Sunday, January 13, 2013

Salazar vs. Pandita 2


Escrito por Franco Nogueira

Na imagem: Mosteiro dos Jerónimos
«A charrua penetra o solo mais que o ferro da espada; o suor fertiliza a terra, mais que o sangue das veias; o espírito afeiçoa e transforma os homens e a natureza mais profundamente que a força material dos dominadores. As fundas pegadas que ficaram de nós na terra e nas almas por muita parte onde não é hoje nosso o domínio político, e têm maravilhado os observadores desde as costas de Marrocos à Etiópia e do Mar Vermelho aos Estreitos e ao Mar da China, vêm exactamente de que a nossa obra não é a do caminheiro que olha e passa, do explorador que busca à pressa as riquezas fáceis e levantou a tenda e seguiu, mas a do que, levando em seu coração a imagem da Pátria, se ocupa amorosamente em gravá-la fundo onde adrega de levar a vida, ao mesmo tempo que lhe desabrocha espontâneo d'alma o sentido da missão civilizadora. Não é a terra que se explora: é Portugal que revive».

Oliveira Salazar («A Política Imperial e a Crise Europeia», SPN, Lisboa, 1939).

Salazar não está seguro, todavia, do que trará para Portugal o dia 15 de Agosto de 1954. Como reagirá Nehru ao desafio das suas palavras do dia 10? (...)

Chega a Lisboa o texto completo da resposta indiana de 10 de Agosto. Salazar e Paulo Cunha estudam-no atentamente, e concluem que não há da parte de Nova Deli uma aceitação, mas uma enredada manobra. Onde Portugal propõe uma observação nas fronteiras, a Índia dá o seu acordo a que se observe o que se passa «no interior das possessões portuguesas»; onde Portugal propõe o envio imediato de observadores internacionais, a Índia dá o seu acordo à designação imediata de delegados das duas partes para discutirem o envio de observadores; e onde Portugal propõe que se investigue quem provoca incidentes e violações de fronteiras, a Índia dá o seu acordo a que se discuta a libertação de possessões estrangeiras no subcontinente indiano. Deste modo, o governo de Lisboa, em comunicado dos Estrangeiros, classifica a resposta de Nova Deli de «desvirtuações» e «dilação». E em nota de réplica à distorção de Nova Deli, e depois de sublinhar os desvirtuamentos na reacção indiana, Lisboa aceita o princípio de negociações entre delegados dos dois países, ficando entendido que das mesmas está excluído o debate sobre a soberania portuguesa em Goa, Damão e Diu, e que o governo indiano concede finalmente as facilidades de trânsito para que a autoridade portuguesa seja restabelecida nos enclaves de Dadrá e Nagar-Aveli. Mas no momento em que é entregue esta nota portuguesa, a 13 de Agosto, o primeiro-ministro Nehru discursa em Nova Deli e lembra «ao povo da Índia, em particular aqueles mais especialmente interessados, que a doutrina da não-violência implica não apenas a não-violência mas também a não dar a outros a oportunidade de exercer violência». É o reflexo do conselho de Churchill. E no dia seguinte de novo responde o governo indiano. Não repudia a posição portuguesa: anui no princípio da conferência de delegados: nesta podem decerto ser incluídos todos os pontos indicados pelo governo português: mas acrescenta que, justamente de harmonia com a prática normal, os delegados de ambas partes estão livres de trazer os assuntos ou propostas que entenderem.

Chega o dia 15 de Agosto. Em Portugal, há ansiedade. Em Goa, as forças portuguesas estão sob instruções para opor resistência, se necessário usando meios militares, a qualquer tentativa de invasão, pacífica ou armada. Passa-se em estado de alerta mas em sossego aquele dia; na noite para 16, no entanto, alguns «satyagrahis» infiltram-se e ocupam o Forte de Tiracol. Acorre a polícia portuguesa, e dispara tiros para o ar; e na fuga e confusão é morto um «satyagrahi» e feridos outros. Pelas fronteiras, tudo está tranquilo. Nehru recuara.

