domingo, 8 de setembro de 2013

Geopolítica do imperialismo contemporâneo


Geopolítica do imperialismo contemporâneo*

Samir Amin*

 

A análise que proponho inscreve-se numa visão histórica geral da expansão do capitalismo, que não vou desenvolver aqui por razões de espaço1. Nesta visão, o capitalismo foi sempre, desde suas origens, um sistema polarizador por natureza, ou seja, imperialista. Esta polarização –quer dizer, a construção concomitante de centros dominantes e periferias dominadas e sua reprodução mais profunda em cada etapa– é própria do processo de acumulação do capital operante em escala mundial, fundado sobre o que chamei de “a lei do valor mundializada”.

Nesta teoria da expansão mundial do capitalismo, as transformações qualitativas dos sistemas de acumulação entre uma fase e outra de sua história constroem as formas sucessivas da polarização assimétrica centros/periferias, ou seja, do imperialismo concreto. O sistema mundial contemporâneo seguirá sendo, conseqüentemente, imperialista (polarizante) para qualquer futuro possível, enquanto a lógica fundamental de suas realizações siga dominada pelas relações de produção capitalistas. Esta teoria associa então o imperialismo com o processo de acumulação de capital em escala mundial, fato que considero como uma única realidade com diferentes dimensões indissociáveis. Ela se diferencia da versão vulgarizada da teoria leninista do “imperialismo como fase superior do capitalismo” (como se as fases anteriores da expansão mundializada do capitalismo não houvessem sido polarizantes) e das teorias pós-modernas contemporâneas, que qualificam a nova mundialização como “pós-imperialista”2.

 

 

Do conflito permanente dos imperialismos ao imperialismo coletivo

Em seu abarcamento mundializado, o imperialismo conjugou-se sempre no plural, desde suas origens no século XIX até 1945. O conflito entre os imperialismos ocupou um lugar decisivo na transformação do mundo através da luta de classes, segundo a qual se expressam as contradições fundamentais do capitalismo. Lutas sociais e conflitos entre imperialismos se articulavam estreitamente, e esta articulação é a que comandou a história do capitalismo realmente existente. Assinalo neste sentido que a análise proposta se distancia amplamente da de “sucessão de hegemonias”.

A Segunda Guerra Mundial provocou uma transformação maior no que concerne às formas do imperialismo: a substituição de um imperialismo coletivo, associando o conjunto dos centros do sistema mundial capitalista (para simplificar, a ”tríade”: os Estados Unidos e sua província exterior canadense, a Europa ocidental e central e o Japão) à multiplicidade de imperialismos em conflito permanente. Esta nova forma de expansão imperialista passou por diferentes fases em seu desenvolvimento, mas ainda está presente. O papel hegemônico eventual dos Estados Unidos, cujas bases será necessário precisar, bem como as formas de sua articulação com o novo imperialismo coletivo, deve ser situado nessa perspectiva. Estas questões apontam problemas, que são precisamente os de que gostaria de tratar a seguir.

Os Estados Unidos obtiveram um benefício gigantesco uma vez finalizada a Segunda Guerra Mundial. Seus principais combatentes –Europa, União Soviética, China e Japão– acabaram arruinados e os Estados Unidos estavam em plenas condições de exercer sua hegemonia econômica, já que concentravam mais da metade da produção industrial do mundo de então e tinham a exclusividade das novas tecnologias que conduziriam o desenvolvimento da segunda metade do século. Além do mais, tinham a exclusividade das armas nucleares –a nova arma “absoluta”. Em Postdam, o tom estadunidense mudou: dias depois dos bombardeios de Hiroxima e Nagasáqui, os Estados Unidos já contavam com armamento nuclear.

Esta dupla vantagem absoluta –econômica e tecnológica– foi desgastada em um tempo relativamente breve (duas décadas) pela dupla recuperação, econômica para a Europa capitalista e para o Japão, militar para a União Soviética. Recordaremos então como este recuo relativo da posição dos Estados Unidos alimentou toda uma época em que floresceu o discurso sobre a “decadência estadunidense”, e inclusive cresceram hegemonias alternativas (Europa, Japão e mais tarde a China).

Nesta etapa situa-se o gaullismo. De Gaulle considerava que o objetivo dos Estados Unidos depois de 1945 havia sido o controle de todo o Velho Mundo (“Eurásia”) e que Washington havia conseguido fazer avançar seus peões, destruindo a Europa –a Europa verdadeira, do Atlântico aos Urais, ou seja, incluindo a “Rússia Soviética”, como ele costumava dizer–, agitando o espectro de uma “agressão” de Moscou na qual ele mesmo não acreditava. Suas análises eram, segundo meu ponto de vista, realistas e perfeitas. Mas ele era quase o único a dizer isso. A contra-estratégia que fazia frente ao “atlantismo” promovido por Washington estava fundada na reconciliação franco-alemã, sobre cujas bases a construção de uma “Europa não-estadunidense” poderia ser concebida, com o cuidado de manter a Grã-Bretanha fora do projeto, já que estava estigmatizada, e com razão, como o Cavalo de Tróia do atlantismo. A Europa então poderia abrir-se a uma reconciliação com a Rússia (soviética). Reconciliar e aproximar os três grandes povos europeus –franceses, alemães e russos– poria um fim definitivo ao projeto estadunidense de dominação do mundo. O dilema interno do projeto próprio europeu pode então resumir-se na opção entre duas alternativas: a Europa atlântica, projeto estadunidense, ou a Europa (integrando nesta perspectiva a Rússia) não-atlântica. Porém este conflito ainda não foi resolvido. As evoluções posteriores –o fim do gaullismo, a admissão da Grã-Bretanha na Europa, o crescimento do Leste, o desmoronamento soviético– favoreceram, até o presente, ao que qualifico como a “supressão do projeto europeu” e sua “dupla dissolução na mundialização econômica neoliberal e no alinhamento político e militar com Washington” (Amin, 2000). Esta evolução anima, além disso, a solidez do caráter coletivo do imperialismo da tríade.

Trata-se de uma transformação qualitativa “definitiva” (não conjuntural)? Implicará forçosamente uma “liderança” dos Estados Unidos, de uma ou outra maneira? Antes de tentar responder a estas perguntas é necessário explicar com mais precisão em que consiste o projeto dos Estados Unidos.

 

 

O projeto da classe dirigente dos Estados Unidos

A iniciativa de estender a Doutrina Monroe a todo o planeta, em toda a sua demente e mesmo criminosa falta de medida, não nasceu da cabeça do Presidente Bush filho, para ser posta em prática por uma junta de extrema direita que chegou ao poder por uma espécie de golpe de Estado como conseqüência de eleições duvidosas.

Este é o projeto que a classe dirigente dos Estados Unidos concebe depois de 1945 e do qual nunca se apartou, apesar de, com toda a evidência, sua realização ter conhecido algumas vicissitudes. A ponto de fracassar, só pôde ser levado a cabo com a coerência e a violência necessárias em certos momentos conjunturais como o nosso, conseqüência da derrocada da União Soviética.

O projeto atribuiu sempre um papel decisivo a sua dimensão militar. Concebido em Postdam, tal e como argumentei anteriormente, este projeto apoiava-se sobre o monopólio nuclear. Muito rapidamente os Estados Unidos puseram em marcha uma estratégia militar global, dividindo o planeta em regiões e delegando a responsabilidade do controle de cada uma delas a um US Military Command. Volto aqui a recordar o que escrevi antes da queda da URSS acerca da posição prioritária que ocupava o Oriente Médio nesta visão estratégica global (Amin e outros, 1992). O objetivo não era somente “encerrar em um círculo a URSS” (e a China), mas também dispor dos meios que fariam de Washington o dono absoluto de todas as regiões do planeta. Dito de outro modo, estender a todo o planeta a Doutrina Monroe, que efetivamente outorgava aos Estados Unidos o “direito” exclusivo sobre o Novo Mundo de acordo com o que eles definiam como seus “interesses nacionais”.

Desta maneira, a “soberania dos interesses nacionais dos Estados Unidos” era colocada acima de todos os outros princípios que delimitavam os comportamentos políticos considerados como meios “legítimos”, desenvolvendo uma desconfiança sistemática frente a todo o direito supranacional. Certamente os imperialistas do passado não se haviam comportado de maneira diferente, e aqueles que busquem atenuar as responsabilidades –e os comportamentos criminosos– dos dirigentes estadunidenses no momento atual, buscando “escusas”3, devem considerar o mesmo argumento –o dos antecedentes históricos indiscutíveis.

Desejaríamos ver mudar a história, tal como parecia suceder depois de 1945. O conflito entre os imperialismos e o desprezo ao direito internacional, dados os horrores que as potências fascistas provocaram durante a Segunda Guerra Mundial, foram os elementos que levaram a que a ONU fosse fundada sobre um novo princípio que proclamava o caráter ilegítimo das guerras. Os Estados Unidos, poderíamos dizer, não fizeram sua parte nesse princípio, mas foram ainda mais longe que seus precoces iniciadores. Um dia depois da Primeira Guerra Mundial, Wilson preconizava voltar a fundar a política internacional em princípios diferentes dos que, depois do tratado da Vestefália (1648), haviam dado a soberania aos Estados monárquicos e mais tarde às nações mais ou menos democráticas, dado que esse caráter absoluto estava questionado pelo desastre a que havia sido conduzida a civilização moderna. Pouco importa que as vicissitudes da política interna dos Estados Unidos tenham adiado a colocação em marcha desses princípios, já que, por exemplo, Franklin D. Roosevelt e seu sucessor Henry S. Truman tiveram um papel decisivo na definição do novo conceito de multilateralismo e na condenação às guerras que o acompanhavam, base da Carta das Nações Unidas.

Essa bela iniciativa –apoiada pelos povos de todo o mundo naquele momento–, que representava efetivamente um salto qualitativo no progresso da civilização, nunca contou com a convicção nem com o apoio das classes dirigentes dos Estados Unidos. As autoridades de Washington sempre se sentiram mal dentro da ONU e hoje proclamam brutalmente o que estiveram obrigadas a esconder até este momento: não aceitam sequer o conceito de um direito internacional superior ao que consideram ser as exigências da defesa de seus “interesses nacionais”. Não creio que seja aceitável encontrar desculpas diante desse retorno à visão que os nazistas haviam desenvolvido em outro momento ao exigir a destruição da Liga das Nações. Predicar a favor do direito, com tanto talento e elegância como o fez Dominique de Villepin diante do Conselho de Segurança, lamentavelmente hoje constitui apenas um “olhar nostálgico em direção ao passado”, em vez de ser uma maneira de nos lembrarmos de como deve ser o futuro. Os Estados Unidos, nessa ocasião, defenderam um passado que acreditávamos definitivamente ultrapassado.

No imediato pós-guerra a liderança estadunidense não somente foi aceita, mas foi também solicitada pelas burguesias da Europa e do Japão. Porque ainda que a realidade de uma ameaça de “invasão soviética” só podia convencer aos pobres de espírito, sua invocação prestava bons serviços tanto à direita como aos social-democratas, a quem seus primos e adversários comunistas pisavam os calcanhares. Poderíamos então crer que o caráter coletivo do novo imperialismo somente se deveu a esse fator político, e que uma vez que a Europa e o Japão recuperassem seu desenvolvimento buscariam livrar-se da tutela incômoda e inútil de Washington. Mas este não foi o caso. Por quê?

