Estou a acompanhar a evolução dos acontecimentos em Moçambique. Há sensivelmente três meses escrevi uma série de textos para o Jornal Notícias. Reproduzo aqui e agora um desses textos por o considerar pertinente. Toda a decisão a favor da violência é lastimável, sobretudo num contexto em que não está claro se quem devia ter controlo sobre a situação, neste momento o Presidente, de facto tem esse controlo. Os próximos dias o dirão. O que é, contudo, claro para mim é que muita ingenuidade da parte de muitos andou a dar corda à Renamo para fazer o que nunca devia ter feito, nomeadamente questionar o Estado moçambicano da forma como o fez. Quem é sensato vai reconhecer isso, mesmo se achar legítimas as reivindicações feitas por esse partido.
Os hábitos da nossa mente
(5) Queremos a paz
Quem é que não quer a paz? Eu quero a paz, o leitor também, mesmo aquele pessoal que anda aí emboscado nas matas deste País. Todos queremos a paz. Malta Dhlakhama e Guebuza quer a paz. Já nos tempos da guerra dos 16 anos a Frelimo também queria a paz, os chamados “bandidos armados” também a queriam, mesmo os brancos sul africanos queriam-na. Todo o mundo quer a paz, não há nenhuma novidade nesse desiderato. Nenhuma mesmo. Só que no nosso País gritar isto pode parecer um posicionamento que revela princípios, integridade, moral e coragem. Sim, isso mesmo, quando digo que quero a paz estou a dizer que sou uma pessoa cheia de princípios. Estou a dizer que sou diferente dos restantes que preferem a guerra à paz. Mas como esses outros que eu penso que preferem a guerra à paz também são pela paz – e na sua perspectiva eu é que seria pela guerra – tudo fica confuso. Logo, não basta dizer que queremos paz para acharmos que contribuímos de forma útil ao debate de ideias. Temos também que dizer que tipo de paz, sob que condições e o que estamos preparados a sacrificar para a termos. Mas aí as coisas ficam complicadas, e bem.
O braço de ferro entre o governo e a Renamo há muito que deixou de ser sobre a paz ou guerra. Esse braço de ferro é sobre que tipo de comunidade política queremos ser. Queremos ser reféns do conluio de duas formações políticas à deriva, ou queremos ser membros duma comunidade política que respeita o Estado de direito, os orgãos de soberania e, acima de tudo, as regras do jogo democrático? Esta é que é a questão. Quem diz que quer a paz tem que a definir em referência a esta questão. Se não o faz, podia poupar a esfera pública com declarações inúteis. Já li textos com apelos de analistas políticos, religiosos (estes são curiosos porque nem se entendem ao nível do Deus que veneram, mas volta e meia são convocados como grandes mediadores) e militantes da sociedade civil a declararem solenemente que o povo (eles, na verdade, pois o povo não lhes deu nenhum mandato para falarem em seu nome) quer a paz e que, por conseguinte, o governo, acima de tudo, o Presidente, deve falar com a Renamo. Mais: se o líder da Renamo não quer sair da sua touca o Chefe de Estado deve se acocorar e, em nome da paz que o “povo” tanto quer, lá entrar para dialogar.
Há muito que se possa dizer em relação aos méritos das questões que estão a ser discutidas pelo Governo e pela Renamo. Pessoalmente, por exemplo, acho muito estranho que o Governo nunca tenha tentado transformar este assunto num assunto de todos nós através da inclusão de outras formações políticas na discussão ou da criação de comissões independentes para fazerem a revisão de aspectos do funcionamento da máquina política como forma de preservar o Estado de Direito. Ele lá saberá porque procede desta maneira. Igualmente, acho estranho que um partido que procura a sua identidade na ideia de que lutou pela democracia não veja nenhum problema em deixar que os seus militantes ataquem e matem agentes da lei e da ordem dum Estado que, para todos os efeitos, é o seu Estado, cuja sobrevivência vai necessitar muito duma postura cívica que promova o respeito pelos orgãos de soberania. Mas, de novo, esse partido também saberá porque procede dessa forma.
Portanto, há muito que se diga sobre este assunto. Mas não me parece essencial, sobretudo do ponto de vista da discussão na esfera pública. Imaginemos um caso extremo. Suponhamos, por exemplo, que o Governo e a Renamo cheguem a um acordo de partilha do poder, limitação do número de partidos que concorrem para as eleições a dois apenas (como nos EUA), afectação de verba do orçamento do estado aos dois partidos, distribuição de postos de PCA das empresas públicas numa base equitativa apenas aos militantes destes dois partidos, etc. Suponhamos ainda que este acordo seja selado com base no argumento segundo o qual essa seria a única maneira de preservar a paz no País. E aí?
Querer a paz não é suficiente como contribuição para o debate público. É preciso muito mais. Nenhum de nós é observador neutro do que se passa. Há gente que comenta como se fosse neutra. Não é. E para não deixar ninguém na dúvida quanto ao meu posicionamento: sou profundamente contra a chantagem da Renamo. Pode haver mérito nalgumas das suas reinvidicações, mas ao colocar o País inteiro refém da sua própria inépcia política revelou a sua verdadeira natureza. De democracia entende pouco. E mais: só quem tem posicionamento claro em relação a isto é que tem autoridade moral para criticar os excessos da Frelimo.
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