Há no país uma sensação geral de alívio. Salazar e Paulo Cunha, todavia, querem aproveitar o rescaldo da crise para conseguir de Nova Deli o reconhecimento de Goa portuguesa. Não afrouxam, por isso, o debate bilateral e internacional do problema. Salazar não tem ilusões, decerto, e não acredita na honestidade de Nehru. Comentando a carta de Spaak ao primeiro-ministro indiano, diz a Eduardo Leitão, para Bruxelas: «Gostei de ler esta última, que me pareceu apropriada ao fim que se tinha em vista e ao modo de ser da pessoa a quem era dirigida. Nenhum de nós - porventura também não o Sr. Spaak - acredita na sinceridade do pacifismo de Nehru: aquilo é uma atitude que lhe vale apreço internacional. Neste caso, convém que nós próprios nos apresentemos como acreditando na sinceridade dos sentimentos pacifistas do primeiro-ministro da União. Nas minhas raras delcarações também incluo sempre uma frase de apelo a esses sentimentos. A carta pode ter tido algum efeito, ainda que a Bélgica também esteja no index como país colonial; e não se lhe fazer referência pública não diminui, antes pelo contrário, a sua eficiência real». E mais: «Devemos estar gratos ao Sr. Spaak por este serviço que, se é um serviço directo prestado a Portugal, é também um apoio à causa do Ocidente e da civilização que vai quase inteiramente perdida naquelas paragens. Por mais pessimistas que sejamos, o nosso dever é lutar, e eu tenho visto com alguma surpresa que a simples decisão de resistir nos tem conciliado numerosas simpatias e despertado em muitos países grande interesse e apoio moral».
Na imagem: Nova Deli

E justamente para aproveitar esta atmosfera prossegue Paulo Cunha uma actividade sem desfalecimentos. Nas semanas imediatas ao dia 15 de Agosto continua a polémica com Nova Deli. Entrecortadas de mil incidentes, as atitudes de um lado e outro reduzem-se a dois aspectos fundamentais: negociar a instituição de observadores internacionais para averiguar violações de fronteiras; negociar problemas decorrentes da vizinhança e co-existência pacífica. Paulo Cunha multiplica-se em entrevistas e declarações à imprensa; e, sem se afastar da posição de firmeza, acentua as disposições de paz e cooperação, se Goa for reconhecida no seu estatuto actual. Mas torna-se nítida a impossibilidade de acordo: a União Indiana, além de recusar devolver os enclaves, insiste em que das negociações nenhum assunto deve ser excluído, indicando assim o propósito de reabrir o processo de reivindicação territorial.

Correspondendo à emoção do país, a imprensa acompanha os acontecimentos com destaque. Por instigação de Salazar, Ribeiro Lopes compõe artigos de refutação das teses indianas; e a Augusto de Castro fornece o chefe do governo elementos que permitem ao jornalista produzir vivas peças de ataque à União Indiana, e que o Diário de Notícias publica (6).

