por um cipaio, da decisão das autoridades de não lhe consentirem que pregasse na catedral.
Os bispos moçambicanos que sempre encontravam fórmulas, ainda que vagas, de criticar as autoridades portuguesas nos seus comunicados públicos e de as afrontar nos relatórios para Roma parecem remetidos a silêncio envergonhado.
O que terá acontecido aos missionários espanhóis tão largos no falar em defesa do seu povo cristão? Que é feito da voz de D. Eurico Noronha (respeitado Bispo de Vila Cabral e depois transferido para Sá da Bandeira) que se ofereceu para advogado dos padres-marxistas do Macuti, conforme carta que me escreveu?
Porque se calou, também, a Igreja Católica?
Impressiona a forma como desapareceu a coragem ao eminente Núncio Apostólico em Lisboa que tão presto era em denunciar as prepotências portuguesas.
Igualmente o Padre Hastings, denunciador dos massacres do Wiryamu, cala-se quando hoje se cometem verdadeiros e comprovados genocídios em Moçambique, que excedem tudo o que de imaginoso sobre as atrocidades portuguesas relatou em plena primeira página do respeitável "The Times" de Londres.
D. António Ferreira Gomes (Bispo do Porto). |
Onde estão as cartas pastorais e as homilias versando o tema "Paz e Justiça"?
Há em tudo isto um silêncio cúmplice.
Ou há uma vergonhosa falta de coragem.
Como excepção confortadora pode apontar-se a figura admirável do Arcebispo de Braga, Primaz das Espanhas, que se ergue com personalidade ímpar dizendo as coisas pelos seus nomes. Mesmo depois dos vexames sofridos na sua dignidade de homem e de sacerdote impecável que até sabe perdoar.
Guerra de conveniência
Com a premeditada criação do ambiente para a fuga de todos os valores humanos e a instauração do terror que se alarga a todos os sectores da população, acontece que a economia moçambicana se encontra nas vizinhanças do colapso.
Estima-se que mais de duzentas mil pessoas abandonaram o país e cerca de quarenta mil se encontram nas prisões ou campos de trabalho. Se o governo moçambicano desmentir estas afirmações, desafi-o a consentir a livre entrada e circulação no país de uma comissão internacional à qual estarei pronto a fornecer os dados orientadores necessários para a verdade poder ser apurada.
Acresce que os atingidos, pela fuga ou pelo internamento, representavam o extracto mais válido nos diversos sectores produtivos.
Assim, não causa espanto que o rendimento industrial tenha caído em cerca de 70%, com total estagnação dos novos investimentos. Estas indicações podem pecar por optimismo quando se referem a um sector que era imperioso dinamizar.
Na actividade agrícola, afectada em muitas regiões por condições climáticas desfavoráveis, prevê-se que haja zonas onde no corrente ano a quebra de produtividade alcance os 75%.
Estes índices alarmantes parecem todavia mais favoráveis que a realidade quando se comparam com outros números já publicados. Assim, só na região de Manica e Sofala (distritos da Beira e do Chimoio) a produção de batata caiu de 15 000 toneladas em 1974 para 3 000 toneladas em 1975. Nos citrinos desceu-se de 270 000 caixas de laranjas para 11 000 no mesmo período. No milho, sempre na mesma base de comparação, tombou-se de 20 000 toneladas para 8 000 toneladas.
Já não se trata de ter produtos para exportar mas, apenas, de ter alimentação para as populações. A partir deJunho a fome apresenta-se como ameaça para todos. Há cidades onde o pão desapareceu há muito e onde a carne é luxo só acessível aos dignatários do partido.
O desemprego alcança nível nunca anteriormente conhecido. As aldeias começam a conhecer o afluxo dos que regressam desiludidos e esfomeados dos centros urbanos onde não conseguem encontrar ocupação.
Com a carência de pessoal qualificado, os portos e os caminhos de ferro estão reduzidos a movimentar apenas uma quarta parte da sua capacidade anterior.
As rebeliões começam a surgir em vários pontos do território, como as que em Dezembro se registaram em Lourenço Marques e forçaram Samora Machel a ocultar-se, durante dias, em parte incerta.
Como invariavelmente acontece nestas circunstâncias, a minoria dominadora tinha de inventar uma "guerra de conveniência".
Samora Machel deu o primeiro passo enviando algumas unidades para Angola, para combaterem ao lado dos "camaradas" do MPLA. Sabia quanto isso seria desagradável ao Dr. Kaunda (a quem tantos favores ficou a dever), mas tinha de cumprir as ordens soviéticas. Sobretudo, porém, procurava ver-se livre de soldados cuja atitude receava.
Mandou moçambicanos morrerem em Angola por motivos que nada tinham que ver com a causa de Moçambique, embora pudessem ser importantes para a sua segurança e interesses pessoais.
O segundo passo tinha de seguir-se com a "guerra de conveniência" contra a Rodésia.
O bloqueio que determinou não representava a punhalada mortal que quis fazer acreditar haver desferido. Como os portos e caminhos de ferro estavam já limitados à reduzida capacidade que referi (e nem tudo se dirigia à Rodésia) aconteceu que o regime de Salisbúria sofreu muito menos do que se poderia pensar. Até já tinha activado outras vias alternativas para compensar a ineficiência moçambicana.
Assim, esta outra "guerra de conveniência" converteu-se num enorme "bluff" que permitia a Samora Machel aliviar o tráfego externo, para atender às mais prementes necessidades de transporte no país e buscar ajuda internacional para cobrir os invocados prejuízos que, da aplicação das ineficazes sanções, afirmava resultarem.
Será muito duvidoso que alcance o auxílio internacional pretendido (em termos de compensar o colapso económico em que, por outras causas, se encontra) apesar da inteligente argumentação que Chissano utilizou em New York.
Uma coisa é obter votações favoráveis no Conselho de Segurança, afirmando intenções e receber mensagens de simpatia de certos governos. Outra coisa é recolher o dinheiro quando chegar a hora de fazer contas e justificar o pedido. Os governos ocidentais não têm motivo para subsidiar um satélite soviético. Os árabes não se devem inclinar em auxílios generosos a quem persegue milhões de maometanos. Do oriente veremos o que lhe enviam. Talvez que mais armas e menos pão...
(...) Reacende-se o tribalismo
Com o desaparecimento do cimento agregador que os sectores mais cultos representavam e com a destruição das estruturas administrativas voltaram as populações à condição de terem de se refugiar na vida tribal. A perseguição religiosa agrava essa tendência.
Com isso se reacende o tribalismo e dilui-se o frágil sentimento de unidade nacional que se ia erguendo.
Tendo de viver cada vez mais sobre si mesmos e recebendo cada vez menos da comunidade nacional, os povos reforçam instintivamente as suas estruturas tradicionais.
Não é compensável esse fenómeno desagregador pela eventual assistência de técnicos importados (e que por isso não dispõem de comunicabilidade) ou pela pressão dos grupos dinamizadores que parecem apostados a copiar os maus métodos da acção psico-social do regime anterior. Esses grupos, na generalidade, têm falhado rotundamente e os comícios que organizam, tiveram de passar a ser feitos em recintos fechados ou, de dia, em espaços abertos fiscalizados. Tais procedimentos resultaram, de, sem essas precauções, a assistência arrebanhada nas aldeias se escapar na sombra da noite, ou pelas portas entreabertas, ficando os doutrinadores limitados, ao cabo de algum tempo, à presença das autoridades ou dos sentados nas filas mais em evidência.
O incentivo dado ao tribalismo é, assim, consequência da acção exercida pela minoria marxista da "Frelimo", completamente desenraízada das realidades da vida rural. Essa engloba mais de sete milhões de moçambicanos que esses elitistas (como Marcelino dos Santos) são incapazes de compreender porque nunca com eles conviveram e nem sequer a alguma tribo pertencem. Já recordei que a maior parte dos intelectuais do partido nem negros são.
Enquanto que, por exemplo, o Dr. Banda e o Dr. Kaunda souberam vencer a barreira da cultura para se apoiarem no povo, por sobre as divisões tribais, acontece que Samora Machel, querendo exibir cultura assimilada bruscamente, perdeu a função agregadora nacional que poderia ter realizado. Ter-lhe-ia bastado seguir a corrente nacionalista da "Frelimo" em vez de se deixar arrastar pela minoria intelectual marxista que o deslumbra e domina.
Porque fez a opção errada já teve de afirmar publicamente que "os moçambicanos são um povo de reaccionários". Apenas com isto quer dizer que são um povo que não o segue.
É impossível governar, duravelmente, contra a vontade dos povos.
Se o tribalismo é um fenómeno contrário à construção da unidade nacional, não pode deixar de reconhecer-se que constitui arma terrível contra a opressão que se queira impor às gentes.
Já foi defesa quase indomável no período das guerras de pacificação. Volta a sê-lo quando novo colonialismo lhes bate à porta.
Karl Marx |
Os mais irredentistas (os macondes) fizeram-no sentir ao assaltarem um campo de trabalho, libertando os presos e massacrando a guarnição que não conseguiu fugir a tempo. Os pacíficos macuas (que são terríveis quando chegam ao limite da sua tradicional resignação) ocuparam povoações em que, como suprema afronta, queimaram a bandeira da "Frelimo" e hastearam a portuguesa. No território dos ajauas, não creio que Samora Machel se atrevesse a presidir a uma banja da população; são teimosos, falam pouco e não aceitam inovações que não entendam. Nas regiões nyanjas, o grau de cultura é muito elevado e por isso não podem digerir a luta de classes que Karl Marx prognosticou quando já suplantaram, tribalmente, esse problema há muito tempo. Os orgulhosos zulus mantêm a tradição aristocrática de Gungunhana que volta a reaparecer no norte, entre os seus descendentes angonis que não toleram ordens de estranhos na sua terra.
