Carlos Lopes Pereira* - 13.10.07
“A etapa fundamental da libertação dos povos não é um problema de luta armada ou luta desarmada; porque para nós é sempre luta armada. Existem dois tipos de luta armada: a luta armada na qual os povos combatem de mãos vazias, enquanto que os imperialistas ou colonialistas, esses sim armados, matam e assassinam; e a luta armada daqueles que como nós, reconhecendo que não somos seus escravos, empunham armas para responder aos imperialistas”.
Amílcar Cabral1
0. Actualidade do legado teórico de Amílcar Cabral – Uma questão fundamental que gerações de revolucionários de diferentes partes do Mundo colocaram e continuam a colocar hoje é como fazer a revolução. O que fazer? Como derrubar o capitalismo e construir o socialismo? Em cada país, como mobilizar os trabalhadores, as massas populares, o povo para as lutas transformadoras? Com que forças sociais? Com que meios? Utilizando a via armada ou através de meios “pacíficos”?
A evolução mundial nos últimos 15/20 anos, em especial o fim da União Soviética e o recuo do “socialismo real”, o avanço do capitalismo com as suas receitas neoliberais, a hegemonia militar dos Estados Unidos da América e a agressividade belicista do imperialismo, os problemas ambientais à escala planetária que colocam em risco a própria sobrevivência humana, o aprofundamento do fosso entre países “ricos” e “pobres”, o aumento das desigualdades sociais, da miséria e das doenças afectando milhões de pessoas no Terceiro Mundo e também em regiões de países “ricos”, apesar dos prodigiosos avanços científicos e tecnológicos e da contínua resistência dos povos à exploração – tudo isso aponta para respostas cada vez mais diferenciadas. Não havendo “modelos” de revolução ou de socialismo a copiar, não sendo a libertação nacional e a revolução social produtos de exportação, as novas respostas a velhas questões devem ser encontradas, de forma criativa, em cada país pelos povos em luta, de acordo com as realidades específicas.
Neste debate sobre os desafios do Mundo contemporâneo, em que justamente se colocam como alternativas a civilização socialista ou a barbárie capitalista, o conhecimento de alguns aspectos do pensamento de Amílcar Cabral, fundador e líder do movimento nacionalista da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, é decerto um contributo de qualidade à procura de soluções inovadoras.
Isto, por um lado, porque a sua obra teórica é hoje pouco conhecida fora de alguns círculos africanos e, por outro lado, e sobretudo, porque o legado teórico do dirigente africano é, à luz dos combates que hoje travamos, surpreendentemente actual e inovador.
Vejamos então, algumas questões interessantes abordadas por Amílcar Cabral – a luta armada como continuação da política, o papel da violência na libertação dos povos, as opções colocadas à pequena burguesia revolucionária (“traição ou suicídio”), a natureza do Estado saído da luta de libertação nacional, a validade do marxismo nas condições de uma sociedade tribal.
1. De rebeldes a revolucionários – Filho de um professor primário cabo-verdiano e de uma guineense, nascido em 1924 na Guiné-Bissau e assassinado em 1973, em Conakry, por traidores a soldo do colonialismo português, Amílcar Cabral estudou agronomia em Lisboa (era um dos poucos guineenses da sua geração com formação superior), onde conviveu com jovens de outras colónias – Agostinho Neto, Mário Pinto de Andrade e Lúcio Lara, de Angola, Marcelino dos Santos, de Moçambique, Alda Espírito Santo, de São Tomé e Príncipe, Vasco Cabral, da Guiné, entre outros –, que mais tarde se tornariam também dirigentes dos movimentos nacionalistas nos seus países.
No início da década de 50, aprofunda os conhecimentos sobre a realidade económica e social da Guiné (dirige um recenseamento agrícola), ali estabelece contactos mais estreitos com os seus compatriotas, tenta em vão formar um clube desportivo (o que lhe é proibido pelo governador colonial!), passa algum tempo em Luanda – onde participa da formação do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) – e, de regresso ao país natal, funda em 1956, com um grupo de guineenses e cabo-verdianos, o PAIGC.
O britânico Basil Davidson, jornalista, escritor e historiador da África, contará mais tarde esse episódio: “Em Setembro de 1956, encontrando-se discretamente em Bissau, uns tantos africanos decidiram encarnar a história em si mesmos e formaram o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Eram exactamente seis, incluindo Amílcar Cabral, que era o espírito condutor; mas todos sabiam para onde iam. Começaram por lançar apelos pacíficos em que pediam modificações sociais e políticas, e apenas obtiveram como resposta o silêncio e uma repressão cada vez maior. Quase sete anos mais tarde, em Janeiro de 1963, passavam à revolta armada. (...) Tinham deixado de ser rebeldes para serem revolucionários”2.