(...) Não estando convicto de que seja definitivo o recuo de Nehru, Salazar procura consolidar a posição portuguesa no plano internacional. Durante Outubro e Novembro, novas diligências são feitas, para abranger todos os países de expressão ocidental, ou não hostis ao Ocidente: e, com diferenças de pormenor, em todos o governo de Lisboa obtém declarações de apoio ou pelo menos, na medida em que recomendam uma solução pacífica do conflito, desfavoráveis à União Indiana. Por seu lado, o governo francês, ao resolver abandonar os estabelecimentos franceses no Indostão, toma uma atitude de elegância: pela voz do ministro da França do Ultramar, Robert Buron, declara que entre aqueles e Goa não há semelhança, tanto do ponto de vista territorial e político como económico e humano: e por isso não são aplicáveis raciocínios por analogia a uma outra soberania que não a francesa. Simultaneamente, no debate áspero entre Lisboa e Nova Deli, nada se conclui quanto às propostas portuguesas, que a Índia rejeita dizendo aceitá-las; persevera Portugal em reclamar para os enclaves facilidades de trânsito, que a União não concede; surgem incidentes isolados, há infiltrações em locais dispersos, que as autoridades portuguesas dominam prontamente; há mesmo a nota pitoresca de Nova Deli acusar Portugal de violências sobre o antigo cônsul indiano quando este se encontrava pacificamente entregue à pesca; e de novo se anunciam para fins de Novembro incursões de satyagrahis. Salazar resolve falar mais uma vez aos portugueses.
No desejo de imprimir um sentido de rotina à vida externa portuguesa, Paulo Cunha expressa as negociações em curso com a Grã-Bretanha sobre territórios em África. E em 18 de Novembro daquele ano de 1954 são assinados três acordos luso-britânicos: redelimitam trechos das fronteiras entre Moçambique e a Niassalândia e entre Angola e a Rodésia do Norte. Desde o ultimatum britânico, a linha raiana de Moçambique corria pela margem oriental dos lagos fronteiriços; agora passa a seguir a linha média das águas; e há assim um alargamento de espaço de jurisdição portuguesa. Do lado de Angola, contra facilidades concedidas a habitantes da Rodésia, são rectificados alguns troços em favor de Portugal. Em símbolo, é uma revisão mínima do ultimatum de 1891. Simultaneamente, é assinada uma convenção cultural entre os dois países. E no almoço de despedida oferecido a Sir Nigel Ronald, que ao fim de sete anos conclui a sua missão em Lisboa, Paulo cunha recorda a atitude inglesa na questão de Goa e considera as relações luso-britânicas como «um pilar fundamental» na política externa portuguesa, enquanto Sir Nigel exalta o papel civilizador de Portugal.
 
Porque está em funcionamento a Assembleia Nacional, o chefe do governo decide dirigir-se a esta. Marca-se a sessão para 30 de Novembro. (...) Salazar (...) comparece perante a câmara. Tem por objectivos esclarecer completamente o povo português, por intermédio da representação nacional, da política seguida e seus desenvolvimentos, e responder por outro lado ao primeiro-ministro Nehru e a quantos no mundo discordam da tese de Portugal. Antes de mais, Goa em face da União Indiana, e os argumentos por esta usados: a geografia, a história, a raça, o princípio da autodeterminação dos povos. De novo Salazar recorda como tudo é contraditório: justamente a história formou Goa há 550 anos; a geografia por si não confere direitos; e além do mais não é o próprio Nehru que reconhece a identidade separada de Goa ao prometer respeitá-la quando anexada? Quanto à autodeterminação dos povos, esta aparece identificada com «intuitos políticos ou necessidades de ocasião». E se a União Indiana invocar esse princípio, então terá de regressar «à poeira de Estados e soberanias», que é a sua tradição. Em qualquer caso, Goa não é um problema de política interna da União, mas de política externa, por contender com uma soberania estrangeira. Não há liberdade em Goa para que os goeses se manifestem a favor da União Indiana? Decerto; e é assim em Portugal, e em todo o mundo, e na União; mas é estranho que, podendo manifestar-se a favor da Índia os goeses residentes nesta ou noutros países que Portugal não pode influenciar, a sua emagadora maioria continue patrioticamente portuguesa. Em face de tudo isto, Nehru proclama a não-violência. Neste particular, os bloqueios, as infiltrações, o isolamento dos enclaves, as violências de fronteira, as perseguições aos goeses, falam por si. Tem a União o direito de se comportar assim? Não tem. Não disse Nehru em Pequim que a paz não é só a ausência de guerra, e que só existe verdadeiramente numa atmosfera de cooperação entre as nações? «Para não se poder afirmar que o Primeiro Ministro só pensa com correcção nos domínios do universal», é de esperar que rectifique quanto a Goa os seus conceitos de paz e não-violência. De outro modo, está ofendendo a consciência do mundo civilizado a que deseja pertencer.