Se continuasse a citar reacções tribais, teria de escrever um outro livro, falando apenas daqueles com quem convivi intimamente durante mais de vinte anos em que gastei no mato, a aprender, tempo apaixonante da minha vida.
Apenas procurei citar exemplos para que se possa entender a gravidade e a importância do caso tribalista em Moçambique. Não cabe no esquema doutrinário de Karl Marx. É mais assimilável à dignidade da diferenciação nos árabes que Lawrence nos deixou descrita.
Samora Machel (e o elitista Marcelino dos Santos) ganhariam mais em estudar Lawrence do que em tentarem assimilar Marx.
Com os árabes há muito que aprender. Até na capacidade de luta que evidenciaram para alcançarem a vitória que se avizinha, depois de enganados e traídos pelas grandes potências que julgavam poder fazer geometria sobre terras que são a sua pátria.
Depois, têm aquele aforismo terrível que recomenda sentar-se à porta da tenda o tempo necessário para ver passar o enterro do inimigo.
Com o sangue árabe que me honro de ter nas veias não me esqueci desse conselho ditado pela sabedoria. (...)
Cubanos e russos
Helicóptero russo pilotado por cubanos, na Base 3 do Negage (Angola). |
Mas os dois casos não são assimiláveis, pelo menos para este efeito.
Não creio que haja risco de assistirmos a agressão semelhante.
Explico porquê.
Em Angola travava-se uma guerra quase do tipo clássico, comparável à que se registou no Vietnam. Para a semelhança ser mais completa, nem faltou o recuo dos americanos, abandonando aqueles que haviam encorajado. Com a experiência, meditada, do passado recente, nunca esperei outra coisa. Ao menos não tive as desilusões que outros, mais ingénuos, sofreram.
Em Moçambique nunca haverá uma "vietnamização". O que pode haver, a partir do tribalismo exarcebado, é uma "congolização" com mais tribos e com maior dispersão no terreno onde as vias de comunicação, em consequência da própria geografia, se tornam extremamente difíceis.
Contra este tipo de revolta, que cabe nas previsões mais realistas, nem os pesados tanques, nem os "orgãos de Staline", nem os mísseis teleguiados e nem a infantaria cubana podem ter remota esperança de êxito.
Só podem ser úteis para prevenir uma revolta por parte da única força militar organizada que existe: a própria "Frelimo". Se os chefes dos combatentes moçambicanos consentissem tal intromissão, estariam a condenar-se a si próprios. Nem a pretexto de se lhes consentir a passagem para agredirem a Rodésia, creio que embarquem em tal aventura. Seriam dominados totalmente e passariam a subalternos soviéticos.
Os comandantes da "Frelimo" (que foram os que se bateram no mato durante dez anos) não podem esquecer o mandato nacionalista dos seus mortos. Não podem desprezar Magaya e os seus homens, não podem ver-se humilhados perante os aguerridos macondes que conduziram e que, além de terem lutado no seu planalto, vieram a ser a flecha audaciosa que se infiltrou em Tete.
A presença militar de cubanos e russos seria o cativeiro sem esperança dos soldados da "Frelimo". Não creio que o permitam e ainda têm força para impedir tal decisão.
A guerra tribal seria, então, inevitável. A unidade de Moçambique estaria irremediavelmente perdida. Nem o próprio Samora Machel se atreveria a dar tal passo.
Olhando os factores externos não se pode ignorar as possibilidades da reacção chinesa.
Os chineses nunca tentaram, ao contrário dos soviéticos, realizar uma penetração política. Quanto muito fizeram divulgação cultural. Não buscaram conquistar adeptos de novo imperialismo. Cuidaram mais de fazer amigos. Por esta via exercem a sua influência. Foram eles que, com a sua persistente capacidade de organização, permitiram à "Frelimo" ultrapassar as fases mais críticas e resistir até lhes ser proporcionada a vitória. Os militares da "Frelimo" sabem que foi assim.
Será, no entanto, compreensível que os chineses, depois dessa participação activa no que era a luta de libertação de Moçambique, não estejam dispostos a assistir impassíveis ao novo colonialismo soviético já por demais evidente e que se tornaria gritante com o hipotético desembarque de forças cubanas ou russas.
Além de um acto de desprestígio para a China Popular, isso seria uma provocação contra a sua influência cultural e contra a libertação autêntica dos territórios em que se envolveu tão profundamente. Há que não esquecer que o "TANZAM", ligando a Zâmbia à Tanzânia foi produto do esforço e do financiamento chinês. Na altura pareceu que visava apenas libertar a Zâmbia do risco da asfixia por parte dos portugueses mas, vistas bem as coisas, pode acontecer que os chineses tenham projectado a sua visão a mais longe. Hoje pode converter-se em antídoto contra eventual manobra imperialista soviética.
A bomba atómica. |
Não deixam de ter presente o realista aviso de Mao-Tse-Tung: "se houvesse uma guerra atómica, o último sobrevivente sobre a terra seria certamente chinês". Mao-Tse-Tung, até hoje, não cometeu um único erro de previsão nos seus dizeres.
A China Popular não toleraria um desembarque cubano-russo em Moçambique. As advertências de Peking têm mais peso do que as de Washington. Os chineses, para reagirem, não têm de se envolver nos meandros democráticos do Capitólio. Os russos sabem-no e o primeiro aviso parece já haver sido dado num oportuno incidente de fronteira noticiado pelos jornais.
Por todos os factores anunciados, em que o último não é certamente o menos importante, não creio na intervenção militar soviética em Moçambique.
Atrevo-me a fazer este vaticínio.
É certo que armamento ligeiro abundante tem estado a ser desembarcado em Nacala e a ser dali transportado pelas "Linhas Aéreas de Moçambique" para diferentes portos do território. Destina-se a armar as guerrilhas rodesianas e a reforçar o equipamento militar da "Frelimo".
Até aí podem chegar os soviéticos.
Samora Machel e os seus conselheiros fariam bem em pensar contra quem podem ser disparadas essas armas.
Comentário
Enquanto tudo isto se passa e Moçambique sofre a escravidão imposta por uma ditadura odiosa, o mundo parece não se dar conta da importância e da gravidade de quanto ali acontece.
Já o mencionei anteriormente, mas julgo oportuno voltar a referi-lo neste comentário final.
O caso de Angola, pela espectacularidade dramática que o rodeou, fez com que mais gente pensasse nele. Não o conheço com a profundidade de informação de que disponho sobre a tragédia que Moçambique atravessa.
Não quero fazer comparações porque para a dor não existe padrão de medida.
O que acontece é que sobre Moçambique quase se abateu uma muralha de silêncio enquanto ali se passa um dos dramas da descolonização portuguesa.
Não deixo de ser sensível ao sofrimento das gentes da Guiné, ao terrível e irresponsável abandono de Timor, aos horrores que tombaram sobre Angola.
Agostinho Neto e Fidel Castro. |
Creio, com profundidade de fé, que todos os autênticos nacionalistas dos vários quadrantes onde chegara a presença lusitana, preservávamos como ponto de honrosa convergência a grandeza de Portugal a que nos sentíamos ligados pelo sangue ali amorosamente misturado, pela fusão de culturas promovida com desvelo e pelos rasgados horizontes que nos prometia o sabermos que seríamos, em breve, mais de duzentos milhões a venerar o vínculo abençoado que nos reunia.
Queríamos ter casa própria.
Mas também queríamos que nela coubessem os irmãos que houvessem construído a sua, como esse portentoso Brasil que era para nós exemplo e farol de guia.
A possível arrogância apaixonada com que nos sentíamos moçambicanos, e pretendíamos poder sê-lo, nada continha de ofensivo para Portugal.
Talvez que mesmo, nesse nacionalismo africano, afervorasse o nosso amor pela Pátria-Mãe de todos nós.
Os meus filhos e os meus netos de qualquer cor nunca esqueceriam os pais ou os avós.
Ambicionávamos que os que não tivessem os mesmos laços se sangue sentissem como eles sentiriam, uma vez que eles sentiriam como eles.
Esse esteve para ser o milagre português.
Só pretendi, neste livro, provar porque assim não foi.
A descolonização de Moçambique, país promissor convertido em terra queimada, não foi o único caso e nem terá porventura, sido o mais trágico.
Mas foi o problema que eu vivi. Aquele que intimamente conheci. E que mais procurei, por isso mesmo, salvar da queimada que pressentia avizinhar-se.
Assim me devotei a escrever tantas e tão dolorosas páginas sobre o drama que testemunhei.
Bem desejaria que outros o fizessem sobre o que experiências diferentes possam oferecer.
Assim ergueríamos o processo de descolonização.
E os homens responsáveis por ela haveriam de enfrentar o tribunal que um dia os julgará, sem apelo diante da História.
Enquanto o tribunal de Deus, em que creio, não lhes toma contas dos actos cometidos (ob. cit., pp. 383-399). (...)