Minha explicação exige recordar o crescimento dos movimentos de libertação nacional na Ásia e na África –a era de Bandung 1955-1975 (Amin, 1989)– e o apoio que a União Soviética e a China lhes deram (cada uma à sua maneira). O imperialismo viu-se então obrigado a agir, não somente aceitando a coexistência pacífica com uma área vasta que se lhe escapava (“o mundo socialista”), mas também negociando os termos da participação dos países da Ásia e da África no sistema mundial imperialista. A alienação do coletivo da tríade sob a liderança estadunidense parecia um fato inútil para poder dominar as relações Norte-Sul da época. Esta é a razão pela qual os Não-Alinhados se encontraram confrontados frente a um “bloco ocidental” praticamente sem fissuras.

O derrocamento da União Soviética e o desvanecimento dos regimes nacional-populistas nascidos das lutas de libertação nacional possibilitaram, evidentemente, que o projeto dos Estados Unidos se realizasse com vigor, sobretudo no Oriente Médio, mas também na África e na América Latina. O governo econômico do mundo tendo como base os princípios do neoliberalismo, posto em prática pelo Grupo dos Sete e pelas instituições a seu serviço (OMC, Banco Mundial e FMI) e os planos de reajuste estrutural impostos ao Terceiro Mundo são expressões disso. No plano político, podemos constatar que num primeiro momento europeus e japoneses aceitaram alinhar-se com o projeto dos Estados Unidos, durante as guerras do Golfo (1991) e depois na da Iugoslávia e Ásia Central (2002), aceitando marginalizar a ONU em favor da OTAN. Este primeiro momento não foi ainda superado, ainda que alguns sinais indiquem um possível fim a partir da guerra do Iraque (2003 [a] e [b]).

A classe dirigente dos Estados Unidos proclama sem reticência alguma que não “tolerará” a reconstituição de nenhuma potência econômica ou militar capaz de questionar seu monopólio de dominação do planeta e se atribui, com esta finalidade, o direito de conduzir “guerras preventivas”. Três adversários potenciais se vislumbram.

Em primeiro lugar a Rússia, cujo desmembramento constitui o objetivo estratégico maior para os Estados Unidos. A classe dirigente russa não parece haver compreendido isto até o momento. Ela parece haver-se convencido de que, depois de haver “perdido a guerra”, poderia “ganhar a paz”, tal como aconteceu com a Alemanha e o Japão. Esquecem-se de que Washington tinha a necessidade de ajudar a estes dois adversários da Segunda Guerra Mundial, precisamente para fazer frente ao desafio soviético. A nova conjuntura é diferente, os Estados Unidos não têm competidores sérios. Sua opção é então destruir definitiva e completamente o adversário russo derrotado. Putin terá compreendido isso e a Rússia abandonará suas ilusões?

Em segundo lugar a China, cuja massa e êxito econômico inquietam os Estados Unidos, que igualmente têm como objetivo estratégico desmembrar este grande país (Amin, 1996: capitulo VII).

A Europa está em terceiro lugar dentro desta visão global que têm os novos donos do mundo. Mas com este caso os dirigentes estadunidenses não parecem inquietos, ao menos até o momento. O atlantismo incondicional de uns (Grã-Bretanha e os novos poderes servis do Estado), as “areias movediças do projeto europeu” (ponto ao qual regressarei) e os interesses convergentes do capital dominante do imperialismo coletivo da tríade contribuem para o desvanecimento do projeto europeu, mantido em seu status de “modo europeu do projeto dos Estados Unidos”. A diplomacia de Washington conseguiu manter a Alemanha em seu lugar, e a reunificação e a conquista da Europa do Leste aparentemente reforçaram esta aliança: a Alemanha encorajou-se a retomar sua tradição de “expansão para o Leste”. O papel de Berlim no desmembramento da Iugoslávia, com o reconhecimento da independência da Eslovênia e da Croácia, foi uma expressão disso (Amin, 1994); e, de resto, a Alemanha foi convidada a sentar-se na beiradinha do trono de Washington. No entanto, a classe política alemã parece vacilante e pode estar dividida quanto a suas opções estratégicas. A alternativa de um renovado alinhamento atlântico tem como contrapartida um reforço do eixo Paris-Berlim-Moscou, que se converteria no pilar mais sólido de um sistema europeu independente de Washington.

Podemos regressar então a nossa questão central: natureza e solidariedade eventual do imperialismo coletivo da tríade, e as contradições e debilidades de sua liderança por parte dos Estados Unidos.

 

 

O imperialismo coletivo da tríade e a hegemonia dos Estados Unidos: sua articulação e suas contradições

O mundo de hoje é militarmente unipolar. Simultaneamente, parecem desenhar-se fraturas entre os Estados Unidos e certos países europeus no que concerne à gestão política de um sistema mundializado, alinhado –em primeira instância– em seu conjunto sob os princípios do liberalismo. Estas fraturas são somente conjunturais e de alcance limitado ou anunciam mudanças duradouras? Haveria que analisar em toda a sua complexidade as lógicas que comandam os desdobramentos da nova fase do imperialismo coletivo (as relações Norte-Sul, para usar uma linguagem corrente) e os objetivos próprios do projeto dos Estados Unidos. Neste espírito é que abordarei sucinta e sucessivamente cinco séries de questões.

 

 

A natureza das evoluções que contribuem para a constituição do novo imperialismo coletivo

Sugiro aqui que a formação do novo imperialismo coletivo tem origem na transformação das condições da concorrência. Há algumas décadas, as grandes empresas travavam suas batalhas concorrenciais em geral nos mercados nacionais, fosse nos Estados Unidos (maior mercado nacional do mundo) ou nos Estados europeus (apesar de sua dimensão modesta). Os vencedores dos matches nacionais podiam situar-se em boas posições no mercado mundial. Atualmente, a dimensão do mercado necessária para chegar ao primeiro nível dos matches se aproxima dos 500/600 milhões de “consumidores potenciais”. E são os que atingem este mercado que se impõem em seus respectivos terrenos nacionais. A mundialização profunda é o primeiro âmbito de atividade das grandes empresas. Dito de outro modo, na dicotomia nacional/mundial os termos da causalidade se inverteram: antes a potência nacional comandava a presença mundial, hoje é o contrário. Desta maneira, as empresas transnacionais, seja qual for sua nacionalidade, têm interesses comuns na gestão do mercado mundial. Estes interesses se superpõem aos conflitos permanentes e mercantis que definem todas as formas de concorrência próprias do capitalismo, sejam quais forem.

A solidariedade dos segmentos dominantes do capital transnacional com todos os integrantes da tríade é real, e se expressa em sua filiação ao neoliberalismo globalizado. Os Estados Unidos são vistos dentro desta perspectiva como os defensores (militares, se necessário for) de seus “interesses comuns”. Isso não quer dizer que Washington entenda que deve “compartir eqüitativamente” os proveitos de sua liderança. Os Estados Unidos empenham-se, pelo contrário, em submeter seus aliados e somente estão dispostos a ceder concessões menores a seus subalternos da tríade. Este conflito de interesses do capital dominante chegará até o ponto de produzir uma ruptura com a aliança atlântica? Isso não é impossível, mas é pouco provável.

 

 

O lugar dos Estados Unidos na economia mundial

A opinião geral é a de que o potencial militar dos Estados Unidos representa apenas a ponta do iceberg que estende sua superioridade sobre os países em todos os domínios –econômico, político e cultural. A submissão à hegemonia estadunidense seria assim algo inevitável. Considero, em contraponto, que no sistema de imperialismo coletivo os Estados Unidos não têm vantagens econômicas decisivas, já que seu sistema produtivo está longe de ser o “mais eficiente do mundo”. Pelo contrário, quase nenhum de seus segmentos seria capaz de ganhar de seus competidores num mercado verdadeiramente aberto como o que imaginam os economistas liberais. Prova disso é o agravamento de seu déficit comercial. Praticamente em todos os segmentos do sistema produtivo, inclusive bens de alta tecnologia, o superávit cedeu seu lugar a um déficit. A concorrência entre a Ariane e os foguetes da Nasa, e entre a Airbus e a Boeing, prova a vulnerabilidade da vantagem estadunidense. Frente à Europa e ao Japão, no que tange aos produtos de alta tecnologia, à China, à Coréia e a outros países industrializados da Ásia e da América Latina no que diz respeito a produtos manufaturados banais, e frente à Europa e ao Cone Sul da América Latina no que se refere à agricultura, os Estados Unidos não ganhariam a competição se não recorressem a “meios extra-econômicos” que violam os próprios princípios do liberalismo impostos a seus competidores!

Os Estados Unidos têm vantagens comparativas estabelecidas apenas no setor armamentista, precisamente porque este escapa amplamente das regras de mercado e se beneficia com o apoio estatal. Sem dúvida, esta vantagem traz algumas outras para a esfera civil (a internet é o exemplo mais conhecido), mas é de qualquer modo a causa de sérias distorções que constituem handicaps para muitos setores produtivos.

A economia estadunidense vive como parasita em detrimento de seus sócios no sistema mundial. “Os Estados Unidos dependem para 10% de seu consumo industrial de bens cuja importação não está coberta por exportações de produtos nacionais” (Emmanuel Todd, 2002). O mundo produz, os Estados Unidos (cuja poupança nacional é praticamente nula) consomem. A “vantagem” dos Estados Unidos é a de um depredador cujo déficit está coberto com o aporte alheio, obtido na base do consentimento ou da força. Os meios postos em prática por Washington para compensar suas deficiências são de naturezas as mais diversas: violações unilaterais repetidas dos princípios do liberalismo, exportações de armas e busca de rendas petroleiras (que pressupõem o acordo de seus produtores, um dos motivos reais das guerras da Ásia central e do Iraque). O essencial do déficit americano está coberto pelos aportes de capitais que provêm da Europa e do Japão, do Sul (países petroleiros ricos e classes compradoras de todos os países do Terceiro Mundo, incluindo os mais pobres), a que poderíamos acrescentar a sangria exercida em nome do serviço da dívida e imposta à quase totalidade dos países da periferia do sistema mundial.

O crescimento dos anos Clinton –vangloriado como o produto de um “liberalismo” ao qual a Europa resistiu desgraçadamente– é fictício e não generalizável, pois se apoiou em transferências de capital que implicaram prejuízos a seus sócios. Em todos os segmentos do sistema produtivo real o crescimento dos Estados Unidos não foi melhor que o da Europa. O “milagre estadunidense” alimentou-se exclusivamente do crescimento dos gastos produzidos pelo agravamento das desigualdades sociais (serviços financeiros e pessoais, legiões de advogados e de seguranças privados, etc.). Neste sentido, o liberalismo de Clinton preparou bem as condições que permitiram o avanço reacionário e a vitória posterior de Bush filho.