Vítima de ameaças e agressões, continua Salazar, Goa concitou nos últimos meses por toda a parte um movimento de atenção e ansiedade. Não obstante os poderosos meios de propaganda de que dispõe, Nova Deli não pôde evitar que pelo mundo se formasse uma consciência condenatória; e a generalidade dos Estados formulou o voto de que a União Indiana se «sustivesse no caminho da agressão, permitisse a verificação dos factos por olhos imparciais e procurasse dirimir quaisquer diferendos por meios pacíficos». Mas em relação a Goa perante o mundo, há um ponto em que o primeiro-ministro indiano acusa pessoalmente Salazar: o de estar mal-servindo o catolicismo na Índia, associando-o ao colonialismo. «O Pandita Nehru não está bem informado dos factos». E Salazar proclama uma afirmação de princípio: «Tenho escrupulosamente evitado em toda a minha vida pública misturar a religião com a política ou, o que é o mesmo, fazer política com a religião». E aquela acusação impõe explicações. Antes de mais, Portugal não faz assentar na religião a sua legitimidade em Goa; mas tem o direito de lamentar a atitude assumida contra Portugal em restritos sectores católicos. Esta atitude hostil nasce de duas fontes: dos católicos progressistas e de alguns meios da Propaganda Fide. Que são os primeiros? «Católicos que se deram a missão de baptizar o comunismo». Para esses, assim como Roma convertera os bárbaros, também agora deverá a Igreja abrir os braços e conciliar-se com o comunismo: «a verdade política e social adviria do comunismo, a verdade religiosa defini-la-ia a Igreja, dentro dos limites consentidos por aquele» (7). Salazar não discute este ponto: anota somente: e não estranha. Mas já é diferente o caso da Propaganda Fide. Há trezentos anos que esta combate Portugal e o seu Padroado do Oriente; e, no entanto, por toda a parte «aonde o português chegou, implantou a árvore da cruz e ela aí se radicou e cresceu, e mantém viva e na vida fiel a Roma». Tem a Propaganda os seus métodos, a sua concepção política; Portugal tem outra; e a diferença de critérios não deveria justificar hostilidade. E a verdade é esta: Goa tem sido um alfobre de sacerdotes, de apostolado, de evangelização muito para além das fronteiras de Goa. E a Propaganda entende que esta obra apenas se salva se se dissociar do Estado que a conduz. Por alguma razão, todavia, Goa tem sido designada por Roma do Oriente. Por ser indiana? Não: por ser portuguesa.

À parte tudo isto, há um outro ponto: Goa em face dos portugueses. Há problemas internos em Goa? Decerto; mas estes são assunto de Portugal. E quando forem concluídos os aeroportos de Goa, Damão e Diu - o de Goa, segundo a imaginativa Imprensa Indiana, destina-se à base americana de guerra - cessará um isolamento dos territórios que apenas é possível quebrar e está sendo quebrado por carreiras marítimas. Mas sobre esta forma de conduzir toda a questão e de enfrentar os acontecimentos «manifestaram-se algumas opiniões divergentes das do governo», e há que registá-las. Quais são? Estas: negociações com a União Indiana; resistência militar com empenhamento total do país e dos aliados que acaso conseguisse; independência de Goa, dentro de uma federação ou confederação portuguesa. Salazar volta a examinar estas sugestões. Negociar com a Índia? Sem dúvida: mas desde o memorial de 27 de Fevereiro de 1950, e consoante todos os textos posteriores, o objectivo da negociação seria apenas e o estudo das condições de integração dos territórios portugueses na União. Tudo se pode discutir - minúcias de tempo, formalidades de transmissão de poderes, garantias para negócios, culto católico, ensino de português - mas essa discussão, como a encara Nova Deli, pressupõe estar assente e aceite a entrega de Goa à União. Este caminho apareceu defendido «apenas pelos que a si próprios se intitulam partido comunista português e por alguns democratas que os seguem e apoiam». E a resistência militar? Ideia tão ousada como generosa: «a pequenez dos territórios e a fraqueza dos recursos locais, a desproporção das forças, a extensão das linhas de comunicação, a distância das bases ou pontos de apoio, tornariam a guerra na Índia para nós sem finalidade útil, para a União sem glória - e o que é pior sem termo, quero dizer, sem paz, por não ser concebível Governo português que pudesse algum dia reconhecer a expoliação». E a terceira sugestão, a de uma Goa independente? Há aí ingenuidade: no fundo da hostilidade indiana não é o estatuto de Goa que está em causa: estão o amor-próprio e as ambições da União Indiana. E depois, dada a exiguidade e dispersão dos territórios, estes não subsistiriam perante a Índia: fácil e fatal seria Nova Deli, em curto prazo, influenciar e pôr no poder em Goa um governo que seria o primeiro a solicitar a integração na Índia.