Continua
quinta-feira, 30 de setembro de 2010
Moçambique, terra queimada (xi)
Escrito por Jorge Pereira Jardim
Com o título "Aqui Moçambique Livre" publicou Ricardo Saavedra um livro que merece a pena ser conhecido e meditado, pela imagem viva que oferece da generosa revolta de Moçambique, em Setembro de 1974. Foi editado em Johannesburg e bem merecia, se possível, aparecer nos livreiros portugueses.
Não irei repetir, portanto, o que foi relatado por testemunhas presenciais. Limito-me a referir os contactos que tive com esse "Movimento", em que não participei.
Na noite de 6 de Setembro, Gomes dos Santos telefonou-me de L.M., dando-me conta dos graves acontecimentos que ali se desenrolavam.
No Estádio da Matola reunira-se multidão excitada por palavras de ordem incendiárias, enquadrada pelos "democratas" e redigida por universitários extremistas. Aguardavam as declarações de Samora Machel que o Rádio Clube transmitiria de Lusaka. Perante a passividade das autoridades portugueses, que parecia haverem abdicado da soberania mesmo antes dos mandatários de Lisboa a haverem entregue, organizavam-se cortejos na cidade, desfraldando bandeiras da "Frelimo" em atitude mais provocativa do que jubilosa.
De súbito, uma carrinha parou no semáforo que fica na esquina junto ao café "Continental". Nela flutuava a bandeira frelimista mas, em ofensa inaceitável, arrastava no pavimento uma bandeira portuguesa já meio destroçada.
Foi esse o rastilho da explosão.
O "rebentar" de uma revolta nunca terá tido, porventura, representação mais realista.
Do desforço sobre a viatura e ocupantes, ao assalto aos jornais que mais se distinguiam pela propaganda anti-portuguesa, à destruição do restaurante da Associação Académica e ao incêndio da sede dos "democratas de Moçambique" tudo de passou vertiginosamente sob o impulso de nervos que não suportavam mais a tensão a que estavam submetidos.
Pouco depois anunciava-me explosão tremenda que abalara a cidade. O paiol de munições, no subúrbio de Benfica, tinha ido pelos ares. Nunca se soube quem a teria provocado.
Mantivemos contacto, até de madrugada, numa noite mal dormida.
A última informação que recebi, pelo telefone, era a de que a capital estava nas mãos do povo. Os manifestantes da Matola tinham-se escapulido. Nem havia rasto dos "democratas".
O povo, de todas as raças, tinha preenchido o vazio deixado pelas autoridades.
Gente anónima. Gente descontrolada. Gente generosa.
Surgira, espontaneamente, o "Movimento de Moçambique Livre".
Nada fora planeado e nada estava organizado.
Só semanas depois vim a saber, por pessoas identificadas e idóneas, que o acto provocador do arrastar da Bandeira Nacional (em pleno centro da cidade) fora premeditado e pago PARA se obter a reacção que convinha desencadear.
Isso foi confessado, a oficiais portugueses, pelo maltratado condutor da viatura. Tinham-lhe pago 20 mil escudos!
Recebera o dinheiro de um intermediário que nunca foi possível identificar com absoluta certeza. Por detrás dele, forças ocultas actuavam.
Notei a estranha semelhança com os acontecimentos da Beira, em Janeiro de 1973, também provocados na exploração de sentimentos generosos.
Mas desta vez ia ser mais sério.
Os provocadores não devem ter avaliado, correctamente, as forças que tinham desencadeado. (...)
De Blantyre, Pombeiro de Sousa insistia pelo meu regresso.
A permanência em Johannesburg poderia fazer crer que eu estava ligado à rebelião.
Mark Chona tinha-o contactado pelo telefone e, alarmado com o que acontecia, sugeria que eu fosse a Lusaka para usar a "Voz da Zâmbia" e dirigir um apelo aos moçambicanos. Recusei-me a fazê-lo. Lembrei as advertências que havia repetidamente formulado. Não estava disposto a responsabilizar-me por garantias que não tinha a certeza de serem respeitadas.
Encontrei-me, nessa altura, num dos momentos mais difícieis que em toda a minha vida tive de atravessar, perante a decisão que se me impunha.
Os pedidos para que entrasse em Moçambique e tomasse a chefia da rebelião eram dos mais insistentes, trazidos pelas vozes mais amigas. Era dramático, para mim, sentir essa confiança.
O aeroporto de Lourenço Marques estava nas mãos dos "rebeldes" (antigos páraquedistas que o manteriam até aos últimos cartuchos) e descer da Beira, também não representaria problema.
Tive de ponderar os deveres que sobre mim recaíam, exactamente para corresponder a uma confiança que não podia, levianamente, trair.
Sabia que a minha presença iria dar falsas esperanças a muitas pessoas. Sabia que, se entrasse em Moçambique, os meus fiéis companheiros do "plano de emergência" arrancariam sem hesitações. Os enfrentamentos seriam brutais e cresceria o número de vítimas. Sem a mínima possibilidade de vencer. As condições em que o movimento tinha sido desencadeado davam todas as vantagenss ao inimigo. Por isso o haviam provocado.
Se podia jogar a vida, não tinha o direito de sacrificar as vidas de outros.
Perdi, sem dúvida, a minha melhor oportunidade de morrer. Quis salvar a possibilidade de outros continuarem a viver.
Decidi-me voltar a Blantyre. Trazia os olhos rasos de lágrimas. Estava certo de que poucos compreenderiam o sacrifício que fiz.
Do Malawi, no dia 9, enviei mensagem para a Beira. Ofereci-me ao "MFA" para ali me deslocar e tentar um compromisso. Responderam-me que não o consideravam necessário.
Tentei contacto com Lusaka para obter da "Frelimo" uma atitude contemporizadora que lhe daria a máxima credibilidade entre os moçambicanos da "frente interna". Consegui ter Mark Chona ao telefone, mas a ligação cortou-se. Não sei, até hoje, se foi acidente técnico ou desligar deliberadamente. Nunca mais voltámos a conversar.
Escutando o RCM, soube da compreensível mentira de anunciarem ter sido cancelado o meu mandato de captura. Pensavam no meu regresso como última esperança. Ouvi os aplausos da multidão quando isso foi divulgado. O Gonçalo Mesquitela haveria de vir a dizer-me que tal ovação tinha levado todas as recordações semelhantes que conservara.
A verdade é que não os abandonei. Pensei muito mais nessa gente generosa do que em mim próprio.
Os meus deveres para com Moçambique, exigiam-me que assim procedesse.
Quando me chegaram as derradeiras mensagens de Gonçalo Mesquitela dizendo-me ser-lhes impossível continuarem a resistir e dando-me conta das selvajarias ateadas pelos "democratas" nos subúrbios de LM, recebia também informação da Beira anunciando que o movimento capitulara.
As minhas filhas, que na Beira continuavam, tinham sido conduzidas por militares para ponto seguro onde sempre permaneceram. Não esqueço essa atenção amiga, embora outros telefonemas me indicassem que as retinham como reféns. Não creio que assim tenha sido, até porque isso nada alteraria as minhas disposições se elas fossem diferentes do que foram.
Através do receptor (e sempre gravando) acompanhámos os últimos momentos daquele "Movimento" generoso, improvisado e antecipadamente vencido.
Depois foi o silvar das ambulâncias, os crimes friamente cometidos, os excessos dos populares embriagados e drogados, os incêndios e saques, as centenas de mortos e os apelos das autoridades impotentes.
Moçambique tinha tido a sua "primavera de Praga".
Não se podem condenar os homens do "Movimento de Moçambique Livre" mesmo quando se sabe que a sua actuação impulsiva serviu os desígnios do inimigo e comprometeu, por muito tempo, todas as demais hipóteses que poderiam existir.
Faltou-lhes a serena decisão de o terem podido transfomar em simbólico gesto de protesto (utilizando os emissores que ocuparam) sem forçarem mais longe a confrontação. Mas não pode esquecer-se que a população tinha sido provocada com acinte, quando já suportara meses de insultos e atingira o limite da tensão nervosa.
Isso evidencia e agrava o crime dos que tudo encaminharam para que tal tivesse de acontecer.
Provei, nas páginas deste livro, que tentei impedir que assim fosse.
Houve outros que me impediram de o conseguir.
Costa Gomes e Melo Antunes ficam, por isso, na bancada dos réus que a história julgará.
Espero que também os julguem os homens que viveram estes tempos de tragédia. (...)
O texto do acordo entre o Estado Português e a "Frelimo", assinado em Lusaka em 7 de Setembro de 1974, chegou-nos a Blantyre (enviado ainda por Mark Chona) antes de ser publicamente divulgado. Foi a última deferência que teve para connosco, cumprindo aquilo que havia prometido.
Lendo-o, com a atenção merecida, podem nele encontrar-se expressões e intenções coincidentes com o nosso "Programa de Lusaka", de 1973. Por mais voltas que os negociadores tenham dado, não conseguiram libertar-se de tal influência. Não me considero honrado por isso e acentuo que nenhum vínculo existe entre os dois documentos, excepto o local onde foram produzidos.
(...) Vale a pena fazer alguns curtos comentários.
Do lado português, o papel foi assinado por oito plenipotenciários, entre os quais três ministros do governo e um conselheiro de Estado. Pelo lado da "Frelimo", entendeu-se ser bastante a assinatura de Samora Machel.
A delegação portuguesa foi encabeçada pelo ministro Ernesto Augusto Melo Antunes.
Segundo os hábitos correntes, o documento deve ser denominado como o "acordo Samora Machel-Melo Antunes", sendo a ordem dos nomes resultantes de Samora Moisés Machel haver assinado no lado esquerdo, por deferência que lhe foi atribuída.