As causas que originaram o debilitamento do sistema produtivo dos Estados Unidos são complexas e estruturais. A mediocridade dos sistemas de ensino geral e de formação, e o preconceito tenaz que favorece sistematicamente o “privado” em detrimento do serviço público contam-se entre as principais razões da profunda crise que atravessa a sociedade dos Estados Unidos

Deveríamos então espantar-nos com o fato de que os europeus, longe de tirar estas conclusões que se impõem ao constatar a insuficiência da economia dos Estados Unidos, se esforcem para imitá-los. O vírus liberal tampouco explica tudo, ainda que tenha algumas funções úteis para o sistema, como a de paralisar a esquerda. A privatização a qualquer custo e o desmantelamento dos serviços públicos só conseguirão reduzir as vantagens comparativas das quais se beneficia ainda a “Velha Europa”, como a qualifica Bush. Mas, sejam quais forem os danos que ocasionarão em longo prazo, essas medidas oferecem ao capital dominante, que vive no curto prazo, a ocasião de proveitos suplementares.

 

 

Os objetivos próprios do projeto dos Estados Unidos

A estratégia hegemônica dos Estados Unidos se situa no âmbito de um novo imperialismo coletivo.

Os economistas (convencionais) não dispõem de ferramentas analíticas que lhes permitam compreender toda a importância do primeiro destes objetivos. Não os ouvimos repetir até o cansaço que na “nova economia” as matérias-primas que oferece o Terceiro Mundo perderão sua importância e, como conseqüência, os países subdesenvolvidos serão cada vez mais marginais no sistema mundial? Em contraponto a este discurso ingênuo e leviano, o Mein Kampf da nova administração de Washington4 confessa que os Estados Unidos arvoraram-se no direito de apropriar-se de todos os recursos naturais do planeta para satisfazer prioritariamente a seus consumidores. A corrida pelas matérias-primas (petróleo, água e outros recursos) já se nos apresenta com toda sua virulência. Sobretudo no caso de recursos ameaçados de extinção, não apenas pelo câncer exponencial provocado pelo esbanjamento do consumo ocidental, mas também pelo desenvolvimento da nova industrialização das periferias.

Por outro lado, um respeitável número de países do Sul é chamado a transformar-se em produtores industriais cada vez mais importantes, tanto em seus mercados internos como no mercado mundial. Importadores de tecnologias, de capitais, mas também competidores na exportação, estarão presentes nos equilíbrios mundiais com um peso crescente. Não se trata somente de alguns países do leste da Ásia (como a Coréia), mas da imensa China e, amanhã, da Índia e dos grandes países da América Latina. No entanto, longe de ser este um fator de estabilidade, a aceleração da expansão capitalista no Sul somente poderá ser a causa de conflitos violentos, internos e internacionais. Porque esta expansão não pode absorver, nas condições da periferia, a enorme força de trabalho que se encontra ali concentrada. Neste sentido, as periferias do sistema são “zonas de tempestade”. Os centros do sistema capitalista têm necessidade de exercer seu domínio nas periferias e de submeter seus povos à disciplina feroz que exige a satisfação de suas prioridades.

Nesta perspectiva, os dirigentes estadunidenses compreenderam perfeitamente que, para conservar sua hegemonia, dispõem de três vantagens decisivas sobre seus competidores europeus e japonês: o controle dos recursos naturais do globo terrestre, o monopólio militar e o peso que tem a “cultura anglo-saxã”, através da qual se expressa preferencialmente a dominação ideológica do capitalismo. A colocação em prática de maneira sistemática destas três vantagens esclarece muitos aspectos da política dos Estados Unidos, sobretudo os esforços insistentes que Washington realiza pelo controle militar do Oriente Médio petroleiro, sua estratégia ofensiva frente à Coréia –aproveitando-se da “crise financeira” do país– e frente à China, e o sutil jogo que busca perpetuar as divisões na Europa –mobilizando com esta finalidade seu aliado incondicional britânico– e impedir uma aproximação séria entre a União Européia e a Rússia. No plano do controle global sobre os recursos do planeta, os Estados Unidos dispõem de vantagens decisivas sobre a Europa e o Japão. Não apenas porque são a única potência militar mundial, fato pelo qual nenhuma intervenção forte no Terceiro Mundo pode ser conduzida sem eles, mas porque a Europa (ex-URSS excluída) e o Japão estão privados dos recursos essenciais para a sobrevivência de suas economias. Por exemplo, sua dependência no domínio energético, sobretudo sua dependência petroleira do Golfo, será considerável durante largo tempo, mesmo que decresça em termos relativos. Tomando –militarmente– o controle desta região com a guerra do Iraque, os Estados Unidos demonstraram que estavam perfeitamente conscientes da utilidade deste meio de pressão frente a seus aliados-competidores. Em outros tempos, o poder soviético havia compreendido esta vulnerabilidade da Europa e do Japão, e certas intervenções soviéticas no Terceiro Mundo tiveram o objetivo de recordá-lo, de maneira que fossem sempre levados a negociar em outro terreno. Evidentemente, as deficiências da Europa e do Japão poderiam ser compensadas com a hipótese de uma séria aproximação Europa-Rússia (a “casa comum” de Gorbatchov). Esta é a razão pela qual o perigo desta construção na Eurásia foi vivido por Washington como um pesadelo.

 

 

Os conflitos que opõem, neste âmbito, os Estados Unidos a seus sócios da tríade

Ainda que os sócios da tríade compartilhem interesses comuns na gestão mundial do imperialismo coletivo em suas relações com o Sul, eles têm também uma relação conflitiva potencialmente séria.

A superpotência americana vive graças aos fluxos de capitais que alimentam o parasitismo de sua economia e de sua sociedade. A vulnerabilidade dos Estados Unidos constitui, assim, uma séria ameaça para o projeto de Washington.

A Europa –em particular– e o resto do mundo –em geral– deverão escolher entre uma das duas opções estratégicas seguintes: utilizar o “excedente” dos capitais (“de poupança”) de que dispõem para financiar o déficit dos Estados Unidos (de consumo, investimentos e gastos militares), ou conservar e investir em si mesmos tais excedentes.

Os economistas convencionais ignoram o problema, com base numa hipótese (que carece de sentido) de que a “mundialização” suprimirá as nações, e as grandezas econômicas (poupança e investimentos) não poderão ser administradas em nível internacional. Trata-se de um raciocínio tautológico, que implica em suas próprias premissas as conclusões às quais querem chegar: justificar e aceitar o financiamento do déficit dos Estados Unidos por parte dos outros porque, em nível mundial, encontraremos a igualdade entre poupança e investimentos!

Por que semelhante disparate é aceito? Sem dúvida, as equipes de “sábios economistas” que existem nas classes políticas européias (e outras, como as russas e as chinesas) da direita e da esquerda eleitoral são as próprias vítimas da alienação economicista que chamo de “vírus liberal”. Mais ainda, através desta opinião se expressa o juízo político do grande capital transnacional, que considera que as vantagens procuradas pela gestão do sistema mundializado pelos Estados Unidos por conta do imperialismo coletivo estão acima de seus inconvenientes: o tributo a pagar a Washington para assegurar a própria permanência. Porque se trata de um tributo, e não de um negócio de boa rentabilidade garantida. Há países qualificados como “países pobres endividados” que estão obrigados a assegurar o serviço de sua dívida a qualquer preço. Mas há também “países potentes endividados” que têm todos os meios que lhes permitiriam desvalorizar sua dívida, se o consideram necessário.

A outra opção para a Europa (e para o resto do mundo) consistiria em pôr fim à transfusão a favor dos Estados Unidos. Os excedentes poderiam ser então utilizados nos lugares de origem e reativar as economias. Porque a transfusão exige a submissão dos europeus às políticas “desinflacionárias” (termo impróprio da linguagem econômica convencional e que eu substituiria por “sentenciárias”) para poder tirar um excedente de poupança exportável. Isso retarda o crescimento da Europa –sempre medíocre– em relação ao –sustentado artificialmente –dos Estados Unidos. Em sentido inverso, a mobilização desses excedentes para serem empregados localmente na Europa permitiria estimular simultaneamente o consumo (através da reconstrução da dimensão social da gestão econômica devastada pelo vírus liberal), o investimento –em particular nas novas tecnologias (e financiar suas pesquisas)–, e inclusive os gastos militares (pondo fim às “vantagens” dos Estados Unidos neste domínio). A opção a favor desta resposta perante o desafio implica um reequilíbrio das relações sociais em favor das classes trabalhadoras. Conflitos entre Nações e lutas sociais se articulam desta maneira. Em outras palavras, o contraste Estados Unidos/Europa não opõe fundamentalmente os interesses dos segmentos dominantes do capital dos diferentes sócios. Ele é resultado, antes de qualquer coisa, das diferenças entre as culturas políticas.

 

 

Os problemas teóricos que sugerem as reflexões precedentes

A cumplicidade/concorrência entre os sócios do imperialismo coletivo pelo controle do Sul (saqueio de seus recursos naturais e submissão de seus povos) pode ser analisada a partir de diversos ângulos de visões diferentes. Farei, neste sentido, três observações que me parecem essenciais.

Primeira observação: o sistema mundial contemporâneo, que eu qualifico como imperialista coletivo, não é “menos” imperialista que os precedentes. Ele não é um “Império” de natureza “pós-capitalista”. Proponho, assim, uma crítica às formulações ideológicas do “disfarce” que alimenta este discurso dominante “na moda”5.

Segunda observação: merece ser feita uma leitura da história do capitalismo, mundializado desde suas origens, ancorada na distinção entre as diferentes fases do imperialismo (relações centros/periferias). Existem, é claro, outras leituras desta mesma história, sobretudo as que se articulam ao redor da “sucessão de hegemonias” (Amin, 1996: capítulo III). Pessoalmente, tenho algumas reservas em relação a esta última leitura. Logo de entrada e essencialmente, porque ela é “ocidentalocêntrica”, no sentido de que considera que as transformações que se operam no coração do sistema, em seus centros, comandam de maneira decisiva –e quase exclusiva– a evolução global do sistema. Creio que as reações dos povos da periferia perante os desdobramentos imperialistas não devem ser subestimadas, porque elas provocaram a independência da América, as grandes revoluções feitas em nome do socialismo (Rússia e China), a reconquista da independência dos países asiáticos e africanos, e porque, além do mais, não creio que possamos prestar contas da história do capitalismo mundial sem levar em consideração os “ajustes” que estas transformações impuseram ao próprio capitalismo central. A história do imperialismo parece-me que foi construída mais pelos conflitos dos imperialismos que pelo tipo de “ordem” que as hegemonias sucessivas tenham imposto. Os períodos de “hegemonia” aparente foram sempre muito breves e a hegemonia em questão é algo muito relativo.