E quanto ao futuro? Pode a União fazer a guerra, e tambem pode desistir do intento; receia a primeira, porque compromete a sua doutrina política e repugna à consciência mundial; e não querendo desistir, pode perseverar na atitude presente. Para enfrentar esta, duas coisas são essenciais: força e paciência. Força, para evitar que seja imposta a Portugal uma pretensa accão policial; e paciência que se não altere com a impaciência inimiga e dure tanto pelo menos como a pertinácia desta. E se apesar de tudo a União fizer a guerra? Então, há que «bater-se, lutar, não no limite das possibilidades, mas para além do impossível. Devemos isso a nós próprios, a Goa, à civilização do Ocidente, ao mundo, ainda que este se sorria compadecidamente de nós». E Salazar lança um repto à têmpera, ao ânimo,à galhardia, ao fundo ancestral e telúrico dos portugueses: «Depois de afagar as pedras das fortalezas de Diu ou de Damão, orar na Igreja do Bom Jesus, abraçar os pés do Apóstolo das Índias, todo o português pode combater até ao último extremo, contra dez ou contra mil, com a consciência de cumprir apenas um dever. Nem o caso seria novo nos anais da Índia».
Na imagem: Padrão da Fortaleza Portuguesa de Diu

Produz impressão na câmara o longo, exaustivo discurso de Salazar, e não é menor o embate na massa da opinião pública. Em alguns círculos políticos, todavia, formulam-se críticas. Para uns, é perigosa a orientação seguida, porque prolonga a questão; para outros, se se mostrasse a habilidade na negociação, poderia levar-se Nova Deli a adoçar a sua atitude. E terceiros defendem a realização de um plebiscito: este mostraria a vontade de Goa em permanecer portuguesa: e decerto perante o facto se curvaria a União Indiana. Abertamente a favor do abandono, reitera a sua posição o Partido Comunista; circulam de novo panfletos de ataque ao governo; e Ruy Luís Gomes e outros são detidos pela polícia. E entre algumas elites sociais sentem-se receios, hesitações: é a sua incapacidade de aguentar uma política forte, é a sua permanente tendência para ceder, transigir: desejariam que se conservasse Goa desde que o facto não imponha sacrifícios: e como o território pode vir a perder-se, não seria preferível entregá-lo desde já? No Diário de Notícias, Augusto de Castro elogia em fundo o discurso de Salazar. E este, dez dias depois, escreve-lhe: «Eu devia-lhe uma palavra de reconhecimento pelos comentários em artigo seu ao discurso ou exposição da Ass. Nacional de 30 de Novembro; e tinha o dever de enviar-lha sem demora; mas não foi possível. A vida é cada vez mais carregada e dura e nem um agradecimento a tempo permite fazer. Estou muito grato a V.ª Excia pelo relevo dado à exposição e pela forma como o jornal tem acompanhado a crise, o que a V.ª Excia. se deve».