À assinatura do Maj. Melo Antunes seguem-se logo as assinaturas de dois outros ministros (Dr. Mário Soares e Dr. António de Almeida Santos) e, depois, a de um conselheiro de Estado (Victor M. Trigueiro Crespo).
A cuidadosa vacuidade dos compromissos não obrigava a "Frelimo" a coisa alguma e, de resto, no tempo de transição que se seguiu, parece que ninguém teve preocupações a tal respeito. O Estado Português é que ficava amarrado a obrigações claramente definidas.
Houve um curioso artigo do acordo (a cláusula 18) que, desde logo, me prendeu a atenção.
Nesse preceito dispunha-se que "O Estado Moçambicano independente exercerá, integralmente, a soberania plena e completa no plano interior e exterior, estabelecendo as instituições políticas e escolhendo livremente o regime político e social que considerar mais adequado aos interesses do Povo".
Como é normal que os estados independentes disponham de tais prerrogativas, poderia parecer redundância de advogado afirmá-las. Mas as coisas não se passavam por forma tão ingénua. Os factos vieram a comprová-lo.
Uma vez que o governo de Portugal tratava com a "Frelimo" a transferência "progressiva dos poderes que detém sobre o território", era óbvio que seria a "Frelimo" a personalizar o "Estado Moçambicano independente" e, portanto, a decidir (nos termos do citado artigo 18, do acordo Machel-Antunes) do estabelecimento das "instituições políticas e escolhendo livremente o regime político e social que considerar mais adequado aos interesses do seu Povo".
Com isto, a potência soberana (Portugal) lavava as mãos de qualquer intervenção no acautelamento dos interesses das gentes e da sua autodeterminação. Era exclusivamente a "Frelimo" a decidir (como veio a acontecer, provando o acerto da minha preocupada interpretação) sobre o regime que entendesse mais adequado.
Compulsando os anais da descolonização em toda a África, não encontrei caso semelhante de abandono.
Passavam-se os umbrais da "descolonização original" conduzida por declarados democratas, e logo dois deles juristas, que ficavam indiferentes ao sacrifício da expressão da vontade popular.
Como deixei anteriormente descrito, todo o encaminhamento descolonizador que diligenciámos definir, em mais de um ano de intensa actividade, apoiava-se na consulta popular sobre a definição das estruturas políticas.
Quando me lembro das horas que passei, com Kaunda e Mark Chona, a deitar contas ao tempo necessário para o recenseamento e a discutir a forma de o tornar representativo, acabo por me convencer que a minha formação democrática se situava, afinal, muito por diante do que no acordo Machel-Antunes se definia.
Nítido se apresentava que ambos se inclinavam para outras fórmulas democráticas pelas quais viriam a revelar predilecção. Samora Machel veio a fazê-lo abertamente. Melo Antunes foi oscilando, conforme as conveniências, mas sem nunca o poder disfarçar inteiramente.
Assim nascem as cortinas que separam dois mundos. Quer sejam cortinas de ferro, cortinas de bambu ou cortinas de capim.
A autodeterminação dos povos ultramarinos tão explicitamente fixada no "Programa do MFA", cujos dizeres tive ensejo para recordar, desaparecia com uma penada de Samora Machel-Melo Antunes.
Verdade seja que Samora Machel não interviera na redacção do "Programa do MFA" e por isso não estava a ele obrigado. Mas Melo Antunes havia sido o principal elaborador desse documento.
Ou tinha o premeditado propósito de enganar ou faltou à palavra dada.
O elenco do governo trnasitório, na parte que a Lisboa pertencia designar, nãao tranquilizou ninguém. Tratava-se de tecnocratas sem qualquer representatividade local e, por isso, desconhecidos por toda a gente. Não davam garantia de poderem estabelecer a "ponte" de colaboração desejável.
Desempenhavam mais uma comissão de serviço colonial, com a agravante de ser declaradamente transitória, para daí a uns meses voltarem a Portugal com emprego assegurado e qualquer que fosse a sorte dos moçambicanos.
Este começo desalentador agravou-se com a escolha do Alto Comissário: o comandante Vítor Crespo, para o efeito graduado em almirante.
Era geralmente desconhecido em Moçambique. Pelos jornais ficou a saber-se que ali tinha cumprido o seu normal tempo de serviço, a bordo de uma fragrata que patrulhava o litoral. Ficara com a ideia da linha da costa e dos portos em que entrara. Nestes, era exacto que tinha obtido notória popularidade.
Sem conhecimento apropriado das terras e das gentes que lhe competia descolonizar, dificilmente poderia ser o árbitro supremo que as circunstâncias, já de si complexas, exigiam. Veio isso a agravar-se com o facto de, durante o mandato que lhe foi entregue, não ter disposto de tempo para o contacto com os povos desse imenso território. Houve de compreender-se quando se soube quanto era retido em Lourenço Marques por tarefas absorventes.
No acto de posse, o Presidente da República conferiu-lhe a missão de "conduzir o processo de descolonização, com patriotismo, no respeito pelo nosso passado, pelos nossos maiores em África, e, acima de tudo, pela bandeira verde-rubra da Pátria, PARA que o novo Estado de Moçambique venha a ser efectivamente uma nação de expressão lusa e indestrutivelmente ligada à Mãe-Pátria" (cito de um semanário lisboeta, de 14 de Setembro de 1974).
Foi isto que o Alm. Vítor Crespo jurou solenemente, por sua honra, fazer.
E foi isto o que não fez.
Logo em 21 de Outubro seguinte, aconteceu que uma unidade de "comandos" (farta de insultos incompatíveis com a sua dignidade) tomou desforço, quando foi provocada nas ruas de Lourenço Marques. Daqui nasceu a retaliação horrorosa que causou centenas de mortos entre a população indefesa, conforme os insuspeitos relatos da imprensa internacional. Houve carros incendiados, com os seus ocupantes dentro. Houve violações e violências em que todos os excessos se cometeram. Houve corpos trucidados em condições horripilantes.
O primeiro-ministro Joaquim Chissano chorou convulsivamente, no Hospital Miguel Bombarda, ao deparar com o macabro espectáculo que os médicos lhe mostraram.
O Alto Comissário, a quem pertencia a responsabilidade de defender a ordem pública (nos termos do acordo Machel-Antunes), não fez um movimento para proteger essa pobre gente que foi chacinada. Consentiu que os "comandos" fossem indignamente acusados de "irresponsáveis drogados" e não teve uma palavra de conforto para as vítimas imoladas. Nem um só dos responsáveis pelos morticínios foi detido, inculpado e presente a tribunal.
Assim mantinha a ordem e a paz que jurara preservar!
Sucederam-se as prisões arbitrárias, por simples suspeita ou denúncia anónima, feitas por milicianos armados, perante a passividade das autoridades. Os presos eram descalços, despojados do que possuíam e enviados para onde os algozes entendiam. Trata-se de casos testemuhados. Uma dessas vítimas (que foi deixada na cadeia quando da independência e ainda lá continua) foi acusada do crime de ter facilitado a passagem da fronteira a mulheres e crianças que fugiam daquele inferno. Tem sofrido tais suplícios que tentou o suicídio.
Na Beira, as prisões, nomeadamente as de carácter político, foram confiadas à polícia judiciária, dependente do Alto Comissário. Nessa polícia foi integrado, como qualificado agente, um criminoso de delito comum (o famigerado Zeca Ruço). Havia sido condenado, pelos tribunais regulares, a pesadas penas que foram esquecidas. No seu passivo figuravam roubos, assaltos à mão armada e fuga da cadeia. Era tido como um dos mais perigosos meliantes.
Assim entendia o Alto Comissário a dignidade!
Os monumentos portugueses, que eram património luso em Moçambique, foram apeados antes da independência. Alguns foram mutilados ou tratados sem qualquer respeito pelo que representavam. Existem fotografias documentadoras em que se alinham Mouzinho de Albuquerque, Vasco da Gama, Cardial Gouveia, Azevedo Coutinho, Sacadura Cabral e Gago Coutinho.
Tudo isto se passou sob o governo do Alto Comissário.
Assim entendia a defesa do respeito pelo nosso passado e pelos nossos maiores em África que lhe tinha sido cometida!
Numa entrevista que veio a dar, (...) sobre a descolonização, referiu que, os que tiveram de deixar Moçambique, não passavam de "racistas", "exploradores e reaccionários".
As dezenas de milhares de moçambicanos (de todas as cores e credos) que foram forçados a abandonar a sua terra, sob o mandato do Alto Comissário, e que tentam sobreviver pelo mundo, são a demonstração mais inequívoca de que isso não foi assim.
O Alto Comissário mentiu!
Sob a sua jurisdição foi conduzido à morte o Dr. Willem Pot, meu adversário de sempre e democrata convicto. Homem de cor, havia sido secretário de estado da comunicação social, no governo provisório de Moçambique. Por denunciar os campos de internamento, a falta de assistência jurídica aos presos e os abusos neles cometidos (no tempo do Alto Comissário), foi preso em Quelimane, torturado e inibido de receber qualquer socorro médico para a doença que o afligia. Libertaram-no para que não morresse na cadeia. Faleceu dias depois. Mas teve tempo de falar e possuo o testemunho do que disse.
Assim desempenhava o Alto Comissário as funções que lhe estavam entregues!