Terceira observação: mundialização não é sinônimo de “unificação” do sistema econômico por meio da “abertura desregulada dos mercados”. Esta –em suas formas históricas sucessivas (“a liberdade de comércio” ontem, a “liberdade de empresa” hoje)– representa um projeto unicamente do capital dominante. Na realidade, este projeto esteve quase sempre obrigado a adaptar-se a exigências que não formam parte de sua lógica interna, exclusiva e própria. Pôde ser posto em prática apenas em breves momentos da história. O “livre intercâmbio”, promovido pela maior potência industrial de sua época –a Grã-Bretanha– somente foi efetivo durante duas décadas (1860–1880), a que sucedeu um século (entre 1880 e 1980) caracterizado pelo conflito entre os imperialistas e pela forte desconexão dos chamados países socialistas (a partir da Revolução Russa de 1917, e depois a da China) e a mais modesta, dos países do nacional-populismo (Ásia e África, 1955-1975). O momento atual de reunificação do mercado mundial (a “livre empresa”), inaugurado pelo neoliberalismo a partir de 1980, estendeu-se ao conjunto do planeta com a queda soviética. O caos que gerou atesta seu caráter de “utopia permanente do capital”, termo com o qual o qualifiquei em O Império do Caos (Amin, 1991).

 

 

O Oriente Médio no sistema imperialista

O Oriente Médio, com suas antigas extensões ao Cáucaso e à Ásia central ex-soviéticos, ocupa uma posição de importância particular na geoestratégia/geopolítica do imperialismo e, particularmente, no projeto hegemônico dos Estados Unidos. Deve esta posição a três fatores: sua riqueza petroleira, sua posição geográfica no coração do Velho Mundo e o fato de que constitui na atualidade o “ventre” do sistema mundial.

O acesso ao petróleo relativamente barato é vital para a economia da tríade dominante, e o melhor meio de ver este acesso garantido consiste, bem entendido, em assegurar o controle político da região.

Mas a região deve sua importância também a sua posição geográfica, no centro do Velho Mundo, eqüidistante em relação a Paris, Pequim, Cingapura e Joanesburgo. Em outros tempos, o controle deste lugar de passagem obrigatória deu ao Califa o privilégio de tirar os maiores benefícios da mundialização da época (Amin, 1996: capítulos I e II). Depois da Segunda Guerra Mundial, a região, situada no flanco sul da URSS, ocupava, por esta razão, um lugar importante na estratégia de cercar militarmente a potência soviética. E a região não perdeu sua importância apesar da queda do adversário soviético, porque instalando-se nela os Estados Unidos poderiam simultaneamente avassalar a Europa e submeter a Rússia, a China e a Índia a uma chantagem permanente nascida das intervenções militares, se necessário fosse. O controle da região permite assim efetivar a extensão da Doutrina Monroe ao Velho Mundo, o que constitui o objetivo do projeto hegemônico dos Estados Unidos.

Os esforços realizados com continuidade e constância por Washington, desde 1945, para assegurar o controle da região –excluindo os britânicos e os franceses– não haviam sido até o momento coroados pelo êxito. Recordemos o fracasso da tentativa de associar a região à OTAN através do Pacto de Bagdá, e mais tarde a queda do xá do Irã, um de seus aliados mais fiéis.

A razão era simplesmente que o projeto de populismo nacionalista árabe (e persa) entrava em conflito com os objetivos da hegemonia estadunidense. Este projeto árabe tinha a ambição de impor às potências o reconhecimento da independência do mundo árabe. Este foi o sentido que teve o “não-alinhamento” formulado em 1955, em Bandung, pelo conjunto dos movimentos de libertação dos povos da Ásia e da África que tinham o vento a seu favor. Os soviéticos compreenderam rapidamente que fornecendo seu apoio a este projeto manteriam em xeque os planos agressivos de Washington.

A página desta época foi virada, para começar porque o projeto nacional-populista do mundo árabe rapidamente esgotou seu potencial de transformação, e porque os poderes nacionalistas se converteram em ditaduras sem programa. O vazio criado por esta deriva abriu o caminho ao Islão político e às autocracias obscurantistas do Golfo, aliados preferenciais de Washington. A região se converteu num dos ventres do sistema global, produzindo conjunturas que permitiram intervenções exteriores (incluídas as militares) que os regimes locais não puderam conter –nem mesmo desalentar– devido à falta de legitimidade perante seus povos.

A região constituía –e constitui–, no mapa geomilitar estadunidense que cobre o planeta inteiro, uma zona considerada de primeira máxima (como o Caribe), ou seja, uma zona onde os Estados Unidos se outorgaram o “direito” de intervenção militar. E depois de 1990 eles não se privam disto!

Os Estados Unidos operam no Oriente Médio em estreita colaboração com seus aliados Turquia e Israel. A Europa manteve-se fora da região, aceitando que os Estados Unidos defendam sozinhos os interesses vitais globais da tríade, quais sejam, fundamentalmente o abastecimento de petróleo. Apesar dos signos de irritação evidentes depois da guerra do Iraque, os europeus continuam, em seu conjunto e no que se refere ao Oriente Médio, dançando conforme a música de Washington.

Por outro lado, o expansionismo colonial de Israel constitui um desafio real. Israel é o único país do mundo que rejeita reconhecer fronteiras definitivas (e por isso não tem o direito de ser membro das Nações Unidas). Como os Estados Unidos no século XIX, Israel considera que tem o “direito” de conquistar novas áreas e de tratar os povos que as habitam há milhares de anos como peles-vermelhas. Israel é o único país que declara abertamente que as resoluções da ONU não lhe concernem.

A guerra de 1967, planejada com Washington desde 1965, perseguia diversos objetivos: amortecer a derrocada dos regimes nacional-populistas, romper sua aliança com a União Soviética, obrigá-los a reposicionar-se sob as ordens estadunidenses e abrir terras novas para a colonização sionista. Nos territórios conquistados em 1967 Israel pôs em prática um sistema de apartheid inspirado no da África do Sul.

E é neste ponto que os interesses do capital dominante mundial se conciliam com os do sionismo. Porque um mundo árabe modernizado, rico e potente, questionaria o acesso garantido dos países ocidentais ao saqueio de seus recursos petroleiros, fato necessário para continuar com o esbanjamento associado à acumulação capitalista. Os poderes políticos dos países da tríade, os quais são fiéis servidores do capital transnacional dominante, não desejam a existência de um mundo árabe moderno e potente.

A aliança entre as potências ocidentais e Israel está fundada assim na solidez de seus interesses comuns. Esta aliança não é nem o produto de um sentimento de culpa dos europeus, responsáveis pelo anti-semitismo e pelos crimes nazistas, nem tampouco da habilidade do “lobby judaico” para explorar esse sentimento. Se as potências ocidentais pensaram que seus interesses não estavam em conjugação com o expansionismo colonial sionista, encontrariam rapidamente os meios para sobrepor-se a seu “complexo” e neutralizar o “lobby judaico”. Não sou daqueles que acreditam ingenuamente que a opinião pública nos países democráticos se impõe sobre os poderes. Sabemos que a opinião se “fabrica” também. Israel seria incapaz de resistir muito tempo a medidas (mesmo moderadas) de bloqueio, tal como o que as potências ocidentais impuseram à Iugoslávia, ao Iraque e a Cuba. Não seria então nada difícil fazer Israel tomar juízo e criar as condições para uma paz verdadeira, se assim se desejasse. Mas não se deseja.

Um dia depois da derrota em 1967, Sadat declarava que já que os Estados Unidos tinham em suas mãos “noventa por cento das cartas” (esta foi sua expressão), havia que romper com a URSS, reintegrar-se ao campo ocidental e que, graças a isto, poderiam obter de Washington a concessão de que exercesse uma pressão suficiente sobre Israel para fazê-lo tomar juízo. Para além desta “idéia estratégica” própria de Sadat –cuja inconsistência os eventos subseqüentes trataram de revelar–, a opinião pública árabe permaneceu amplamente incapaz de compreender a dinâmica da expansão capitalista mundial, e menos ainda de identificar suas contradições e debilidades verdadeiras. Quantas vezes não ouvimos dizer e repetir que “os ocidentais compreenderiam com o tempo que era de seu próprio interesse manter boas relações com as duas centenas de milhões de árabes –seus vizinhos imediatos– e não sacrificar estas relações pelo apoio incondicional a Israel”? Isto significa implicitamente pensar que os “ocidentais” em questão (quer dizer, o capital dominante) desejam um mundo árabe modernizado e desenvolvido, e não compreender que desejam, pelo contrário, mantê-los na prostração, e que para tanto lhes resulta útil o apoio a Israel.

A opção escolhida pelos governos árabes –com exceção da Síria e do Líbano– de corroborar o plano estadunidense de pretensa “paz definitiva” não podia dar resultados diferentes dos que deu: encorajar Israel a fazer avançar seus peões em seu projeto expansionista. Rejeitando na atualidade abertamente os termos do “acordo de Oslo”, Ariel Sharon demonstra apenas o que deveríamos ter compreendido antes– que não se tratava de um projeto de “paz definitiva”, mas de começar uma nova etapa da expansão colonial sionista.

O estado de guerra permanente que Israel e as potências ocidentais que sustentam seu projeto impõem à região constitui um poderoso motivo que permite aos sistemas árabes autocráticos perpetuar-se. Este bloqueio, ante uma evolução democrática possível, debilita as oportunidades de renovação árabe e permite a ação do capital dominante e da estratégia hegemônica dos Estados Unidos. O laço está feito: a aliança israelo-estadunidense serve perfeitamente aos interesses de ambos os sócios.

Num primeiro momento, o sistema de apartheid posto em marcha depois de 1967 deu a impressão de ser capaz de atingir seus fins. A administração covarde do cotidiano nos territórios ocupados, por parte dos notáveis e da burguesia comerciante, parecia aceita pelo povo palestino. A OLP, afastada da região depois da invasão do Líbano por parte do exército israelense (1982) parecia não ter os meios –de seu longínquo exílio em Tunis– para questionar a anexação sionista.

A primeira Intifada ocorreu em dezembro de 1987. Explosão de aparência “espontânea”, ela expressava o irrompimento em cena das classes populares, e singularmente de seus segmentos mais pobres, confinados nos campos de refugiados. A Intifada boicotou o poder israelense através da organização de uma desobediência cívica sistemática. Israel reagiu com brutalidade, mas não pôde nem restabelecer seu poder policial com eficácia, nem o das classes médias palestinas. Pelo contrário, a Intifada chamava a um retorno em massa das forças políticas no exílio, à constituição de novas formas locais de organização e à adesão das classes médias à luta de liberação desatada. A Intifada foi provocada por jovens, inicialmente não organizados nas redes formais da OLP (Fatah, devota a seu chefe Iasser Arafat, a FDLP, a FPLP e o Partido Comunista), que se integraram imediatamente à Intifada e ganharam a simpatia da maior parte de seus Chebab. Os Irmãos Muçulmanos, num limbo político dada a sua débil atividade durante os anos precedentes, apesar de algumas ações da Jihad Islâmica, fizeram sua aparição em 1980, cedendo lugar a uma nova expressão de luta: Hamas, constituído em 1988.