Nos anos seguintes, entre 1956 e 1959, Cabral e companheiros procuram desenvolver a luta pela independência de forma “pacífica” – escrevendo artigos em revistas, infiltrando patriotas no único sindicato legal (o dos trabalhadores do comércio), reivindicando melhores condições para os africanos, organizando greves.
Precisamente, a 3 de Agosto de 1959, uma greve dos estivadores de Bissau e dos trabalhadores dos barcos de transporte fluvial, no porto de Pidjiguiti, é brutalmente reprimida pela tropa colonial – com apoio de colonos – a tiro, provocando 50 mortos e mais de uma centena de feridos. Face à natureza criminosa do colonialismo português, Cabral compreende que a única via para libertar a Guiné é “através da luta conduzida com todos os meios possíveis, incluindo a guerra”. Mais tarde, perante a 4ª Comissão da Assembleia Geral das Nações Unidas, em Outubro de 1972, relembraria que o massacre de Pidjiguiti foi “uma dolorosa lição para o nosso povo. Ficámos a saber que, contra os colonialistas portugueses, não se podia escolher entre a luta pacífica e a luta armada. Eles tinham as armas e estavam decididos a massacrar-nos”.
O movimento muda de táctica, os seus quadros passam à clandestinidade, mobilizam mais gente nas cidades e nos campos, preparam a luta armada que será desencadeada em 1963 e vencida em 1974. Amílcar Cabral explicará essa opção várias vezes, nos anos seguintes: “A luta de libertação nacional é (...) uma luta política que pode revestir diversas formas, de acordo com as circunstâncias específicas em que se desenvolve. No nosso caso concreto, esgotámos todos os meios pacíficos ao nosso alcance para levar os colonialistas portugueses a uma modificação radical da sua política no sentido da libertação e do progresso do nosso povo. Só encontrámos repressão e crimes. Decidimos então pegar em armas para nos batermos contra a tentativa de genocídio do nosso povo, decidido a ser livre e senhor do seu próprio destino”3.
2. Só a violência é libertadora – Para além da opção pela luta armada no processo de libertação nacional, Amílcar Cabral reflectiu também sobre o papel da violência na gesta emancipadora dos povos: “Os factos dispensam-nos de usar palavras para provar que o instrumento essencial da dominação imperialista é a violência. Se aceitarmos o princípio de que a luta de libertação nacional é uma revolução, e que ela não acaba no momento em que se iça a bandeira e se toca o hino nacional, veremos que não há nem pode haver libertação nacional sem o uso da violência libertadora, por parte das forças nacionalistas, para responder à violência criminosa dos agentes do imperialismo. Ninguém duvida de que, sejam quais forem as suas características locais, a dominação imperialista implica um estado de permanente violência contra as forças nacionalistas”.
Nesse discurso, pronunciado em Havana em Janeiro de 1966, em nome dos povos e das organizações nacionalistas das colónias portuguesas, na 1ª Conferência de Solidariedade dos Povos da África, da Ásia e da América Latina, o dirigente do PAIGC lembrava: “Não há povo no Mundo que, tendo sido submetido ao jugo imperialista (colonialista ou neocolonialista) tenha conquistado a sua independência (nominal ou efectiva) sem vítimas. O que importa é determinar quais as formas de violência que devem ser utilizadas pelas forças de libertação nacional, para não só responderem à violência do imperialismo mas também para garantirem, através da luta, a vitória final da sua causa, isto é, a verdadeira independência nacional”.
E sublinhava que “(...) a única via eficaz para a realização cabal e definitiva das aspirações dos povos à libertação nacional é a luta armada. Esta é a grande lição que a história recente e actual de libertação ensina a todos aqueles que estão verdadeiramente empenhados na libertação nacional dos seus povos”4.
3. Porque falharam as independências africanas? – Quando, no final dos anos 50 do século passado, o PAIGC decide preparar e lançar a luta armada na Guiné, Cabral compreende que, nas condições objectivas do país, não existindo proletariado, o campesinato – ao contrário do que defendiam, por exemplo, Fanon em relação à Argélia ou Mao para o caso da China – devia ser a força numérica principal e que a luta só podia ser dirigida pelo sector “revolucionário” da pequena burguesia.