Para não alongar a lista das baixezas (que poderá ser completamente fornecida ao tribunal, quando chegar o momento) apenas mencionarei os presos abandonados em Moçambique, na altura da independência.
Somaram centenas, segundo provas indesmentíveis, quando o Alto Comissário deixou aquelas terras para retomar em Lisboa uma vida desafogada, sendo depois promovido a ministro, gastando o tempo por locais dispendiosos.
Se mais não foram os abandonados, deve-se isso à intervenção corajosa de três homens (Maj. Rebelo Gonçalves, Cap. Silva Marques e chefe de escala da TAP, Paiva Cardoso) que conseguiram fazer sair para Salisbury algumas dezenas dessas vítimas de cuja sorte o Alto Comissário se desinteressava. Descolaram da Beira às 10 horas do dia 25 de Junho de 1975, graças à abnegação dos tripulantes da TAP (chefiados pelo comandantee Conceição) que dormiram no "Boeing" à espera de poderem realizar essa operação humanitária.
Nem sequer o consulado de Portugal, na Beira, dispunha de pessoal para assistir os portugueses. O Cônsul chegou, de Johannesburg, na véspera da independência e não dispunha de instalações e meios para atender os que o procuravam, aflitos. Com as instruções confusas de que dispunha, foram recusados passaportes a gente de cor que queria usar o seu direito de optar pela nacionalidade portuguesa. Eram abandonados à sua sorte.
Assim cuidava o Alto Comissário de preservar a expressão lusa do novo país.
Com tal procedimento entende-se tudo o que veio a acontecer depois.
Nada sucedeu por acaso. Tudo foi premeditado. (...)
Quando regressei da Europa, encontrei uma situação confrangedora.
Na medida em que a evolução política portuguesa girava rapidamente para o extremismo comunista, sentiam-se reflexos em Moçambique que mais deterioravam o ambiente. Os postos chave ainda detidos por portugueses eram progressivamente ocupados por militantes marxistas. O figurino soviético surgia como padrão ostensivo da ideologia revolucionária e as existentes simpatias pela China popular eram metodicamente abafadas.
Fiz retirar os meus filhos que permaneciam na Beira e alguns pertences em que a família tinha maior estima. O resto ficou ali para ser tragado pela voragem.
Creio que levei longe demais o risco a que sujetei a minha gente. Saíram quase no último minuto possível.
O pânico crescia, compreensivelmente, entre a população. Queria-se precipitar a fuga, manipulando os justificados receios de tantas pessoas. Não interessava aos activistas que ficasse alguém, de qualquer raça, que pudesse oferecer-lhes o risco de esclarecer as massas que começavam a agitar-se.
Joaquim Chissano e alguns outros dirigentes diligenciavam, todavia, travar esse êxodo. Sabiam como se reflectiria na produtividade do país, no crescimento do desemprego e no consequente descontentamento. Não ignoravam ser-lhes impossível dispor de quadros para substituir os que partiam.
Um qualificado funcionário português escrevia-me, em fins deNovembro:
"Estou profundamente preocupado e mesmo apreensivo com o futuro de Moçambique que não antevejo nem fácil, nem próspero, nem calmo, nem seguro.
A Frelimo surgiu cheia de boas intenções, mas completamente vazia de quadros ou de estruturas e nos meses que passaram não se nota qualquer evolução. Apresentam-se, não só incapazes de resolverem os grandes problemas, como de os equacionarem ou até mesmo de tomarem deles completo conhecimento.
Os chefes responsáveis são sensatos, ponderados, encontram-se animados de boa vontade e possuem normal capacidade intelectual. Acontece, porém, que, entre eles (e são confrangedoramente poucos) e a massa bruta dos "camaradas" nada existe.
Todos estes dirigentes têm plena consciência da incapacidade da Frelimo PARA assumir realmente todas as funções directivas de um país independente".
Por outros canais fiéis chegavam-me cópias de relatórios oficiais enviados para Lourenço Marques ou para Lisboa alertando sobre a preocupante anarquia que se avizinhava. Concretizar a independência em tais condições, escrevia-se nesses documentos, equivalia a entregar o país a irresponsáveis que um bando de extremistas se preparava para dominar. Os que, honestamente, formulavam estes avisos, foram gradualmente afastados.
Houve dirigentes da "Frelimo" que também escreveram para Dar-es-Saalam expondo a gravidade da situação.
Mas Vítor Crespo, Melo Antunes e Costa Gomes insistiam em que tudo se acelerasse para a transferência crescente de poderes.
Teima-se na "descolonização original", mesmo sabendo as vítimas e os vexames que ela iria causar.
Não podia deixar de haver, por detrás dessa atitude, um propósito deliberado.
Moçambique ascenderia à independência em 25 de Junho de 1975.
Pouco tempo antes, Samora Machel entrava no país, cruzando no norte a fronteira com a Tanzânia. Vinha acompanhado (ou tutelado) por Marcelino dos Santos.
O grupo que tinha ficado a rodeá-lo, em Dar-es-Saalam, desde o acordo com Melo Antunes reunia os elementos mais extremistas de declarada tendência pró-soviética.
A URSS havia trabalhado com eficiência e sem perda de tempo, desde que, em 1964, Mikhail Domogatskiy me anunciara a preocupação de recuperarem terreno sobre o avanço da influência chinesa.
Na impossibiilidade de dominarem as bases da "Frelimo" e de controlarem os militares que combatiam no interior do país, dirigiram a sua atenção para os elementos intelectuais com possibilidades de virem a exercer a decisiva influência. Constituiriam a minoria destinada a controlar as estruturas.
Marcelino foi o homem-chave que utilizaram. Este se encarregou de aliciar e doutrinar os demais.
Os homens mais prestigiosos foram progressivamente eliminados.
Filipe Magaya, chefe militar valoroso, foi abatido, com um tiro nas costas, quando atravessava um rio, no decurso de operações dentro de Moçambique. O assassino foi preso, mas nunca mais se ouviu falar dele. Diz-se que enlouqueceu, em Dar-es-Saalam, na cadeia.
Eduardo Mondlane, respeitado político de cultura e formação ocidentais, foi assassinado em condições que, singularmente, os posteriores dirigentes da "Frelimo" nunca se interessaram em investigar profundamente. O que se sabe é que o livro armadilhado foi entregue em sua casa por alguém que lhe deveria merecer a confiança de não hesitar em abri-lo. O crime não aproveitava aos portugueses.
Uria Simango, Padre Mateus, Lázaro Kavandame e Miguel Murupa tiveram de fugir da Tanzânia para salvarem as vidas. De todos, Só Miguel Murupa está em liberdade, na Europa. Os demais caíram em ciladas e encontraram-se em condições de não poderem, sequer, ser testemunhas perigosas.
Dentro de Moçambique, os comunistas organizaram o agrupamento dos "democratas" para minarem as estruturas e poderem opor-se a qualquer força política que surgisse no país.
Em Portugal, era preciso ocupar o poder governativo durante a fase activa da descolonização. Assim o fizeram.
A coordenação da jogada foi perfeita. Esse mérito tem de se lhes reconhecer.
O grupo marxista-soviético da "Frelimo" manteve-se, porém, em atitude discreta e só interveio para acelerar as negociações quando surgiu Melo Antunes como o enviado qua aguardavam. Até aí tinham apenas que retardar qualquer hipótese de acordo.
Existem elementos para afirmar que o próprio Samora Machel só passou a ser activamente trabalhado, no sentido doutrinário que lhes convinha, depois do acordo de 7 de Setembro de 1974. Até então, parece que não era efectivamente marxista. De outra forma não poderia ter enganado tão teatralmente o Dr. Kaunda que largamente o ultrapassa em cultura e experiência política.
Acontece, porém, que aqueles extremistas da "Frelimo" não contam no seu elenco qualquer negro prestigiado. Tinham que fabricar um. O mais fácil de produzir era Samora Machel e para isso beneficiaram dos meses que o tiveram ao seu exclusivo cuidado, enquanto a corrente nacionalista da "Frelimo" era enviada para dentro do país, onde a tentativa de organizar a independência os absorvia totalmente ante as dificuldades com que iam deparando.
Quando Samora Machel iniciou a série agressiva dos seus discursos e tomou atitudes revolucionárias intransigentes, pode dizer-se que houve surpresa geral. Surgiu a preocupação quando as declarações, os insultos e as ameaças foram crescendo ao longo da viagem. Possuo gravações directas que também me assombraram.
Com o zeloso ardor dos recém-convertidos, Samora Machel falava como quem aprendeu a lição de cor, mas metendo, por vezes, coisas da sua lavra sem se dar conta das monstruosas contradições doutrinárias evidenciadas.
Nos nacionalistas da "Frelimo" houve um movimento de agitação e nos países africanos que mais tinham apoiado a guerra de libertação esboçou-se quase incredulidade.
Joaquim Chissano voou apressadamente para Quelimane, onde Samora Machel tinha ultrapassado os limites da inconveniência, sabendo estar numa região que lhe era hostil. Chissano tentou explicar ao presidente as consequências da acção que estava a realizar. Segundo testemunho identificado, o choque foi quase duro, mas Chissano não conseguiu mais do que adiar a anunciada alteração do nome de Lourenço Marques. Nada ganhou com isso porque meses depois havia de se fazer essa modificação e para pior. Em vez de Cafumo chamar-se-ia Maputo, sem ao menos se atentar no ridículo a que tal nome se presta.