Enquanto que esta primeira Intifada dava, depois de dois anos de expansão, sinais de esgotamento, dada a violenta repressão dos israelenses (uso de armas de fogo contra crianças, fechamento da “linha verde” aos trabalhadores palestinos –fonte quase exclusiva de renda para suas famílias, etc.), a cena estava montada para uma “negociação” cuja iniciativa coube aos Estados Unidos, conduzindo aos acordos de Madri (1991) e mais tarde aos chamados da paz em Oslo (1993). Estes acordos permitiram o retorno da OLP aos territórios ocupados e sua transformação em uma “Autoridade Palestina” (1994).

Os acordos de Oslo idearam a transformação dos territórios ocupados em um ou vários bantustões, definitivamente integrados ao espaço israelense. Em meio a isto, a Autoridade Palestina devia ser apenas um falso Estado –como o dos bantustões– e de fato ser a correia de transmissão da ordem sionista.

De regresso à Palestina, a OLP convertida em Autoridade pôde estabelecer sua ordem, não sem algumas ambigüidades. A Autoridade absorveu em suas novas estruturas a maior parte dos Chebab que haviam coordenado a Intifada. Conquistou legitimidade pela consulta eleitoral de 1996, da qual os palestinos participaram em massa (oitenta por cento), enquanto Arafat fez-se plebiscitar como Presidente dessa Autoridade. A Autoridade permaneceu, no entanto, em uma posição ambígua: aceitaria as funções que Israel, os Estados Unidos e a Europa lhe atribuíam, a de “governo de um bantustão”, ou se alinharia com o povo palestino, que rejeitava se submeter?

Como o povo palestino rejeitou o projeto de bantustão, Israel decidiu denunciar os acordos de Oslo, cujos termos, entretanto, Israel mesmo havia ditado, para substituí-los pelo emprego da violência militar pura e simples. A provocação das Mesquitas, feita pelo criminoso de guerra Ariel Sharon em 1998 (mas com o apoio do governo trabalhista, que lhe ofereceu os meios de assalto) e a eleição triunfal deste mesmo criminoso à frente do governo de Israel (com a colaboração dos “colombes” contra Shimon Peres) foram a causa da segunda Intifada, atualmente em curso.

Poderá ela libertar o povo palestino da perspectiva de submissão planejada pelo apartheid sionista? Demasiado cedo para dizê-lo. Em todo caso, o povo palestino dispõe agora de um verdadeiro movimento de libertação nacional, com suas especificidades. Não é do estilo “partido único”, de aparência (mas sim de fato) “unânime” e homogêneo. Tem componentes que conservam sua personalidade própria, suas visões de futuro, suas ideologias inclusive, seus militantes e suas clientelas, mas que, aparentemente, sabem entender-se para levar a cabo a luta em conjunto.

O controle do Oriente Médio é certamente uma peça-chave do projeto de hegemonia mundial de Washington. Como então os Estados Unidos imaginam assegurar-se o controle da região? Faz já uma dezena de anos, Washington havia tomado a iniciativa de avançar no curioso projeto de um “mercado comum do Oriente Médio”, em que os países do Golfo forneceriam o capital e os outros países a mão-de-obra barata, reservando a Israel o controle tecnológico e as funções de intermediário obrigatório. Aceito pelos países do Golfo e pelo Egito, o projeto se chocava com a rejeição síria, iraquiana e iraniana. Assim, para poder prosseguir fazia-se necessário abater a esses três regimes. No que se refere ao Iraque, a tarefa já foi feita.

O problema é então saber que tipo de regime político deve ser imposto para que seja capaz de sustentar este projeto. O discurso propagandístico de Washington fala de “democracias”. Na verdade, Washington apenas se propõe a substituir autocracias nascidas do populismo ultrapassado por autocracias obscurantistas pretensamente “islâmicas” (obrigado pelo respeito à especificidade cultural das “comunidades”). A aliança renovada com um Islão político chamado “moderado” (ou seja, capaz de dominar a situação com eficácia suficiente para proibir as vertentes “terroristas” –as dirigidas contra os Estados Unidos e apenas contra eles, obviamente) constitui o eixo da opção política de Washington, permanecendo como a única opção possível. Nesta perspectiva é que a reconciliação com a autocracia arcaica do sistema será buscada.

Frente ao desenvolvimento do projeto dos Estados Unidos, os europeus inventaram seu próprio projeto, batizado de “sociedade euro-mediterrânea”. Projeto intrépido, com muita conversa e sem as ações correspondentes, mas que, do mesmo modo, se propunha a “reconciliar os países árabes com Israel”. Ao mesmo tempo em que excluíam os países do Golfo do “diálogo euro-mediterrâneo”, os europeus reconheciam que a gestão destes era de responsabilidade exclusiva de Washington (Amin e Kenz, 2003).

O contraste entre a audácia temerária do projeto americano e a debilidade do da Europa são belos indicadores de que o atlantismo realmente existente ignora o conceito de sharing (compartilhar responsabilidades e associar-se na tomada de decisões, pondo em condições iguais os Estados Unidos e a Europa). Anthony Blair, que se considera o advogado da construção de um mundo “unipolar”, crê poder justificar esta opção porque o atlantismo que lhe seria permitido estaria fundado no sharing. A arrogância de Washington desmente cada dia mais esta esperança iludida, ainda que sirva simplesmente como meio para enganar a opinião pública européia. O realismo do propósito de Stalin, que dissera em seu momento que os nazistas “não sabiam a hora de parar”, se aplica à junta que governa os Estados Unidos. E as “esperanças” que Blair tenta reanimar se parecem com as que Mussolini punha em sua capacidade de “acalmar” Hitler.

É possível outra opinião européia? O discurso de Chirac, opondo o mundo “atlântico unipolar” (que compreende bem, parece, que a hegemonia unilateral dos Estados Unidos reduz o projeto europeu a ser apenas a versão européia do projeto de Washington) à construção de um mundo “multipolar”, anuncia o fim do atlantismo?

Para que esta possibilidade se converta em realidade, faltaria ainda que a Europa possa sair das areias movediças em que patina.

 

 

As areias movediças do projeto europeu

Todos os governos europeus, até o presente, aliaram-se à tese do liberalismo. Esta aliança não significa outra coisa que o fim do projeto europeu, sua dupla dissolução econômica (as vantagens da união econômica européia se dissolvem dentro da mundialização econômica) e política (a autonomia política e militar européia desaparecem). Já não existe, neste momento, nenhum projeto europeu. Foi substituído por um projeto do Atlântico Norte (ou eventualmente da tríade), sob o comando estadunidense.

As guerras made in USA certamente despertaram a opinião pública, e inclusive a certos governos (em primeiro lugar o da França, mas também os da Alemanha, Rússia e China). Não obstante, estes governos não questionaram seu fiel alinhamento às exigências do liberalismo. Esta contradição maior deverá ser superada de uma maneira ou de outra, seja através da submissão às exigências de Washington, seja por uma verdadeira ruptura que ponha fim ao atlantismo.

A conclusão política mais importante que tiro desta análise é a de que a Europa não poderá sair do atlantismo enquanto as alianças políticas que definem seus blocos de poder permaneçam centradas no capital transnacional dominante. Somente se as lutas sociais e políticas puderem modificar o conteúdo destes blocos e impor novos compromissos históricos entre o capital e o trabalho a Europa poderá tomar alguma distância de Washington, permitindo assim o renascer de um eventual projeto europeu. Nestas condições a Europa poderia –deveria, inclusive– comprometer-se igualmente no plano internacional, em suas relações com o Leste e com o Sul, num caminho diferente daquele traçado pelas exigências exclusivas do imperialismo coletivo, atenuando, desta maneira, sua participação na longa marcha “além do capitalismo”. Dito de outra maneira, a Europa será de esquerda (o termo “esquerda” é levado aqui muito a sério), ou não será Europa.

Conciliar a adesão ao liberalismo com a afirmação de uma autonomia política da Europa é o objetivo de certa porção das classes políticas européias preocupadas em preservar as posições exclusivas do grande capital. Poderão realizá-lo? Duvido muito.

Em contraposição a isso, as classes populares na Europa serão capazes de fazer-se valer em meio à crise que enfrentam? Creio-o possível, precisamente pelas razões que fazem com que a cultura política de certos países europeus seja ao menos diferente da dos Estados Unidos, e poderia produzir-se um renascimento da esquerda. A condição é, evidentemente, que estas se liberem do vírus do liberalismo.

O “projeto europeu” nasceu como a versão européia do projeto atlântico dos Estados Unidos, concebido no dia seguinte à Segunda Guerra Mundial, dentro do espírito da “Guerra Fria” posta em marcha por Washington, projeto frente ao qual os burgueses europeus –ao mesmo tempo debilitados e temerosos frente a suas próprias classes operárias– aderiram praticamente sem impor condições.

Contudo, a própria realização desse projeto –de origem duvidosa– modificou progressivamente dados importantes do problema e de seus desafios. A Europa Ocidental pôde pôr fim a seu atraso econômico e tecnológico em relação aos Estados Unidos. Por outro lado, o inimigo soviético já não existe. A realização do projeto aglutinou as principais adversidades que haviam marcado durante um século e meio a história européia: os três maiores países do continente –França, Alemanha e Rússia–reconciliaram-se. Todas estas evoluções são, de acordo com meu ponto de vista, positivas, e estão carregadas de um potencial ainda mais positivo. Certamente, estes fatos se inscrevem em bases econômicas inspiradas nos princípios do liberalismo, mas de um liberalismo temperado até a década de 1980 pela dimensão social considerada por e através do “compromisso histórico social-democrata”, que obrigava o capital a ajustar-se às demandas de justiça social expressas pelas classes trabalhadoras. Mais tarde a aproximação teve continuidade num contexto social novo, inspirado por um liberalismo “à americana”, completamente anti-social.

Este último lance lançou as sociedades européias numa crise multidimensional. De cara, está a crise econômica da opção liberal. Uma crise agravada pelo alinhamento dos países da Europa às exigências econômicas de seu líder estadunidense, com a Europa consentindo até agora em financiar o déficit deste último em detrimento de seus próprios interesses. Mais tarde houve a crise social, que se acentuou com o crescimento das resistências e das lutas das classes populares contra as conseqüências fatais da opção liberal. Finalmente, houve a insinuação de uma crise política –a rejeição a alinhar-se, sem condições ao menos, sob a opção dos Estados Unidos de uma guerra sem fim contra o Sul.

 

Como os povos europeus farão frente a este triplo desafio?

Os europeus dividem-se em três conjuntos diferentes:

Os que defendem a opção liberal e aceitam a liderança dos Estados Unidos, quase incondicionalmente.

Os que defendem a opção liberal, mas desejariam uma Europa política independente, fora do alinhamento estadunidense.

Os que desejam (e lutam por) uma “Europa social”, ou seja, um capitalismo temperado por um novo compromisso social capital/trabalho que opere em escala européia, e simultaneamente, uma Europa política praticante de “outras relações” (amistosas, democráticas e pacíficas) com o Sul, Rússia e China. A opinião pública geral em toda a Europa expressou, durante o Fórum Social Europeu (Florença 2002) e por ocasião da guerra contra o Iraque, sua simpatia por esta posição de princípios.