Notas:

(6) Tem interesse, para documentar um Salazar trabalhando em linhas interiores, as três seguintes cartas: Primeira - «Ao Dr. Augusto de Castro: Começo por felicitar vivamente V.ª Excia. pelo seu artigo de hoje e por agradecer-lhe a sua preciosa colaboração nesta campanha em que estamos empenhados. O ponto essencial é que de facto não é Goa, não é Portugal que está em causa ou é posto em xeque: a questão é a de um ajuste de contas com o Ocidente, é o ódio do Oriente contra a nossa civilização. E o Ocidente enfraquecido nada pode sob os seus actuais condutores. Mas vamos continuar a lutar. O Dr. Ribeiro Lopes escreveu-me de África, e também de Lisboa depois do seu regresso, algumas cartas recheadas de interessantes considerações acerca de vários aspectos da questão de Goa. Incitei-o a escrever um ou dois artigos que pudessem ser publicados no jornal de grande tiragem, e lembrei-me do «Diário de Notícias». Ainda não vi os artigos que, penso, receberei esta tarde, mas espero que sejam bons. No caso de o «Diário de Notícias» querer ter a amabilidade de prestar mais um patriótico serviço publicando-os, não sei - e V.ª Excia. verá - como devem ser apresentados, assinados? Como sendo da casa? Dando-se a impressão de terem alguma origem oficial? Não julgo que se possa tomar uma posição antes de os vermos. Assim que os receba, enviá-los-ei a V. ª Excia. para sua apreciação e decisão». Segunda - «Ao Dr. Augusto de Castro: Muito obrigado pela publicação em fundo do artigo do Dr. Ribeiro Lopes. Recebi hoje do Dr. Marcello Mathias, de Paris, alguns recortes dos jornais, cujas apreciações acerca do nosso conflito com a União Indiana foram já transcritas ou resumidas na nossa imprensa. Ele chama porém a minha atenção para três peças que podem ser postas em confronto e sobre que V.ª Excia. poderia fazer ou mandar fazer alguns comentários. 1) O Primeiro Ministro Sr. Nehru discursou em 13 e referiu-se à diferença entre as negociações com a França e o estado de coisas com Portugal. Considera aquelas como civilização dos dois lados e ele próprio confronta esse comportamento civilizado com a mentalidade medieval dos portugueses. 2) Em 21 de Abril o governo francês, em comunicado para a imprensa, fez um pequeno resumo das relações com a União Indiana no tocante aos estabelecimentos franceses. A pág. 2 e 3 da cópia que envio, o governo refere as medidas inhumanas de bloqueio e restrições (inclusivamente a retenção de encomendas postais contra o expresso nas convenções, o corte de energia, etc.) tomadas pela União Indiana contra aqueles pequenos estabelecimentos. 3) No terceiro documento, temos a resposta parlamentar do ministro (nome ilegível) em 11 do corrente. Não podendo, diferentemente dos portugueses, conservar forças militares, e portanto impossibilidade de defender pela força os estabelecimentos, o governo francês é constrangido a fazer negociações ou a abandonar unilateralmente os territórios, por não poder mais sujeitar as populações aos sofrimentos derivados das providências que a União tomou. Como medida de civilização e de comportamento civilizado, não se pode exigir mais». Terceira - «Ao Dr. Augusto de Castro: Vão estas palavras por descargo de consciência. V.ª Excia. pode certamente fazer um esplêndido artigo sobre qualquer assunto, mas a minha intenção, ao mandar-lhe ontem aquelas notas, não era obrigá-lo a trabalho de um artigo. Penso que a matéria ficaria esgotada com um comentário ou pequena nota, semelhantes a vários que nos últimos tempos o «D. de N.» tem publicado. O meu desejo é não incomodar quando não é absolutamente necessário». O nome ilegível do ministro, na segunda carta, deve ser o de Robert Buron, ministro da França do Ultramar.

(7) Salazar aflora aqui profeticamente um ponto que trinta anos mais tarde seria sublinhado por sociólogos e ensaístas, e que talvez se possa resumir assim: a cooperação ou convivência da Igreja Católica com regimes monárquicos foi viável porque aquela fornecia a inspiração ideológica e os segundos o poder; e também era viável com os regimes republicanos democráticos ou liberais, porque estes supõem justamente uma base ideológica que não é monopolista nem totalitária; mas não é viável com o marxismo-leninismo porque este tira de si próprio, ao mesmo tempo, o fundamento ideológico e o poder efectivo, e não pode, sob pena de se negar, partilhar um ou outro com qualquer inspiração ideológica, moral ou política diversas.

Continua

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