Ainda houve quem sugerisse que a capital passasse a denominar-se MONDLANE, em homenagem ao sacrificado fundador da "Frelimo". Samora Machel nem quis considerar isso e Marcelino dos Santos opôs-se violentamente, criticando as tendências anti-revolucionárias que se abrigam no culto das personalidades.
O nome de Mondlane não podia, obviamente, ser por eles aceite (ob. cit., pp. 347-349; 351-354; 357-363; 375-376; 381-383).
A fachada do edifício da Câmara Municipal de Lourenço Marques nos anos de 1960. |
"AQUI MOÇAMBIQUE LIVRE"
Não irei repetir, portanto, o que foi relatado por testemunhas presenciais. Limito-me a referir os contactos que tive com esse "Movimento", em que não participei.
Quando rebenta uma revolta
Na noite de 6 de Setembro, Gomes dos Santos telefonou-me de L.M., dando-me conta dos graves acontecimentos que ali se desenrolavam.
No Estádio da Matola reunira-se multidão excitada por palavras de ordem incendiárias, enquadrada pelos "democratas" e redigida por universitários extremistas. Aguardavam as declarações de Samora Machel que o Rádio Clube transmitiria de Lusaka. Perante a passividade das autoridades portugueses, que parecia haverem abdicado da soberania mesmo antes dos mandatários de Lisboa a haverem entregue, organizavam-se cortejos na cidade, desfraldando bandeiras da "Frelimo" em atitude mais provocativa do que jubilosa.
De súbito, uma carrinha parou no semáforo que fica na esquina junto ao café "Continental". Nela flutuava a bandeira frelimista mas, em ofensa inaceitável, arrastava no pavimento uma bandeira portuguesa já meio destroçada.
Foi esse o rastilho da explosão.
O "rebentar" de uma revolta nunca terá tido, porventura, representação mais realista.
Do desforço sobre a viatura e ocupantes, ao assalto aos jornais que mais se distinguiam pela propaganda anti-portuguesa, à destruição do restaurante da Associação Académica e ao incêndio da sede dos "democratas de Moçambique" tudo de passou vertiginosamente sob o impulso de nervos que não suportavam mais a tensão a que estavam submetidos.
Pouco depois anunciava-me explosão tremenda que abalara a cidade. O paiol de munições, no subúrbio de Benfica, tinha ido pelos ares. Nunca se soube quem a teria provocado.
Mantivemos contacto, até de madrugada, numa noite mal dormida.
A última informação que recebi, pelo telefone, era a de que a capital estava nas mãos do povo. Os manifestantes da Matola tinham-se escapulido. Nem havia rasto dos "democratas".
O povo, de todas as raças, tinha preenchido o vazio deixado pelas autoridades.
Gente anónima. Gente descontrolada. Gente generosa.
Surgira, espontaneamente, o "Movimento de Moçambique Livre".
Nada fora planeado e nada estava organizado.
Só semanas depois vim a saber, por pessoas identificadas e idóneas, que o acto provocador do arrastar da Bandeira Nacional (em pleno centro da cidade) fora premeditado e pago PARA se obter a reacção que convinha desencadear.
Isso foi confessado, a oficiais portugueses, pelo maltratado condutor da viatura. Tinham-lhe pago 20 mil escudos!
Recebera o dinheiro de um intermediário que nunca foi possível identificar com absoluta certeza. Por detrás dele, forças ocultas actuavam.
Notei a estranha semelhança com os acontecimentos da Beira, em Janeiro de 1973, também provocados na exploração de sentimentos generosos.
Mas desta vez ia ser mais sério.
Os provocadores não devem ter avaliado, correctamente, as forças que tinham desencadeado. (...)
Porque não entrei em Moçambique
De Blantyre, Pombeiro de Sousa insistia pelo meu regresso.
Joanesburgo |
Mark Chona tinha-o contactado pelo telefone e, alarmado com o que acontecia, sugeria que eu fosse a Lusaka para usar a "Voz da Zâmbia" e dirigir um apelo aos moçambicanos. Recusei-me a fazê-lo. Lembrei as advertências que havia repetidamente formulado. Não estava disposto a responsabilizar-me por garantias que não tinha a certeza de serem respeitadas.
Encontrei-me, nessa altura, num dos momentos mais difícieis que em toda a minha vida tive de atravessar, perante a decisão que se me impunha.
Os pedidos para que entrasse em Moçambique e tomasse a chefia da rebelião eram dos mais insistentes, trazidos pelas vozes mais amigas. Era dramático, para mim, sentir essa confiança.
O aeroporto de Lourenço Marques estava nas mãos dos "rebeldes" (antigos páraquedistas que o manteriam até aos últimos cartuchos) e descer da Beira, também não representaria problema.
Tive de ponderar os deveres que sobre mim recaíam, exactamente para corresponder a uma confiança que não podia, levianamente, trair.
Sabia que a minha presença iria dar falsas esperanças a muitas pessoas. Sabia que, se entrasse em Moçambique, os meus fiéis companheiros do "plano de emergência" arrancariam sem hesitações. Os enfrentamentos seriam brutais e cresceria o número de vítimas. Sem a mínima possibilidade de vencer. As condições em que o movimento tinha sido desencadeado davam todas as vantagenss ao inimigo. Por isso o haviam provocado.
Se podia jogar a vida, não tinha o direito de sacrificar as vidas de outros.
Perdi, sem dúvida, a minha melhor oportunidade de morrer. Quis salvar a possibilidade de outros continuarem a viver.
Decidi-me voltar a Blantyre. Trazia os olhos rasos de lágrimas. Estava certo de que poucos compreenderiam o sacrifício que fiz.
Do Malawi, no dia 9, enviei mensagem para a Beira. Ofereci-me ao "MFA" para ali me deslocar e tentar um compromisso. Responderam-me que não o consideravam necessário.
Tentei contacto com Lusaka para obter da "Frelimo" uma atitude contemporizadora que lhe daria a máxima credibilidade entre os moçambicanos da "frente interna". Consegui ter Mark Chona ao telefone, mas a ligação cortou-se. Não sei, até hoje, se foi acidente técnico ou desligar deliberadamente. Nunca mais voltámos a conversar.
O Palácio da Rádio, sede do Rádio clube de Moçambique, pouco depois da sua inauguração. |
A verdade é que não os abandonei. Pensei muito mais nessa gente generosa do que em mim próprio.
Os meus deveres para com Moçambique, exigiam-me que assim procedesse.
Derradeiras mensagens
Quando me chegaram as derradeiras mensagens de Gonçalo Mesquitela dizendo-me ser-lhes impossível continuarem a resistir e dando-me conta das selvajarias ateadas pelos "democratas" nos subúrbios de LM, recebia também informação da Beira anunciando que o movimento capitulara.
As minhas filhas, que na Beira continuavam, tinham sido conduzidas por militares para ponto seguro onde sempre permaneceram. Não esqueço essa atenção amiga, embora outros telefonemas me indicassem que as retinham como reféns. Não creio que assim tenha sido, até porque isso nada alteraria as minhas disposições se elas fossem diferentes do que foram.
Através do receptor (e sempre gravando) acompanhámos os últimos momentos daquele "Movimento" generoso, improvisado e antecipadamente vencido.
Depois foi o silvar das ambulâncias, os crimes friamente cometidos, os excessos dos populares embriagados e drogados, os incêndios e saques, as centenas de mortos e os apelos das autoridades impotentes.
Moçambique tinha tido a sua "primavera de Praga".
Não se podem condenar os homens do "Movimento de Moçambique Livre" mesmo quando se sabe que a sua actuação impulsiva serviu os desígnios do inimigo e comprometeu, por muito tempo, todas as demais hipóteses que poderiam existir.
Faltou-lhes a serena decisão de o terem podido transfomar em simbólico gesto de protesto (utilizando os emissores que ocuparam) sem forçarem mais longe a confrontação. Mas não pode esquecer-se que a população tinha sido provocada com acinte, quando já suportara meses de insultos e atingira o limite da tensão nervosa.
Isso evidencia e agrava o crime dos que tudo encaminharam para que tal tivesse de acontecer.
Provei, nas páginas deste livro, que tentei impedir que assim fosse.
Houve outros que me impediram de o conseguir.
Costa Gomes e Melo Antunes ficam, por isso, na bancada dos réus que a história julgará.
Espero que também os julguem os homens que viveram estes tempos de tragédia. (...)
Entre baixios e baixezas
Mário Soares |
Lendo-o, com a atenção merecida, podem nele encontrar-se expressões e intenções coincidentes com o nosso "Programa de Lusaka", de 1973. Por mais voltas que os negociadores tenham dado, não conseguiram libertar-se de tal influência. Não me considero honrado por isso e acentuo que nenhum vínculo existe entre os dois documentos, excepto o local onde foram produzidos.
(...) Vale a pena fazer alguns curtos comentários.
O Acordo Samora Machel-Melo Antunes
Do lado português, o papel foi assinado por oito plenipotenciários, entre os quais três ministros do governo e um conselheiro de Estado. Pelo lado da "Frelimo", entendeu-se ser bastante a assinatura de Samora Machel.
A delegação portuguesa foi encabeçada pelo ministro Ernesto Augusto Melo Antunes.
Segundo os hábitos correntes, o documento deve ser denominado como o "acordo Samora Machel-Melo Antunes", sendo a ordem dos nomes resultantes de Samora Moisés Machel haver assinado no lado esquerdo, por deferência que lhe foi atribuída.