Há certamente outros, os “não-europeus” no sentido de que pensam que não seja possível ou desejável qualquer das três opções pró-européias. Estes são ainda minoritários, mas certamente estão fadados a crescer e a ganhar força em uma de duas opções fundamentalmente diferentes:

Uma opção “populista” de direita, que rejeita a progressão dos poderes políticos –e inclusive econômicos– supranacionais, com a exceção evidente daqueles do capital transnacional.

Uma opção popular de esquerda, nacional, cidadã, democrática e social.

Sobre quais forças se apóia cada uma destas tendências e quais são suas respectivas oportunidades de êxito?

O capital dominante é liberal por natureza. Neste sentido, é levado logicamente a sustentar a primeira destas três opções. Anthony Blair representa a expressão mais coerente do que qualifiquei como “o imperialismo coletivo da tríade”. A classe política, reunida atrás de uma bandeira estrelada, está disposta, se necessário for, a “sacrificar o projeto europeu” –ou ao menos a dissipar toda ilusão a respeito– usando o desprezo por suas origens: ser a versão européia do projeto atlantista. Mas Bush, assim como Hitler, não concebe outros aliados além dos subordinados alinhados incondicionalmente. Esta é a razão pela qual segmentos importantes da classe política, incluindo a direita –ainda que sejam em princípio os defensores dos interesses do capital dominante– rejeitam alinhar-se aos Estados Unidos, como ontem haviam feito frente a Hitler. Se há um Churchill possível na Europa, este seria Chirac. Será capaz de sê-lo?

A estratégia do capital dominante pode acomodar-se num “antieuropeísmo de direita”, o qual se contentaria com retóricas nacionalistas demagógicas (mobilizando, por exemplo, o tema dos imigrantes) enquanto se submeteria de fato às exigências de um liberalismo não especificamente “europeu”, mas mundializado. Aznar e Berlusconi constituem os protótipos destes aliados de Washington. As classes políticas servis da Europa do Leste, idem.

Neste sentido, creio que a segunda opção é difícil de manter. Ela é, no entanto, a dos governos europeus mais importantes: França e Alemanha. Expressa ela as ambições de um capital suficientemente potente para ser capaz de emancipar-se da tutela dos Estados Unidos? Não tenho uma resposta cabal a esta pergunta, mas intuitivamente diria que se trata de uma hipótese pouco provável.

Esta opção, entretanto, é a dos aliados em face de um adversário estadunidense que constitui o inimigo principal de toda a humanidade. Estou persuadido de que, se eles persistem em sua opção, terão de sair da submissão frente à lógica do projeto unilateral do capital (o liberalismo) e buscar alianças à esquerda (as únicas que poderiam dar força a seu projeto de independência frente a Washington). A aliança entre os conjuntos dois e três não é impossível. Tal qual foi a grande aliança antinazista.

Se essa aliança toma forma, deverá operar exclusivamente no âmbito europeu se todos são incapazes de renunciar à prioridade oferecida a esse espaço? Não o creio, porque esse espaço, tal como é, somente favorece sistematicamente a opção do primeiro grupo pró-estadunidense. Haveria então que implodir a Europa e renunciar definitivamente a seu projeto?

Não acredito tampouco que isso seja necessário, e muito menos desejável. Outra estratégia é possível: a de deixar o projeto europeu “dormir” por um tempo em seu estágio atual de desenvolvimento, e paralelamente buscar outros eixos de alianças.

Uma primeira prioridade seria a construção de uma aliança política e estratégica Paris-Berlim-Moscou, prolongada a Pequim e Délhi se isso for possível. E digo especificamente política com o objetivo de dar-lhe o pluralismo internacional e todas as funções que deveria haver na ONU. E estratégica, no sentido de construir forças militares à altura do desafio estadunidense. Estas três ou quatro potências têm todos os meios (econômicos, tecnológicos e financeiros) reforçados por suas tradições militares, frente aos quais os Estados Unidos empalidecem. O desafio estadunidense e suas ambições criminosas assim o impõem, por seu caráter desmedido. Constituir uma frente anti-hegemônica tem na atualidade a mesma prioridade que no passado foi constituir uma aliança antinazista.

Esta estratégia reconciliaria os “pró-europeus” com os grupos dois e três, e com os “não-europeus” de esquerda. Criaria condições favoráveis para retomar mais tarde um projeto europeu, que provavelmente integraria até mesmo uma Grã-Bretanha liberada de sua submissão aos Estados Unidos e uma Europa do Leste desprendida de sua cultura servil. Devemos ser pacientes, pois isto levará bastante tempo.

Não haverá nenhum progresso possível em um projeto europeu enquanto a estratégia dos Estados Unidos não for desviada de seu rumo.

 

 

Europa em face de seu próprio sul árabe e mediterrâneo

O Mundo Árabe e o Oriente Médio ocupam um lugar decisivo no projeto hegemônico dos Estados Unidos. A resposta que os europeus darão ao desafio dos Estados Unidos na região será um dos testes decisivos para o próprio projeto europeu.

O problema consiste em saber se os povos da costa do Mediterrâneo e seus prolongamentos –europeus, árabes, turcos, iranianos, países da África– se orientarão ou não em direção a uma representação de sua segurança que se diferencie da que está dirigida pela primazia da salvaguarda da hegemonia mundial estadunidense. A razão pura deveria fazê-los evoluir nessa direção. Mas até o momento a Europa não ofereceu nenhum sinal de tomar esse caminho. Uma das razões que poderia explicar em parte a inércia européia é que os sócios da União Européia, ainda que não sejam demasiado divergentes, estão sobrecarregados por um coeficiente de prioridades relativas fortemente diferentes de um país para outro. A zona mediterrânea não é central nas polarizações industriais do capitalismo desenvolvido: as zonas do Mar do Norte, do Nordeste Atlântico estadunidense e do Japão central têm uma densidade sem denominador comum. Para os do norte da Europa –Alemanha e Grã-Bretanha– o perigo do caos nos países situados ao sul do Mediterrâneo não tem a mesma gravidade que para os italianos, espanhóis e franceses.

As diferentes potências européias tiveram até 1945 políticas mediterrâneas próprias a cada uma delas, e freqüentemente conflitivas. Depois da Segunda Guerra Mundial, os Estados da Europa Ocidental não tiveram praticamente nenhuma política mediterrânea, nem árabe, nem particular, nem comum, além da que implicava o alinhamento exigido pelos Estados Unidos. Neste âmbito, a Grã-Bretanha e a França, que tinham suas possessões coloniais na região, tiveram trabalho para conservar suas vantagens. A Grã-Bretanha renunciou ao Egito e ao Sudão (1954) e, depois da derrota na aventura da agressão tripartite (1956), ocorreu uma reviravolta violenta que, em fins dos anos 1960, implicou o abandono de sua influência nos países costeiros do Golfo.

A França, desde 1945 fora da Síria, aceitou finalmente a independência da Argélia (1962), mas conservou certa nostalgia de sua influência no Magrebe e no Líbano, encorajada pelas classes dirigentes locais, ao menos no Marrocos, na Tunísia e no Líbano. Paralelamente, a construção européia não substituiu a retirada das potências coloniais por uma política comum operante neste sentido. Recordemos que, depois da guerra árabe-israelense de 1973, os preços do petróleo foram reajustados e a Europa comunitária, surpreendida em seus sonhos, descobriu que tinha “interesses” na região. Mas este despertar não suscitou de sua parte nenhuma iniciativa de importância, por exemplo, concernente ao problema palestino. A Europa permaneceu, tanto neste domínio como em outros, vegetativa e finalmente inconsistente. Alguns progressos na direção de uma autonomia frente aos Estados Unidos foram vistos nos anos 1970, mas depois da Cimeira de Veneza (1980) foram erodidos durante os anos 1980, para finalmente desaparecerem com o alinhamento a Washington que se adotou durante a Crise do Golfo. É por isso que as percepções européias concernentes ao futuro das relações Europa-Mundo Árabe e Iraniano devem ser estudadas a partir da análise própria de cada um dos Estados europeus.

A Grã-Bretanha não tem nenhuma política mediterrânea nem árabe específica. Neste domínio, como em outros da sociedade britânica em todas as suas expressões políticas (Conservadores e Trabalhistas), a opção tem sido o alinhamento incondicional com os Estados Unidos. Trata-se, neste caso, de uma opção histórica fundamental, que ultrapassa amplamente as circunstâncias conjunturais e que reforça consideravelmente a submissão da Europa ante as exigências da estratégia estadunidense.

Por razões diferentes, a Alemanha não tem tampouco uma política árabe nem mediterrânea específica e não buscará provavelmente desenvolver nenhuma num futuro próximo. Debilitada por sua divisão e seu status, a RFA consagrou todos seus esforços a seu desenvolvimento econômico, aceitando ter um perfil político pouco ambicioso e ambíguo em relação aos Estados Unidos e à Europa da CEE. Num primeiro momento, a reunificação da Alemanha e sua conquista da soberania plena internacional não modificaram este comportamento; pelo contrário, acentuaram suas expressões. A razão é que as forças políticas dominantes (conservadores, liberais e social-democratas) escolheram dar prioridade à expansão do capitalismo germânico na Europa central e oriental, reduzindo a importância relativa de uma estratégia européia comum, tanto no plano político como no da integração econômica. Haveria que saber se esta tendência se inverteu na atualidade, como parece sugerir a atitude de Berlim face à Guerra do Iraque.

As posições da França são mais matizadas. País a um só tempo atlântico e mediterrâneo, herdeira de um Império colonial, classificada como um dos vencedores da Segunda Guerra Mundial, a França não renunciou a expressar-se como potência. Durante a primeira década do pós-guerra, os sucessivos governos franceses trataram de preservar as posições coloniais de seu país através de posições atlantistas anticomunistas e anti-soviéticas. No entanto, não puderam obter o apoio de Washington, como bem o demonstrou a atitude dos Estados Unidos durante a agressão tripartite contra o Egito, em 1956. A política mediterrânea e árabe da França era simplesmente retrógrada. De Gaulle rompeu simultaneamente com as ilusões paleocoloniais e pró-estadunidenses. Ele concebeu o triplo projeto ambicioso de modernizar a economia francesa, conduzir um processo de descolonização que permitisse substituí-lo por um neocolonialismo capaz de fazer frente às velhas fórmulas, e compensar as debilidades intrínsecas a todo país mediano como a França através da integração européia. Nesta última perspectiva, De Gaulle concebia uma Europa capaz de ser autônoma face aos Estados Unidos, não somente no plano econômico e financeiro, mas também no plano político, e mesmo, finalmente, no plano militar, ao mesmo tempo em que concebia, a longo prazo, a associação da URSS à construção européia (“a Europa do Atlântico até os Urais”). Mas o gaullismo não sobreviveu a seu fundador e, a partir de 1968, as forças políticas francesas, tanto da direita clássica como da esquerda socialista, regressaram progressivamente a suas atitudes anteriores. Sua visão da construção européia se estreitou até a dimensão de um “mercado comum” entre a França e a Alemanha Federal (até o momento em que a unificação alemã se realizou, em Paris estiveram um pouco surpresos e inquietos…) e no convite feito à base de pressões à Grã-Bretanha para unir-se à CEE (esquecendo que a Inglaterra seria o Cavalo de Tróia dos estadunidenses na Europa). Naturalmente, esta mudança implicava o abandono de toda política árabe digna desse nome por parte da França, ou seja, de uma política que fosse além da simples defesa dos interesses mercantis imediatos. No plano político, a França comportou-se objetivamente, tanto no mundo árabe como na África Subsaariana, como uma força suplementar de apoio à estratégia de hegemonia estadunidense. É neste contexto que é necessário entender o discurso mediterrâneo, que reclama a associação dos países do Magrebe ao trem europeu (da mesma maneira como se associou a Turquia hoje em crise), o que conduziu ao rompimento da perspectiva de uma aproximação unitária árabe e ao abandono de Mashrek diante da intervenção israelo-estadunidense. Sem dúvida, as classes dirigentes do Magrebe são responsáveis, dada a simpatia que mostraram por este projeto. No entanto, a Crise do Golfo deu um forte golpe neste projeto, e as massas populares da África do Norte afirmaram com vigor nessa ocasião sua solidariedade com o Magrebe, fato totalmente previsível.