Explicava ele, em 1964, num seminário organizado em Itália pelo Centro Frantz Fanon de Milão: “A questão de saber se o campesinato representa ou não a principal força revolucionária é de importância capital. E, no que diz respeito à Guiné, devo responder negativamente. Pode assim parecer surpreendente que baseemos no campesinato a totalidade dos esforços da nossa luta armada. Representando todo o país, controlando e produzindo as suas riquezas, é fisicamente muito forte; no entanto, sabemos por experiência quanto nos custou incitá-lo à luta”5. E defendia que, nas condições da Guiné, a única camada social capaz de consciencializar em primeiro lugar a realidade da dominação imperialista e de manipular o aparelho de Estado herdado dessa dominação era a pequena burguesia nativa.
Aliás, a natureza do Estado saído da luta armada vitoriosa de libertação nacional estava no centro das preocupações de Amílcar Cabral, para quem a luta de libertação nacional era uma revolução e não terminava com “a bandeira e o hino”. Para ele, aliás, a natureza do Estado pós colonial é o segredo do falhanço das independências africanas, já que, em muitos casos, “apenas se substituiu o homem branco pelo homem negro, mas para o povo tudo ficou na mesma”.
Na análise de Cabral, depois da independência, para manter o poder que a libertação nacional colocava nas suas mãos, a pequena burguesia só tem um caminho: deixar agir livremente as suas tendências naturais de emburguesamento, transformar-se em pseudo-burguesia nacional, isto é, negar a revolução e enfeudar-se necessariamente ao capital imperialista, o que corresponde a uma situação neocolonial, quer dizer, à traição dos objectivos da libertação nacional. Para não trair esses objectivos, a pequena burguesia deve reforçar a sua consciência revolucionária, repudiar as tentações de emburguesamento, identificar-se com as classes trabalhadoras, não se opor ao desenvolvimento normal do processo da revolução. Ou seja, segundo Cabral, “para desempenhar cabalmente o papel que lhe cabe na luta de libertação nacional, a pequena burguesia revolucionária deve ser capaz de suicidar-se como classe, para ressuscitar na condição de trabalhador revolucionário, inteiramente identificado com as aspirações mais profundas do povo a que pertence”6. Esta alternativa – trair a revolução ou suicidar-se como classe – constitui o dilema da pequena burguesia no quadro geral da luta de libertação nacional.
4. Não temos de ser mais marxistas que Marx – Basil Davidson escreveu em 1968, depois de uma visita às áreas libertadas da Guiné, que “o PAIGC é um movimento revolucionário que se baseia numa análise marxista da realidade social. Mas, ao fim e ao cabo, dizer isto é realmente dizer muito pouco. Que movimento revolucionário dos últimos cinquenta anos se declarou qualquer outra coisa? O ponto importante é que o PAIGC é um movimento revolucionário baseado na análise da realidade social na Guiné: revolucionário precisamente e, sobretudo, porque as suas linhas de rumo são inspiradas em circunstâncias inteiramente indígenas. Isso não torna as suas conclusões necessariamente correctas mas indubitavelmente torna-as originais. Quanto à correcção das conclusões, a prova do pudim está e há-de estar no comê-lo; até agora, pode dizer-se que a prova dá boa conta de si”7.
Na verdade, Cabral dava a maior importância à ideologia, afirmando que “se é verdade que uma revolução pode falhar, mesmo que seja nutrida por teorias perfeitamente concebidas, ainda ninguém praticou vitoriosamente uma revolução sem teoria revolucionária”8.
Em 1971, em Londres, Amílcar Cabral contou a um grupo de intelectuais –e vale a pena a longa citação, até porque o texto é muito pouco conhecido – qual era a sua base ideológica: “Nós acreditamos que uma luta como a nossa é impossível sem ideologia. (...) Partir das realidades do nosso próprio país para a criação de uma ideologia para a luta não implica que se pretenda ser um Marx ou um Lénine ou qualquer outro grande ideólogo, mas é simplesmente uma parte necessária da luta. Confesso que não conhecíamos suficientemente bem estes teóricos quando começámos. Nós não os conhecíamos nem metade do que os conhecemos agora! Nós tivemos necessidade de conhecê-los, como disse, a fim de julgarmos em que medida podíamos aproveitar a sua experiência para ajudar a nossa situação – mas não necessariamente para aplicar a ideologia cegamente, só porque ela é uma ideologia muito boa. Este é o nosso ponto de vista. Mas a ideologia é importante na Guiné. (...) Não queremos que o nosso povo seja mais explorado. O nosso desejo de desenvolver o nosso país com justiça social e com o poder nas mãos do povo é a nossa base ideológica. Nunca mais queremos ver um grupo ou uma classe de pessoas explorar ou dominar o trabalho do nosso povo. Esta é a nossa base. Se se quiser chamar a isso marxismo, chame-se marxismo”9.