À assinatura do Maj. Melo Antunes seguem-se logo as assinaturas de dois outros ministros (Dr. Mário Soares e Dr. António de Almeida Santos) e, depois, a de um conselheiro de Estado (Victor M. Trigueiro Crespo).
A cuidadosa vacuidade dos compromissos não obrigava a "Frelimo" a coisa alguma e, de resto, no tempo de transição que se seguiu, parece que ninguém teve preocupações a tal respeito. O Estado Português é que ficava amarrado a obrigações claramente definidas.
Houve um curioso artigo do acordo (a cláusula 18) que, desde logo, me prendeu a atenção.
Nesse preceito dispunha-se que "O Estado Moçambicano independente exercerá, integralmente, a soberania plena e completa no plano interior e exterior, estabelecendo as instituições políticas e escolhendo livremente o regime político e social que considerar mais adequado aos interesses do Povo".
Como é normal que os estados independentes disponham de tais prerrogativas, poderia parecer redundância de advogado afirmá-las. Mas as coisas não se passavam por forma tão ingénua. Os factos vieram a comprová-lo.
Uma vez que o governo de Portugal tratava com a "Frelimo" a transferência "progressiva dos poderes que detém sobre o território", era óbvio que seria a "Frelimo" a personalizar o "Estado Moçambicano independente" e, portanto, a decidir (nos termos do citado artigo 18, do acordo Machel-Antunes) do estabelecimento das "instituições políticas e escolhendo livremente o regime político e social que considerar mais adequado aos interesses do seu Povo".
Com isto, a potência soberana (Portugal) lavava as mãos de qualquer intervenção no acautelamento dos interesses das gentes e da sua autodeterminação. Era exclusivamente a "Frelimo" a decidir (como veio a acontecer, provando o acerto da minha preocupada interpretação) sobre o regime que entendesse mais adequado.
Compulsando os anais da descolonização em toda a África, não encontrei caso semelhante de abandono.
Passavam-se os umbrais da "descolonização original" conduzida por declarados democratas, e logo dois deles juristas, que ficavam indiferentes ao sacrifício da expressão da vontade popular.
Como deixei anteriormente descrito, todo o encaminhamento descolonizador que diligenciámos definir, em mais de um ano de intensa actividade, apoiava-se na consulta popular sobre a definição das estruturas políticas.
Quando me lembro das horas que passei, com Kaunda e Mark Chona, a deitar contas ao tempo necessário para o recenseamento e a discutir a forma de o tornar representativo, acabo por me convencer que a minha formação democrática se situava, afinal, muito por diante do que no acordo Machel-Antunes se definia.
Nítido se apresentava que ambos se inclinavam para outras fórmulas democráticas pelas quais viriam a revelar predilecção. Samora Machel veio a fazê-lo abertamente. Melo Antunes foi oscilando, conforme as conveniências, mas sem nunca o poder disfarçar inteiramente.
Avenida Pinheiro Chagas em Lourenço Marques, na direção do Alto-Maé (meados de 1960). Actualmente, Avenida Eduardo Mondlane. |
A autodeterminação dos povos ultramarinos tão explicitamente fixada no "Programa do MFA", cujos dizeres tive ensejo para recordar, desaparecia com uma penada de Samora Machel-Melo Antunes.
Verdade seja que Samora Machel não interviera na redacção do "Programa do MFA" e por isso não estava a ele obrigado. Mas Melo Antunes havia sido o principal elaborador desse documento.
Ou tinha o premeditado propósito de enganar ou faltou à palavra dada.
O naufrágio do Alto Comissário
O elenco do governo trnasitório, na parte que a Lisboa pertencia designar, nãao tranquilizou ninguém. Tratava-se de tecnocratas sem qualquer representatividade local e, por isso, desconhecidos por toda a gente. Não davam garantia de poderem estabelecer a "ponte" de colaboração desejável.
Desempenhavam mais uma comissão de serviço colonial, com a agravante de ser declaradamente transitória, para daí a uns meses voltarem a Portugal com emprego assegurado e qualquer que fosse a sorte dos moçambicanos.
Este começo desalentador agravou-se com a escolha do Alto Comissário: o comandante Vítor Crespo, para o efeito graduado em almirante.
Era geralmente desconhecido em Moçambique. Pelos jornais ficou a saber-se que ali tinha cumprido o seu normal tempo de serviço, a bordo de uma fragrata que patrulhava o litoral. Ficara com a ideia da linha da costa e dos portos em que entrara. Nestes, era exacto que tinha obtido notória popularidade.
Sem conhecimento apropriado das terras e das gentes que lhe competia descolonizar, dificilmente poderia ser o árbitro supremo que as circunstâncias, já de si complexas, exigiam. Veio isso a agravar-se com o facto de, durante o mandato que lhe foi entregue, não ter disposto de tempo para o contacto com os povos desse imenso território. Houve de compreender-se quando se soube quanto era retido em Lourenço Marques por tarefas absorventes.
No acto de posse, o Presidente da República conferiu-lhe a missão de "conduzir o processo de descolonização, com patriotismo, no respeito pelo nosso passado, pelos nossos maiores em África, e, acima de tudo, pela bandeira verde-rubra da Pátria, PARA que o novo Estado de Moçambique venha a ser efectivamente uma nação de expressão lusa e indestrutivelmente ligada à Mãe-Pátria" (cito de um semanário lisboeta, de 14 de Setembro de 1974).
Foi isto que o Alm. Vítor Crespo jurou solenemente, por sua honra, fazer.
E foi isto o que não fez.
Lourenço Marques |
O primeiro-ministro Joaquim Chissano chorou convulsivamente, no Hospital Miguel Bombarda, ao deparar com o macabro espectáculo que os médicos lhe mostraram.
O Alto Comissário, a quem pertencia a responsabilidade de defender a ordem pública (nos termos do acordo Machel-Antunes), não fez um movimento para proteger essa pobre gente que foi chacinada. Consentiu que os "comandos" fossem indignamente acusados de "irresponsáveis drogados" e não teve uma palavra de conforto para as vítimas imoladas. Nem um só dos responsáveis pelos morticínios foi detido, inculpado e presente a tribunal.
Assim mantinha a ordem e a paz que jurara preservar!
Sucederam-se as prisões arbitrárias, por simples suspeita ou denúncia anónima, feitas por milicianos armados, perante a passividade das autoridades. Os presos eram descalços, despojados do que possuíam e enviados para onde os algozes entendiam. Trata-se de casos testemuhados. Uma dessas vítimas (que foi deixada na cadeia quando da independência e ainda lá continua) foi acusada do crime de ter facilitado a passagem da fronteira a mulheres e crianças que fugiam daquele inferno. Tem sofrido tais suplícios que tentou o suicídio.
Na Beira, as prisões, nomeadamente as de carácter político, foram confiadas à polícia judiciária, dependente do Alto Comissário. Nessa polícia foi integrado, como qualificado agente, um criminoso de delito comum (o famigerado Zeca Ruço). Havia sido condenado, pelos tribunais regulares, a pesadas penas que foram esquecidas. No seu passivo figuravam roubos, assaltos à mão armada e fuga da cadeia. Era tido como um dos mais perigosos meliantes.
Assim entendia o Alto Comissário a dignidade!
Os monumentos portugueses, que eram património luso em Moçambique, foram apeados antes da independência. Alguns foram mutilados ou tratados sem qualquer respeito pelo que representavam. Existem fotografias documentadoras em que se alinham Mouzinho de Albuquerque, Vasco da Gama, Cardial Gouveia, Azevedo Coutinho, Sacadura Cabral e Gago Coutinho.
Tudo isto se passou sob o governo do Alto Comissário.
Assim entendia a defesa do respeito pelo nosso passado e pelos nossos maiores em África que lhe tinha sido cometida!
Numa entrevista que veio a dar, (...) sobre a descolonização, referiu que, os que tiveram de deixar Moçambique, não passavam de "racistas", "exploradores e reaccionários".
Cartaz turístico de Lourenço Marques, provavelmente dos anos 50. Desde que abrira a linha-de-ferro PARA a África do Sul, Lourenço Marques tornara-se num destino turístico para o mercado sul-Africano. |
O Alto Comissário mentiu!
Sob a sua jurisdição foi conduzido à morte o Dr. Willem Pot, meu adversário de sempre e democrata convicto. Homem de cor, havia sido secretário de estado da comunicação social, no governo provisório de Moçambique. Por denunciar os campos de internamento, a falta de assistência jurídica aos presos e os abusos neles cometidos (no tempo do Alto Comissário), foi preso em Quelimane, torturado e inibido de receber qualquer socorro médico para a doença que o afligia. Libertaram-no para que não morresse na cadeia. Faleceu dias depois. Mas teve tempo de falar e possuo o testemunho do que disse.
Assim desempenhava o Alto Comissário as funções que lhe estavam entregues!
Para não alongar a lista das baixezas (que poderá ser completamente fornecida ao tribunal, quando chegar o momento) apenas mencionarei os presos abandonados em Moçambique, na altura da independência.
Somaram centenas, segundo provas indesmentíveis, quando o Alto Comissário deixou aquelas terras para retomar em Lisboa uma vida desafogada, sendo depois promovido a ministro, gastando o tempo por locais dispendiosos.