A Itália é, por sua posição geográfica inclusive, um país muito sensível aos problemas mediterrâneos. Isto não significa que ela tenha uma verdadeira política mediterrânea e árabe, e muito menos que esta tenha eficácia e autonomia. Durante muito tempo marginal em seu desenvolvimento capitalista, a Itália viu-se obrigada a colocar suas ambições mediterrâneas sob a tutela européia, em uma aliança forçada com outras potências da área, mais decisivas que ela. Desde que atingiu sua unidade na metade do século passado, com a queda de Mussolini em 1943, a Itália vacilou entre a aliança com os donos do Mediterrâneo –quer dizer, com a Grã-Bretanha e a França– ou com aqueles que podiam contrabalançar as posições anglo-francesas, quer dizer, a Alemanha. O atlantismo, que é executado na Itália numa visão que implica um perfil político externo sob a tutela dos Estados Unidos, dominou a ação e as opções dos governos italianos desde 1947. Ele é igualmente dominante, ainda que numa visão mais ideológica ainda, em certos setores da burguesia laica (Republicanos e Liberais, e alguns socialistas). Porque entre os democratas-cristãos existe a pressão do universalismo da tradição católica. Por isso, é significativo que o Papa tenha freqüentemente assumido posições mais retrógradas com relação aos povos árabes (sobretudo no que se refere ao problema palestino) e ao Terceiro Mundo que as dos numerosos governos italianos e ocidentais em geral. O passo à esquerda de uma parte da Igreja Católica, sob a influência da Teologia da Libertação da América Latina, reforça na atualidade este universalismo, do qual encontramos versões laicas nos movimentos pacifistas, ecologistas e terceiro-mundistas. A corrente “mittel” européia tem suas raízes no século XIX italiano e na oposição Norte-Sul que a unidade italiana não foi capaz de mitigar. Afiliada aos interesses do grande capital milanês, sugere dar prioridade à expansão econômica da Itália ao leste europeu, em associação estreita com a Alemanha. Neste aspecto, a Croácia constitui na atualidade um objetivo imediato. Entenda-se bem que esta opção implicaria que a Itália continuasse a tradição de modesto perfil internacional, e que se mantenha sobretudo marginal em suas relações com o sul do Mediterrâneo. Uma opção paralela da Espanha isolá-la-ia (à Itália) ainda mais do concerto europeu, reduzindo-a a seu mais baixo denominador comum. A corrente mediterrânea, que ainda é débil, apesar da contribuição que o universalismo lhe poderia dar, expressa-se, por esta razão, numa versão “levantina”: trata-se de “fazer negócios” aqui ou lá, sem se preocupar com o enquadramento maior da estratégia política em que se inscreve. Para adquirir outra consistência, mais nobre, associando a Itália a aberturas econômicas que se inscrevam numa perspectiva de reforçar sua autonomia e a de seus sócios árabes, seria necessário que houvesse uma convergência entre este projeto e as idéias universalistas, sobretudo de uma parte da esquerda italiana, comunista e cristã. Por sua vez, a direita italiana, reunificada sob a direção de Berlusconi no poder, optou por colocar-se sob a tutela do eixo atlântico Washington-Londres. O comportamento das forças policiais durante a reunião do G-8 em Gênova (em julho de 2001) expressa claramente esta opção.

Espanha e Portugal ocupam um lugar importante na geoestratégia de hegemonia mundial dos Estados Unidos. O Pentágono considera, de fato, que o eixo Açores-Canárias-Gibraltar-Baleares é essencial para a vigilância do Atlântico Norte e Sul e da entrada do Mediterrâneo. Os Estados Unidos forjaram sua aliança com estes dois países imediatamente depois da Segunda Guerra Mundial, sem ter a menor preocupação por seu caráter fascista. Pelo contrário, pois o anticomunismo das ditaduras de Salazar e de Franco serviu bem à causa hegemônica dos Estados Unidos, permitindo admitir Portugal na OTAN e estabelecer em solo espanhol bases estadunidenses de primeira importância. Como contrapartida, os Estados Unidos e seus aliados europeus apoiaram Portugal sem reservas até o final de sua fracassada guerra colonial.

A evolução democrática da Espanha depois da morte de Franco não foi a ocasião de um questionamento da integração do país ao sistema militar estadunidense. Pelo contrário, pois a adesão formal da Espanha à OTAN (em maio de 1982) foi objeto de uma verdadeira chantagem eleitoral que deixou entrever que a participação da CEE exigia esta adesão, a que se opunha a maioria da opinião espanhola.

Depois disso, o alinhamento de Madri às posições de Washington foi sem reserva. Em contrapartida, os Estados Unidos teriam, ao que parece, intervindo para “moderar” as reivindicações marroquinas e inclusive para tentar convencer a Grã-Bretanha a respeito de Gibraltar. Neste sentido, podemos duvidar da própria realidade destas intervenções. O alinhamento atlantista reforçado de Madri se traduziu em mudanças radicais na organização das forças armadas espanholas, qualificadas pelos analistas como um “movimento em direção ao sul”. Na tradição espanhola, com efeito, o exército estava espalhado em todo o território do país. Concebido, além do mais –depois de Franco de uma maneira evidente–, como uma força policial interior mais que como uma força dirigida contra o exterior, o exército espanhol permaneceu sendo rústico e, apesar da marcada atenção que recebiam do poder supremo de Madri os corpos de generais e oficiais, não havia sido objeto de uma verdadeira modernização, como foi o caso da França, Grã-Bretanha e Alemanha.

Os governos socialistas, e depois os de direita, realizaram uma reorganização das forças espanholas para combater numa “frente sul” eventual, e se comprometeram com um programa de modernização do exército terrestre, da aviação e da marinha. Esta mudança, exigida por Washington e pela OTAN, é uma das numerosas manifestações da nova estratégia hegemônica estadunidense, substituindo o leste pelo sul na defesa do Ocidente. Este está acompanhado na Espanha por um novo discurso que põe em evidência um “inimigo hipotético que vem do Sul”, cuja identificação não deixa lugar a nenhuma dúvida. Curiosamente, este discurso dos meios democráticos (e socialistas) espanhóis lembra a velha tradição da Reconquista, muito popular dentro dos círculos católicos do exército. A mudança nas forças armadas espanholas é então o signo de uma determinação da Espanha de ter um papel ativo no seio da OTAN, no âmbito da reorientação das estratégias ocidentais prevendo intervenções no Terceiro Mundo. Desde há muito tempo a Península Ibérica constitui a primeira escala do eixo Washington-Tel Aviv, a principal cabeça-de-ponte européia da Rapid Deployment Force estadunidense (que teve um papel decisivo na Guerra do Golfo), completada com as bases da Sicília (que, igualmente, nunca haviam servido até as operações dirigidas contra o Mundo Árabe, como a Líbia, o bombardeio israelense à Tunísia, etc.) e, curiosamente, as facilidades acordadas pelo Marrocos. Evidentemente, esta opção ocidental esvazia o discurso “euro-árabe” de todo conteúdo sério. A nova Espanha democrática, que pretende ativar uma política de amizade em direção à América Latina e ao Mundo Árabe, dirigiu seus movimentos num sentido inverso, de fato, às exigências de suas declarações de princípios.

O Governo de direita dirigido por Aznar confirmou este alinhamento atlantista de Madri. Mais ainda do que a Itália, a Espanha rejeita capitalizar sua posição mediterrânea em benefício de uma nova política européia em direção ao mundo árabe, à África e ao Terceiro Mundo, e tomar distância das exigências da hegemonia estadunidense. A idéia francesa de um grupo mediterrâneo no seio da União Européia permanece, por estas razões, suspensa no ar e sem pontos de apoio sérios. Por outro lado, no plano econômico, o capital espanhol, herdeiro da tradição franquista, colocou suas esperanças principais de expansão no desenvolvimento de acordos com a Alemanha e o Japão, convidados a participar da modernização da Catalunha.

Enquanto existiu, a linha de confrontação Leste-Oeste passava através dos Bálcãs. A vinculação obrigatória dos Estados da região a Moscou ou Washington –com as exceções da Iugoslávia desde 1948 e da Albânia a partir de 1960– havia colocado uma surdina nas exigências nacionalistas locais que fizeram dos Bálcãs o quintal europeu.

A Turquia colocou-se no campo ocidental desde 1945, depois de haver posto fim a sua neutralidade frente à Alemanha hitlerista. As reivindicações soviéticas sobre o Cáucaso, formuladas por Stalin a partir da vitória, foram rejeitadas por Ancara graças ao apoio decidido de Washington. Em contrapartida, a Turquia, membro da OTAN, apesar de seu sistema político pouco democrático, recebeu as bases estadunidenses mais próximas da URSS. Não há lugar para dúvidas de que a sociedade turca permanece sendo do Terceiro Mundo, ainda que depois de Ataturk as classes dirigentes deste país proclamem a parte européia da Nova Turquia, batendo à porta de uma União Européia que não a quer. Aliada fiel dos Estados Unidos e de seus sócios europeus, desejará a Turquia reintegrar seu passado e ter um papel ativo no Oriente Médio, fazendo o Ocidente pagar os serviços que lhe poderia prestar nesta região? Parece que o problema dos curdos, de quem ela não aceita reconhecer nem mesmo a existência, conduziu a uma vacilação na tomada desta decisão até o presente. O mesmo ocorre para uma eventual opção panturaniana, sugerida logo após a Primeira Guerra Mundial por certos círculos kemalistas, e relegada depois ao museu da história. Mas na atualidade o desmanche da URSS poderia constituir um convite para que o poder de Ancara tome a direção de um bloco turco que, do Azerbaijão até o Sinquião, domine a Ásia Central. O Irã sempre expressou seus reais temores de uma evolução deste tipo, o que não só questionaria o status do Azerbaijão meridional iraniano, mas também a segurança de sua ampla fronteira asiática setentrional com o Turcomenistão e o Uzbequistão.