Nessa conversa na Universidade de Londres, Cabral abordou a questão da aplicação do marxismo-leninismo nas condições de uma sociedade historicamente atrasada: “Não podemos, a partir da nossa experiência, dizer que o marxismo-leninismo tem que ser modificado – isso seria presunçoso. O que nós devemos fazer é modificar, transformar radicalmente as condições políticas, económicas, sociais e culturais do nosso povo. Isso não quer dizer que nós não temos respeito por tudo quanto o marxismo e o leninismo contribuíram para a transformação das lutas em todo o Mundo e através dos anos. Mas nós temos a certeza absoluta de que temos de criar e desenvolver na nossa situação específica a solução para o nosso país. Acreditamos que as leis que regulam a evolução de todas as sociedades humanas são as mesmas. A nossa sociedade desenvolve-se da mesma maneira que outras sociedades no Mundo, de acordo com o processo histórico; mas devemos compreender claramente em que estágio está a nossa sociedade. Marx, quando criou o marxismo, não vivia numa sociedade tribal; acho que nós não temos necessidade de ser mais marxistas que Marx ou mais leninistas que Lénine na aplicação das suas teorias”10.
Numa outra conversa no estrangeiro, em inglês, desta vez nos Estados Unidos, com organizações de negros americanos, em Outubro de 1972 – três meses antes de ser assassinado –, Cabral reafirmou a ideia da especificidade de cada luta: “Nós baseamos a nossa luta nas realidades concretas do nosso país. Apreciamos as experiências e as conquistas de outros povos e estudamo-las. Mas a revolução ou a luta de libertação nacional é como um vestido que deve ser moldado para cada corpo. Evidentemente, há certas leis gerais ou universais, mesmo leis científicas para quaisquer condições, mas a libertação nacional tem de ser levada a cabo de acordo com as condições específicas de cada país. Isto é importante. As condições específicas que devem ser consideradas incluem as condições económicas, culturais, sociais, políticas e mesmo geográficas. Os manuais de guerrilha ensinaram-nos um dia que sem montanhas não se pode fazer guerra de guerrilhas. Mas no meu país não há montanhas, apenas o povo”11.
Vamos reter, então, com Amílcar Cabral, duas ou três ideias que, tal como há 30 ou 40 anos, quando as defendeu, continuam hoje válidas e constituem ensinamentos preciosos para os que continuam a lutar pela libertação nacional e pela emancipação social dos povos.
Uma primeira ideia é a de que “a etapa fundamental da libertação dos povos não é um problema de luta armada ou luta desarmada; porque para nós [os povos dominados e as classes dominadas] é sempre luta armada. Existem dois tipos de luta armada: a luta armada na qual os povos combatem de mãos vazias, enquanto que os imperialistas ou colonialistas, esses sim armados, matam e assassinam; e a luta armada daqueles que como nós, reconhecendo que não somos seus escravos, empunham armas para responder aos imperialistas”.
Uma segunda ideia que fica, mostrando Amílcar Cabral, neste começo do século XXI, como um revolucionário pleno de actualidade, é a de que “Nós baseamos a nossa luta nas realidades concretas do nosso país. Apreciamos as experiências e as conquistas de outros povos e estudamo-las. Mas a revolução ou a luta de libertação nacional é como um vestido que deve ser moldado para cada corpo. Evidentemente, há certas leis gerais ou universais, mesmo leis científicas para quaisquer condições, mas a libertação nacional tem de ser levada a cabo de acordo com as condições específicas de cada país”.
Notas:
1 Citado por Oscar Oramas, in Amílcar Cabral/Para além do seu tempo, Hugin, Lisboa, 1998, p. 64
2 Basil Davidson, A libertação da Guiné/Aspectos de uma revolução africana, Sá da Costa, Lisboa, 1975, pp. 27-28
3 Amílcar Cabral, intervenção num simpósio em Alma-Ata, na República Socialista Soviética do Cazaquistão, em 1970, in Obras escolhidas de Amílcar Cabral/A arma da teoria/Unidade e luta, vol. I, Seara Nova, Lisboa, 1978, p. 215
4 Cabral, op. cit., p. 211
5 Cabral, op. cit, p. 103
6 Cabral, op. cit., pp. 212-213
7 Davidson, A libertação da Guiné..., p. 87
8 Cabral, Obras escolhidas..., p. 202
9 Amílcar Cabral, “Criar e desenvolver na nossa situação específica uma solução própria”, in revista O Militante, órgão do PAIGC, Bissau, n.º 1, Julho de 1977, p. 46
10 Cabral, idem.
11 Cabral, O Militante, n.º 2, p.57.
Amílcar Cabral1
0. Actualidade do legado teórico de Amílcar Cabral – Uma questão fundamental que gerações de revolucionários de diferentes partes do Mundo colocaram e continuam a colocar hoje é como fazer a revolução. O que fazer? Como derrubar o capitalismo e construir o socialismo? Em cada país, como mobilizar os trabalhadores, as massas populares, o povo para as lutas transformadoras? Com que forças sociais? Com que meios? Utilizando a via armada ou através de meios “pacíficos”?
A evolução mundial nos últimos 15/20 anos, em especial o fim da União Soviética e o recuo do “socialismo real”, o avanço do capitalismo com as suas receitas neoliberais, a hegemonia militar dos Estados Unidos da América e a agressividade belicista do imperialismo, os problemas ambientais à escala planetária que colocam em risco a própria sobrevivência humana, o aprofundamento do fosso entre países “ricos” e “pobres”, o aumento das desigualdades sociais, da miséria e das doenças afectando milhões de pessoas no Terceiro Mundo e também em regiões de países “ricos”, apesar dos prodigiosos avanços científicos e tecnológicos e da contínua resistência dos povos à exploração – tudo isso aponta para respostas cada vez mais diferenciadas. Não havendo “modelos” de revolução ou de socialismo a copiar, não sendo a libertação nacional e a revolução social produtos de exportação, as novas respostas a velhas questões devem ser encontradas, de forma criativa, em cada país pelos povos em luta, de acordo com as realidades específicas.
Neste debate sobre os desafios do Mundo contemporâneo, em que justamente se colocam como alternativas a civilização socialista ou a barbárie capitalista, o conhecimento de alguns aspectos do pensamento de Amílcar Cabral, fundador e líder do movimento nacionalista da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, é decerto um contributo de qualidade à procura de soluções inovadoras.
Isto, por um lado, porque a sua obra teórica é hoje pouco conhecida fora de alguns círculos africanos e, por outro lado, e sobretudo, porque o legado teórico do dirigente africano é, à luz dos combates que hoje travamos, surpreendentemente actual e inovador.
Vejamos então, algumas questões interessantes abordadas por Amílcar Cabral – a luta armada como continuação da política, o papel da violência na libertação dos povos, as opções colocadas à pequena burguesia revolucionária (“traição ou suicídio”), a natureza do Estado saído da luta de libertação nacional, a validade do marxismo nas condições de uma sociedade tribal.
1. De rebeldes a revolucionários – Filho de um professor primário cabo-verdiano e de uma guineense, nascido em 1924 na Guiné-Bissau e assassinado em 1973, em Conakry, por traidores a soldo do colonialismo português, Amílcar Cabral estudou agronomia em Lisboa (era um dos poucos guineenses da sua geração com formação superior), onde conviveu com jovens de outras colónias – Agostinho Neto, Mário Pinto de Andrade e Lúcio Lara, de Angola, Marcelino dos Santos, de Moçambique, Alda Espírito Santo, de São Tomé e Príncipe, Vasco Cabral, da Guiné, entre outros –, que mais tarde se tornariam também dirigentes dos movimentos nacionalistas nos seus países.
No início da década de 50, aprofunda os conhecimentos sobre a realidade económica e social da Guiné (dirige um recenseamento agrícola), ali estabelece contactos mais estreitos com os seus compatriotas, tenta em vão formar um clube desportivo (o que lhe é proibido pelo governador colonial!), passa algum tempo em Luanda – onde participa da formação do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) – e, de regresso ao país natal, funda em 1956, com um grupo de guineenses e cabo-verdianos, o PAIGC.
O britânico Basil Davidson, jornalista, escritor e historiador da África, contará mais tarde esse episódio: “Em Setembro de 1956, encontrando-se discretamente em Bissau, uns tantos africanos decidiram encarnar a história em si mesmos e formaram o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Eram exactamente seis, incluindo Amílcar Cabral, que era o espírito condutor; mas todos sabiam para onde iam. Começaram por lançar apelos pacíficos em que pediam modificações sociais e políticas, e apenas obtiveram como resposta o silêncio e uma repressão cada vez maior. Quase sete anos mais tarde, em Janeiro de 1963, passavam à revolta armada. (...) Tinham deixado de ser rebeldes para serem revolucionários”2.
Nos anos seguintes, entre 1956 e 1959, Cabral e companheiros procuram desenvolver a luta pela independência de forma “pacífica” – escrevendo artigos em revistas, infiltrando patriotas no único sindicato legal (o dos trabalhadores do comércio), reivindicando melhores condições para os africanos, organizando greves.
Precisamente, a 3 de Agosto de 1959, uma greve dos estivadores de Bissau e dos trabalhadores dos barcos de transporte fluvial, no porto de Pidjiguiti, é brutalmente reprimida pela tropa colonial – com apoio de colonos – a tiro, provocando 50 mortos e mais de uma centena de feridos. Face à natureza criminosa do colonialismo português, Cabral compreende que a única via para libertar a Guiné é “através da luta conduzida com todos os meios possíveis, incluindo a guerra”. Mais tarde, perante a 4ª Comissão da Assembleia Geral das Nações Unidas, em Outubro de 1972, relembraria que o massacre de Pidjiguiti foi “uma dolorosa lição para o nosso povo. Ficámos a saber que, contra os colonialistas portugueses, não se podia escolher entre a luta pacífica e a luta armada. Eles tinham as armas e estavam decididos a massacrar-nos”.
O movimento muda de táctica, os seus quadros passam à clandestinidade, mobilizam mais gente nas cidades e nos campos, preparam a luta armada que será desencadeada em 1963 e vencida em 1974. Amílcar Cabral explicará essa opção várias vezes, nos anos seguintes: “A luta de libertação nacional é (...) uma luta política que pode revestir diversas formas, de acordo com as circunstâncias específicas em que se desenvolve. No nosso caso concreto, esgotámos todos os meios pacíficos ao nosso alcance para levar os colonialistas portugueses a uma modificação radical da sua política no sentido da libertação e do progresso do nosso povo. Só encontrámos repressão e crimes. Decidimos então pegar em armas para nos batermos contra a tentativa de genocídio do nosso povo, decidido a ser livre e senhor do seu próprio destino”3.
2. Só a violência é libertadora – Para além da opção pela luta armada no processo de libertação nacional, Amílcar Cabral reflectiu também sobre o papel da violência na gesta emancipadora dos povos: “Os factos dispensam-nos de usar palavras para provar que o instrumento essencial da dominação imperialista é a violência. Se aceitarmos o princípio de que a luta de libertação nacional é uma revolução, e que ela não acaba no momento em que se iça a bandeira e se toca o hino nacional, veremos que não há nem pode haver libertação nacional sem o uso da violência libertadora, por parte das forças nacionalistas, para responder à violência criminosa dos agentes do imperialismo. Ninguém duvida de que, sejam quais forem as suas características locais, a dominação imperialista implica um estado de permanente violência contra as forças nacionalistas”.
Nesse discurso, pronunciado em Havana em Janeiro de 1966, em nome dos povos e das organizações nacionalistas das colónias portuguesas, na 1ª Conferência de Solidariedade dos Povos da África, da Ásia e da América Latina, o dirigente do PAIGC lembrava: “Não há povo no Mundo que, tendo sido submetido ao jugo imperialista (colonialista ou neocolonialista) tenha conquistado a sua independência (nominal ou efectiva) sem vítimas. O que importa é determinar quais as formas de violência que devem ser utilizadas pelas forças de libertação nacional, para não só responderem à violência do imperialismo mas também para garantirem, através da luta, a vitória final da sua causa, isto é, a verdadeira independência nacional”.
E sublinhava que “(...) a única via eficaz para a realização cabal e definitiva das aspirações dos povos à libertação nacional é a luta armada. Esta é a grande lição que a história recente e actual de libertação ensina a todos aqueles que estão verdadeiramente empenhados na libertação nacional dos seus povos”4.
3. Porque falharam as independências africanas? – Quando, no final dos anos 50 do século passado, o PAIGC decide preparar e lançar a luta armada na Guiné, Cabral compreende que, nas condições objectivas do país, não existindo proletariado, o campesinato – ao contrário do que defendiam, por exemplo, Fanon em relação à Argélia ou Mao para o caso da China – devia ser a força numérica principal e que a luta só podia ser dirigida pelo sector “revolucionário” da pequena burguesia.
Explicava ele, em 1964, num seminário organizado em Itália pelo Centro Frantz Fanon de Milão: “A questão de saber se o campesinato representa ou não a principal força revolucionária é de importância capital. E, no que diz respeito à Guiné, devo responder negativamente. Pode assim parecer surpreendente que baseemos no campesinato a totalidade dos esforços da nossa luta armada. Representando todo o país, controlando e produzindo as suas riquezas, é fisicamente muito forte; no entanto, sabemos por experiência quanto nos custou incitá-lo à luta”5. E defendia que, nas condições da Guiné, a única camada social capaz de consciencializar em primeiro lugar a realidade da dominação imperialista e de manipular o aparelho de Estado herdado dessa dominação era a pequena burguesia nativa.
Aliás, a natureza do Estado saído da luta armada vitoriosa de libertação nacional estava no centro das preocupações de Amílcar Cabral, para quem a luta de libertação nacional era uma revolução e não terminava com “a bandeira e o hino”. Para ele, aliás, a natureza do Estado pós colonial é o segredo do falhanço das independências africanas, já que, em muitos casos, “apenas se substituiu o homem branco pelo homem negro, mas para o povo tudo ficou na mesma”.
Na análise de Cabral, depois da independência, para manter o poder que a libertação nacional colocava nas suas mãos, a pequena burguesia só tem um caminho: deixar agir livremente as suas tendências naturais de emburguesamento, transformar-se em pseudo-burguesia nacional, isto é, negar a revolução e enfeudar-se necessariamente ao capital imperialista, o que corresponde a uma situação neocolonial, quer dizer, à traição dos objectivos da libertação nacional. Para não trair esses objectivos, a pequena burguesia deve reforçar a sua consciência revolucionária, repudiar as tentações de emburguesamento, identificar-se com as classes trabalhadoras, não se opor ao desenvolvimento normal do processo da revolução. Ou seja, segundo Cabral, “para desempenhar cabalmente o papel que lhe cabe na luta de libertação nacional, a pequena burguesia revolucionária deve ser capaz de suicidar-se como classe, para ressuscitar na condição de trabalhador revolucionário, inteiramente identificado com as aspirações mais profundas do povo a que pertence”6. Esta alternativa – trair a revolução ou suicidar-se como classe – constitui o dilema da pequena burguesia no quadro geral da luta de libertação nacional.
4. Não temos de ser mais marxistas que Marx – Basil Davidson escreveu em 1968, depois de uma visita às áreas libertadas da Guiné, que “o PAIGC é um movimento revolucionário que se baseia numa análise marxista da realidade social. Mas, ao fim e ao cabo, dizer isto é realmente dizer muito pouco. Que movimento revolucionário dos últimos cinquenta anos se declarou qualquer outra coisa? O ponto importante é que o PAIGC é um movimento revolucionário baseado na análise da realidade social na Guiné: revolucionário precisamente e, sobretudo, porque as suas linhas de rumo são inspiradas em circunstâncias inteiramente indígenas. Isso não torna as suas conclusões necessariamente correctas mas indubitavelmente torna-as originais. Quanto à correcção das conclusões, a prova do pudim está e há-de estar no comê-lo; até agora, pode dizer-se que a prova dá boa conta de si”7.
Na verdade, Cabral dava a maior importância à ideologia, afirmando que “se é verdade que uma revolução pode falhar, mesmo que seja nutrida por teorias perfeitamente concebidas, ainda ninguém praticou vitoriosamente uma revolução sem teoria revolucionária”8.
Em 1971, em Londres, Amílcar Cabral contou a um grupo de intelectuais –e vale a pena a longa citação, até porque o texto é muito pouco conhecido – qual era a sua base ideológica: “Nós acreditamos que uma luta como a nossa é impossível sem ideologia. (...) Partir das realidades do nosso próprio país para a criação de uma ideologia para a luta não implica que se pretenda ser um Marx ou um Lénine ou qualquer outro grande ideólogo, mas é simplesmente uma parte necessária da luta. Confesso que não conhecíamos suficientemente bem estes teóricos quando começámos. Nós não os conhecíamos nem metade do que os conhecemos agora! Nós tivemos necessidade de conhecê-los, como disse, a fim de julgarmos em que medida podíamos aproveitar a sua experiência para ajudar a nossa situação – mas não necessariamente para aplicar a ideologia cegamente, só porque ela é uma ideologia muito boa. Este é o nosso ponto de vista. Mas a ideologia é importante na Guiné. (...) Não queremos que o nosso povo seja mais explorado. O nosso desejo de desenvolver o nosso país com justiça social e com o poder nas mãos do povo é a nossa base ideológica. Nunca mais queremos ver um grupo ou uma classe de pessoas explorar ou dominar o trabalho do nosso povo. Esta é a nossa base. Se se quiser chamar a isso marxismo, chame-se marxismo”9.
Nessa conversa na Universidade de Londres, Cabral abordou a questão da aplicação do marxismo-leninismo nas condições de uma sociedade historicamente atrasada: “Não podemos, a partir da nossa experiência, dizer que o marxismo-leninismo tem que ser modificado – isso seria presunçoso. O que nós devemos fazer é modificar, transformar radicalmente as condições políticas, económicas, sociais e culturais do nosso povo. Isso não quer dizer que nós não temos respeito por tudo quanto o marxismo e o leninismo contribuíram para a transformação das lutas em todo o Mundo e através dos anos. Mas nós temos a certeza absoluta de que temos de criar e desenvolver na nossa situação específica a solução para o nosso país. Acreditamos que as leis que regulam a evolução de todas as sociedades humanas são as mesmas. A nossa sociedade desenvolve-se da mesma maneira que outras sociedades no Mundo, de acordo com o processo histórico; mas devemos compreender claramente em que estágio está a nossa sociedade. Marx, quando criou o marxismo, não vivia numa sociedade tribal; acho que nós não temos necessidade de ser mais marxistas que Marx ou mais leninistas que Lénine na aplicação das suas teorias”10.
Numa outra conversa no estrangeiro, em inglês, desta vez nos Estados Unidos, com organizações de negros americanos, em Outubro de 1972 – três meses antes de ser assassinado –, Cabral reafirmou a ideia da especificidade de cada luta: “Nós baseamos a nossa luta nas realidades concretas do nosso país. Apreciamos as experiências e as conquistas de outros povos e estudamo-las. Mas a revolução ou a luta de libertação nacional é como um vestido que deve ser moldado para cada corpo. Evidentemente, há certas leis gerais ou universais, mesmo leis científicas para quaisquer condições, mas a libertação nacional tem de ser levada a cabo de acordo com as condições específicas de cada país. Isto é importante. As condições específicas que devem ser consideradas incluem as condições económicas, culturais, sociais, políticas e mesmo geográficas. Os manuais de guerrilha ensinaram-nos um dia que sem montanhas não se pode fazer guerra de guerrilhas. Mas no meu país não há montanhas, apenas o povo”11.
Vamos reter, então, com Amílcar Cabral, duas ou três ideias que, tal como há 30 ou 40 anos, quando as defendeu, continuam hoje válidas e constituem ensinamentos preciosos para os que continuam a lutar pela libertação nacional e pela emancipação social dos povos.
Uma primeira ideia é a de que “a etapa fundamental da libertação dos povos não é um problema de luta armada ou luta desarmada; porque para nós [os povos dominados e as classes dominadas] é sempre luta armada. Existem dois tipos de luta armada: a luta armada na qual os povos combatem de mãos vazias, enquanto que os imperialistas ou colonialistas, esses sim armados, matam e assassinam; e a luta armada daqueles que como nós, reconhecendo que não somos seus escravos, empunham armas para responder aos imperialistas”.
Uma segunda ideia que fica, mostrando Amílcar Cabral, neste começo do século XXI, como um revolucionário pleno de actualidade, é a de que “Nós baseamos a nossa luta nas realidades concretas do nosso país. Apreciamos as experiências e as conquistas de outros povos e estudamo-las. Mas a revolução ou a luta de libertação nacional é como um vestido que deve ser moldado para cada corpo. Evidentemente, há certas leis gerais ou universais, mesmo leis científicas para quaisquer condições, mas a libertação nacional tem de ser levada a cabo de acordo com as condições específicas de cada país”.
Notas:
1 Citado por Oscar Oramas, in Amílcar Cabral/Para além do seu tempo, Hugin, Lisboa, 1998, p. 64
2 Basil Davidson, A libertação da Guiné/Aspectos de uma revolução africana, Sá da Costa, Lisboa, 1975, pp. 27-28
3 Amílcar Cabral, intervenção num simpósio em Alma-Ata, na República Socialista Soviética do Cazaquistão, em 1970, in Obras escolhidas de Amílcar Cabral/A arma da teoria/Unidade e luta, vol. I, Seara Nova, Lisboa, 1978, p. 215
4 Cabral, op. cit., p. 211
5 Cabral, op. cit, p. 103
6 Cabral, op. cit., pp. 212-213
7 Davidson, A libertação da Guiné..., p. 87
8 Cabral, Obras escolhidas..., p. 202
9 Amílcar Cabral, “Criar e desenvolver na nossa situação específica uma solução própria”, in revista O Militante, órgão do PAIGC, Bissau, n.º 1, Julho de 1977, p. 46
10 Cabral, idem.
11 Cabral, O Militante, n.º 2, p.57.
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