Se mais não foram os abandonados, deve-se isso à intervenção corajosa de três homens (Maj. Rebelo Gonçalves, Cap. Silva Marques e chefe de escala da TAP, Paiva Cardoso) que conseguiram fazer sair para Salisbury algumas dezenas dessas vítimas de cuja sorte o Alto Comissário se desinteressava. Descolaram da Beira às 10 horas do dia 25 de Junho de 1975, graças à abnegação dos tripulantes da TAP (chefiados pelo comandantee Conceição) que dormiram no "Boeing" à espera de poderem realizar essa operação humanitária.
Nem sequer o consulado de Portugal, na Beira, dispunha de pessoal para assistir os portugueses. O Cônsul chegou, de Johannesburg, na véspera da independência e não dispunha de instalações e meios para atender os que o procuravam, aflitos. Com as instruções confusas de que dispunha, foram recusados passaportes a gente de cor que queria usar o seu direito de optar pela nacionalidade portuguesa. Eram abandonados à sua sorte.
Assim cuidava o Alto Comissário de preservar a expressão lusa do novo país.
Com tal procedimento entende-se tudo o que veio a acontecer depois.
Nada sucedeu por acaso. Tudo foi premeditado. (...)
Demolição de Moçambique
Quando regressei da Europa, encontrei uma situação confrangedora.
Na medida em que a evolução política portuguesa girava rapidamente para o extremismo comunista, sentiam-se reflexos em Moçambique que mais deterioravam o ambiente. Os postos chave ainda detidos por portugueses eram progressivamente ocupados por militantes marxistas. O figurino soviético surgia como padrão ostensivo da ideologia revolucionária e as existentes simpatias pela China popular eram metodicamente abafadas.
Fiz retirar os meus filhos que permaneciam na Beira e alguns pertences em que a família tinha maior estima. O resto ficou ali para ser tragado pela voragem.
Creio que levei longe demais o risco a que sujetei a minha gente. Saíram quase no último minuto possível.
O pânico crescia, compreensivelmente, entre a população. Queria-se precipitar a fuga, manipulando os justificados receios de tantas pessoas. Não interessava aos activistas que ficasse alguém, de qualquer raça, que pudesse oferecer-lhes o risco de esclarecer as massas que começavam a agitar-se.
Joaquim Chissano e alguns outros dirigentes diligenciavam, todavia, travar esse êxodo. Sabiam como se reflectiria na produtividade do país, no crescimento do desemprego e no consequente descontentamento. Não ignoravam ser-lhes impossível dispor de quadros para substituir os que partiam.
Um qualificado funcionário português escrevia-me, em fins deNovembro:
"Estou profundamente preocupado e mesmo apreensivo com o futuro de Moçambique que não antevejo nem fácil, nem próspero, nem calmo, nem seguro.
A Frelimo surgiu cheia de boas intenções, mas completamente vazia de quadros ou de estruturas e nos meses que passaram não se nota qualquer evolução. Apresentam-se, não só incapazes de resolverem os grandes problemas, como de os equacionarem ou até mesmo de tomarem deles completo conhecimento.
Os chefes responsáveis são sensatos, ponderados, encontram-se animados de boa vontade e possuem normal capacidade intelectual. Acontece, porém, que, entre eles (e são confrangedoramente poucos) e a massa bruta dos "camaradas" nada existe.
Todos estes dirigentes têm plena consciência da incapacidade da Frelimo PARA assumir realmente todas as funções directivas de um país independente".
Por outros canais fiéis chegavam-me cópias de relatórios oficiais enviados para Lourenço Marques ou para Lisboa alertando sobre a preocupante anarquia que se avizinhava. Concretizar a independência em tais condições, escrevia-se nesses documentos, equivalia a entregar o país a irresponsáveis que um bando de extremistas se preparava para dominar. Os que, honestamente, formulavam estes avisos, foram gradualmente afastados.
Houve dirigentes da "Frelimo" que também escreveram para Dar-es-Saalam expondo a gravidade da situação.
Mas Vítor Crespo, Melo Antunes e Costa Gomes insistiam em que tudo se acelerasse para a transferência crescente de poderes.
Teima-se na "descolonização original", mesmo sabendo as vítimas e os vexames que ela iria causar.
Não podia deixar de haver, por detrás dessa atitude, um propósito deliberado.
República Popular de Moçambique
Os signatários do Acordo de Lusaka. |
Pouco tempo antes, Samora Machel entrava no país, cruzando no norte a fronteira com a Tanzânia. Vinha acompanhado (ou tutelado) por Marcelino dos Santos.
O grupo que tinha ficado a rodeá-lo, em Dar-es-Saalam, desde o acordo com Melo Antunes reunia os elementos mais extremistas de declarada tendência pró-soviética.
A URSS havia trabalhado com eficiência e sem perda de tempo, desde que, em 1964, Mikhail Domogatskiy me anunciara a preocupação de recuperarem terreno sobre o avanço da influência chinesa.
Na impossibiilidade de dominarem as bases da "Frelimo" e de controlarem os militares que combatiam no interior do país, dirigiram a sua atenção para os elementos intelectuais com possibilidades de virem a exercer a decisiva influência. Constituiriam a minoria destinada a controlar as estruturas.
Marcelino foi o homem-chave que utilizaram. Este se encarregou de aliciar e doutrinar os demais.
Os homens mais prestigiosos foram progressivamente eliminados.
Filipe Magaya, chefe militar valoroso, foi abatido, com um tiro nas costas, quando atravessava um rio, no decurso de operações dentro de Moçambique. O assassino foi preso, mas nunca mais se ouviu falar dele. Diz-se que enlouqueceu, em Dar-es-Saalam, na cadeia.
Eduardo Mondlane, respeitado político de cultura e formação ocidentais, foi assassinado em condições que, singularmente, os posteriores dirigentes da "Frelimo" nunca se interessaram em investigar profundamente. O que se sabe é que o livro armadilhado foi entregue em sua casa por alguém que lhe deveria merecer a confiança de não hesitar em abri-lo. O crime não aproveitava aos portugueses.
Eduardo Mondlane e o assassino terrorista Che Guevara (14 de Fevereiro de 1965). |
Dentro de Moçambique, os comunistas organizaram o agrupamento dos "democratas" para minarem as estruturas e poderem opor-se a qualquer força política que surgisse no país.
Em Portugal, era preciso ocupar o poder governativo durante a fase activa da descolonização. Assim o fizeram.
A coordenação da jogada foi perfeita. Esse mérito tem de se lhes reconhecer.
O grupo marxista-soviético da "Frelimo" manteve-se, porém, em atitude discreta e só interveio para acelerar as negociações quando surgiu Melo Antunes como o enviado qua aguardavam. Até aí tinham apenas que retardar qualquer hipótese de acordo.
Existem elementos para afirmar que o próprio Samora Machel só passou a ser activamente trabalhado, no sentido doutrinário que lhes convinha, depois do acordo de 7 de Setembro de 1974. Até então, parece que não era efectivamente marxista. De outra forma não poderia ter enganado tão teatralmente o Dr. Kaunda que largamente o ultrapassa em cultura e experiência política.
Acontece, porém, que aqueles extremistas da "Frelimo" não contam no seu elenco qualquer negro prestigiado. Tinham que fabricar um. O mais fácil de produzir era Samora Machel e para isso beneficiaram dos meses que o tiveram ao seu exclusivo cuidado, enquanto a corrente nacionalista da "Frelimo" era enviada para dentro do país, onde a tentativa de organizar a independência os absorvia totalmente ante as dificuldades com que iam deparando.
Quando Samora Machel iniciou a série agressiva dos seus discursos e tomou atitudes revolucionárias intransigentes, pode dizer-se que houve surpresa geral. Surgiu a preocupação quando as declarações, os insultos e as ameaças foram crescendo ao longo da viagem. Possuo gravações directas que também me assombraram.
Boeing 707 dos Transportes Aéreos Portugueses a descolar na nova pista do aeroporto em Mavalane, em 1970. |
Nos nacionalistas da "Frelimo" houve um movimento de agitação e nos países africanos que mais tinham apoiado a guerra de libertação esboçou-se quase incredulidade.
Joaquim Chissano voou apressadamente para Quelimane, onde Samora Machel tinha ultrapassado os limites da inconveniência, sabendo estar numa região que lhe era hostil. Chissano tentou explicar ao presidente as consequências da acção que estava a realizar. Segundo testemunho identificado, o choque foi quase duro, mas Chissano não conseguiu mais do que adiar a anunciada alteração do nome de Lourenço Marques. Nada ganhou com isso porque meses depois havia de se fazer essa modificação e para pior. Em vez de Cafumo chamar-se-ia Maputo, sem ao menos se atentar no ridículo a que tal nome se presta.
Ainda houve quem sugerisse que a capital passasse a denominar-se MONDLANE, em homenagem ao sacrificado fundador da "Frelimo". Samora Machel nem quis considerar isso e Marcelino dos Santos opôs-se violentamente, criticando as tendências anti-revolucionárias que se abrigam no culto das personalidades.
O nome de Mondlane não podia, obviamente, ser por eles aceite (ob. cit., pp. 347-349; 351-354; 357-363; 375-376; 381-383).
1 comentário:
Comecei a ler esta esta pagina, e vou continuar a ler. Muito obrigada pelo bom trabalho. Excelentes fotos. Eu cresci em Mocambique antes da Frelimo ocupar o territorio. Vim para os estados unidos quando era ainda muito jovem. E onde vivo ha mais de 30 anos. Por isso o meu idioma (portugues) ja nao esta bem, mas ainda consigo ler em portugues. Mais uma vez, obrigadissima por esta pagina. Muito boa informacao. Best regards,
Susana Vieira
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