A Grécia não se alistou no campo soviético. Ela esteve obrigada e forçada pela intervenção britânica de 1948 a alinhar-se com os Estados Unidos. Conforme os Acordos de Ialta, a URSS, como todos sabemos, abandonou a sua própria sorte a resistência grega, dirigida pelo Partido Comunista, que, no entanto, neste país, assim como na Iugoslávia e na Albânia, havia libertado o país e conquistado por esta razão o apoio popular majoritário. Desta maneira, os ocidentais estiveram obrigados a apoiar sucessivos regimes repressivos contra esse movimento popular, e, finalmente, uma ditadura de coronéis fascistas, sem ver nisso uma contradição importante com seu discurso, segundo o qual a OTAN protegeria o “mundo livre” contra o “Satã” totalitário. O retorno da Grécia à democracia, pela vitória eleitoral de Pasok em 1981, arriscava, nessas condições, questionar a fidelidade deste país em relação à OTAN. A Europa comunitária veio então dar uma mão aos Estados Unidos para, assim como no caso da Espanha, unir esse tema ao da candidatura grega à CEE, e mantê-la com sua participação dentro da aliança atlântica. Esta integração à CEE foi amplamente discutida pela opinião pública grega na época. A opção de Papandreu de unir-se apesar de tudo, depois de algumas vacilações e apesar da opção de princípios terceiro-mundistas e neutralistas de Pasok, parece haver desatado uma evolução irreversível inclusive no que concerne à mentalidade, adulando as aspirações do povo grego à modernidade e ao europeísmo. No entanto, os novos sócios europeus da Grécia não ofereceram grande coisa a este país, que permaneceu durante todo o tempo na posição de parente pobre da construção comunitária.

A fidelidade de Atenas ao Ocidente euro-estadunidense não lhe valeu um apoio real em seu conflito com a Turquia. Mesmo que a ditadura grega tenha tido uma determinada responsabilidade na tragédia cipriota de 1974, a agressão turca aberta (operação Átila) e a criação posterior de uma República Turca do Chipre, em franca violação do status da ilha, não somente foram aceitas, mas provavelmente também combinadas com os serviços do Pentágono, frente aos quais a Europa cede uma vez mais. É evidente que, para os Estados Unidos, a amizade com a Turquia, potência militar regional considerável, é muito mais importante do que com a Grécia, por mais democrática que esta última seja.

O conjunto da região dos Bálcãs-Danúbio (Iugoslávia, Albânia, Hungria, Romênia e Bulgária) entrou em 1945 na égide moscovita, seja pela ocupação militar soviética e pela aceitação dos sócios de Ialta, seja por sua própria libertação e por uma opção popular na Iugoslávia e na Albânia.

A Iugoslávia de Tito, isolada durante os anos 1948-1953 entre o ostracismo de Moscou e o anticomunismo ocidental, conquistara com êxito uma estratégia de construção de uma frente de “não-alinhados”, que lhe valeu sua amizade com o Terceiro Mundo, particularmente a partir da Conferência de Bandung (1955). Os analistas do pensamento geoestratégico da época assinalaram curiosamente que este pensamento era pouco sensível à dimensão mediterrânea de seu país. Quiçá o abandono pela Itália, depois da Segunda Guerra Mundial, de seus aliados tradicionais, e a solução encontrada em 1954 para o difícil problema do Trieste tenham sido as causas deste “esquecimento histórico”. A Iugoslávia viveu depois como um Estado preocupado antes de qualquer coisa com problemas de equilíbrio de suas relações regionais e, sobretudo, pelo problema do equilíbrio mundial entre as superpotências. Porque, em primeiro lugar, ela conseguira capitalizar em seu benefício a dupla atração nortista e danubiana da Croácia e da Eslovênia, e a russa e balcânica da Sérvia. A aproximação iniciada por Kruchev e continuada por seus sucessores, reconhecendo o papel positivo da neutralidade de Tito na arena mundial, assim como o debilitamento dos regimes do Pacto de Varsóvia a partir dos anos 1960 e sobretudo nos anos 1970, garantiram, durante um tempo, a segurança da Iugoslava, que havia cessado de sentir-se como o objeto de qualquer conflito regional. A diplomacia iugoslava pôde então agir com mais desenvoltura nas arenas internacionais, dando ao país um peso desproporcional em relação a seu tamanho. Mas, apesar desta diplomacia ter indiscutivelmente marcado pontos na Ásia, na África e na América Latina, falhou na Europa, onde seu chamado a ampliar a frente de neutralistas nunca teve ecos favoráveis. Contudo, face à Europa da OTAN, do norte até o sul do continente, entre dois pactos militares adversários, Suécia, Finlândia e Áustria podiam buscar iniciativas positivas comuns que se separassem do espírito da Guerra Fria. Mais tarde, a Grécia de Pasok tentou ampliar o campo neutro europeu, desembarcando esta idéia em 1982, na proposta de cooperação para a desnuclearização dos Bálcãs, dirigindo-se, simultaneamente, a certos países membros das duas alianças (Turquia, Romênia e Bulgária) ou a neutros (Iugoslávia e Albânia). Estas proposições tampouco encontraram eco algum.

A desorganização do sudeste da Europa a partir de 1989 mudou todo o problema. A erosão, e depois a derrocada da legitimidade dos regimes –que estava fundada sobre um determinado desenvolvimento, sejam quais tenham sido seus limites e seus aspectos negativos– fez implodir a unidade da classe dirigente, cujas frações tentaram fundar sua legitimidade no nacionalismo. As condições estavam dadas não somente para permitir a ofensiva do capitalismo selvagem sustentado pelos Estados Unidos e pela União Européia, mas também para que a Alemanha retomasse a iniciativa na região, colocando lenha no fogo –através do reconhecimento da independência da Eslovênia e da Croácia, o que a própria União Européia reafirmou– e acelerando em conseqüência a implosão iugoslava e a guerra civil. Curiosamente, os europeus tentaram impor na Bósnia a coexistência das comunidades cuja separação eles haviam incentivado! Se é possível que os sérvios, croatas e muçulmanos coexistam na pequena Iugoslávia que é a Bósnia, por que não poderiam coexistir na grande Iugoslávia? Evidentemente, uma estratégia deste tipo não teria tido nenhum êxito, o que permitiu aos Estados Unidos intervir em pleno coração da Europa. Na estratégia de Washington, o eixo dos Bálcãs-Cáucaso-Ásia Central é um prolongamento do Oriente Médio.

Das análises propostas anteriormente, e que concernem às opções político-estratégicas dos países da margem norte do Mediterrâneo, tiro uma importante conclusão: a maior parte destes países, antes fiéis partidários dos Estados Unidos no conflito Leste-Oeste, continuam alinhados sob a estratégia de hegemonia estadunidense frente ao Terceiro Mundo, e particularmente frente aos países árabes e da região do Mar Vermelho-Golfo. Os outros países (balcânicos e do Danúbio), antes implicados de uma ou de outra maneira no conflito Leste-Oeste, deixaram de ser agentes ativos no permanente conflito Norte-Sul, e se converteram em objetos passivos do expansionismo ocidental.

 

 

Conclusões: O Império do caos e a guerra permanente

Qualifiquei o projeto de dominação dos Estados Unidos –a extensão da doutrina Monroe a todo o planeta, principalmente desde a derrocada da União Soviética (1991)– O Império do Caos. O crescimento das resistências das nações do Velho Mundo indica sua disposição de não ceder tão facilmente. Os Estados Unidos serão então chamados a substituir o direito internacional pelo recurso às guerras permanentes (processo que começou no Oriente Médio, mas que já aponta em direção à Rússia e à Ásia), acolhendo elementos fascistas (a “lei patriótica” já atribuiu poderes a sua polícia frente aos estrangeiros –aliens– similares aos que possuía a Gestapo).

Os Estados europeus, sócios no sistema do imperialismo coletivo da tríade, aceitarão esta ordem de coisas que lhes reservará posições subalternas? A tese que desenvolvi coloca a ênfase não tanto nos conflitos de interesse do capital dominante, como na diferença que separa as culturas políticas da Europa e a que caracteriza a formação histórica dos Estados Unidos, e encontra nesta nova contradição uma das principais razões do fracasso provável do projeto dos Estados Unidos6.

 

 

Bibliografia

Amin, Samir 1979 Class and Nation (Les Edition).

Amin, Samir 1988 L'eurocentrisme: Critique d'une idéologie (Collection "Economies") (Anthropos).

Amin, Samir 1989 La Faillite du developpement en Afrique et dans le Tiers-Monde (L'harmattan).

Amin, Samir 1991 L'empire du chaos (L'harmattan).

Amin, Samir 1996 Defis de la mondialisation (L'harmattan).

Amin, Samir 1997 Critique de l'air du temps (L'harmattan).

Amin, Samir 2000 Hégémonie des Etats-Unis et de la fin du projet européen (L'harmattan).

Amin, Samir 2002 Au-delà ducapitalisme sénile. Pour un XXIe siècle non-américain (PUF).

Amin, Samir 2003 [a] Le Temps Des Cerises (L'harmattan).

Amin, Samir 2003 [b] Le virus libéral (The New York Press).

Amin, Samir 2003 [c] The American Ideology (Cairo: Ahram Weekly).

Amin, Samir e Ali El Kenz 2003 Le monde arabe - Enjeux sociaux et perspectives méditerranéennes (L'harmattan).

Amin, Samir e Joseph Vansy 1993 L'ethnie à l'assaut des nations Yougoslavie Ethiopie (L'harmattan).

Amin, Samir e outros 1992 Les enjeux strategiques en Mediterranee  (L'harmattan).

Chaliand, Gérard e Arnaud Blin 2003 L'Amérique est de retour (Bayard).

Todd, Emmanuel 2002 Apres l’Empire: Essai sur la decomposition du systeme americain (Gallimard).

 

Notas

*        Epílogo ao livro Guerra global, Resistencia mundial y Alternativas (2003) de Wim Dierckxsens e Carlos Tablada.

**       Desde 1980 Diretor do Fórum do Terceiro Mundo, Birô Africano, Dacar; e Presidente do Fórum Mundial de Alternativas.

1 Sugiro a consulta aos seguintes títulos de minha autoria: Class and Nation, capítulos VI e VIII (1979); L'eurocentrisme: Critique d'une idéologie, capítulo IV (1988); Au-delà ducapitalisme sénile. Pour un XXIe siècle non-américain (2002).

2 Para a crítica do pós-modernismo e da tese de Negri ver as seguintes obras de minha autoria: “Critique de l'air du temps”, capítulo VI (1997); Le Temps Des Cerises (2003 [a]) e Le virus libéral, página 20 e seguintes (2003[b]).

3 Como por exemplo Gérard Chaliand e Arnaud Blin (2003) .

4 Refiro-me a A Estrategia de Segurança Nacional dos Estados Unidos, anunciada em 2002.

5 Conforme nota 2.

6 Ver Le virus libéral, página 20 e seguintes (2003 [b]) e The American Ideology (2003 [c]) ambos os livros de minha autoria.

Sem comentários: