segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Et Dieu? Est-Il Charlie?

OPINIÃO


Quando a sátira nos faz rir, é Deus que ri. Marchemos pois por esta liberdade.
Deus também ri. Ri-se daqueles deuses mortais que matam em seu nome e dos homens que se julgam imortalizados por decidirem da morte dos outros. A ideia de que o Homem está acima de Deus tanto está na raiz do humanismo revolucionário como do terrorismo fundamentalista.
Numa modernidade carente de verdade devemos pois aceitar a sugestão agostiniana de que é a idolatria dos homens que é risível, o que não significa que não a tomemos a sério. É dos "idiomas da verdade", de que nos fala José Tolentino Mendonça (J.T.M., Expresso, 17/01/2015), que devemos rir e é neste sentido que vale a pena reflectir também sobre os idiomas da liberdade.
Como lembra Pedro Mexia, a liberdade de expressão assume particular relevo numa civilização em que a palavra é fundamento de "crença e identidade" (P.M., Expresso, 31/01/2015). Ora, subjacente a muitos dos recentes argumentos a favor da liberdade de expressão está precisamente a "crença" na liberdade como um fim em si. A premissa de que a liberdade se pode auto-sustentar sem um fundamento moral anterior e que, como reconhecia já Hegel, se reforça por via da sua própria negação, é a pedra angular do secularismo liberal. É-nos ainda muito familiar a lógica contratualista segundo a qual a liberdade se torna imune a si própria, civilizando o que nela há de naturalmente violento. Mas se para sermos livres é necessário libertarmo-nos de uma natureza que nos aprisiona, temos pelo menos a obrigação de perguntar quantas liberdades nos custará a marcha de Hollande – e se a mesma não justifica uma segurança que nos coloca na condição existencial que queríamos evitar à partida. Afinal o que é que nos garante que este assegurar das liberdades não se torna permanentemente excepcional ao ponto de matar a liberdade?
Uma resposta possível reside na ideia de liberdade enquanto "bem"como sugere Gonçalo Almeida Ribeiro num dos mais interessantes artigos escritos a este propósito (G.A.R., Observador, 14/01/2015). Há de facto uma virtude na liberdade de expressão que não a torna apenas útil ou prazerosa. Nesta liberdade pressentimos uma verdade – e até um dever –, o que significa que a afirmação da liberdade parte de um critério que lhe é externo. Para entronizar esta "Rainha das Liberdades" temos de a reenviar para uma noção de "bem"que a transcende e, quase sem querer, começamos a delinear os contornos de uma autêntica, ainda que indefinida, "verdade moral" para a qual a liberdade é afinal um meio. A liberdade de expressão enriquece a esfera pública, faz de nós cidadãos melhores, aproxima-nos de um certo sentido de virtude geral – mesmo quando nega a possibilidade de definir o conteúdo dessa virtude. Permite-nos criticar abertamente um determinado regime político, propor o seu fim, ou até ofender uma religião. Mas, na medida em que o faz, já assume que está a contribuir para um mundo melhor. Portanto, a liberdade intimauma noção de bem comum, não no sentido em que determina uma direcção ou determinação específica desse bem, mas no sentido em que, ao usar da minha liberdade de expressão para pôr em causa um qualquer ideal, não o faço apenas for liberty's sake; faço-o porque há uma força moral no maldizer crítico que só pode advir da crença no bem.
Há pois na liberdade de expressão uma assunção de alteridade que não se traduz de todo na ideia de que "a liberdade de cada um termina onde começa a do outro". O desgaste desta fórmula é, de resto, natural numa liberdade que se auto-securitiza ao encontrar em si e não no outro a sua vocação. Antes, a nossa liberdade começa onde começa a dos outros, dado que dificilmente podemos ser livres sozinhos. Mesmo Habermas – como em tempos o jovemRawls – reconhece que a modernidade não consegue alicerçar-se unicamente numa liberdade auto-referente. Por isso, uma liberdade verdadeiramente crítica é sempre por algo ou por alguém e não pode constituir-se como imanência nua. Há um "for the sake of" na liberdade de expressão que podemos não saber definir; mas dizer que esta liberdade é boa já é definir a liberdade por referência a algo que a informa, que a precede e que a supera.
A idolatria interna da liberdade torna as sociedades abertas menos livres. A asserção de identidade cultural de algumas comunidades face a outras por via da autodeterminação e enquanto totalidades impenetráveis é ela própria uma forma de atomização. Esta "comunitarização" de sociedades multiculturais de que nos fala Carlos Gaspar também pode ser entendida como emanação social de um individualismo imunológico (PÚBLICO, 15/01/2015). Nessa medida a "cidadania republicana" não pode descartar o princípio da fraternidade sem recair num tipo de anomia social que é propícia à egomania de restlesssettlers sem pátria.                      
Esta explicação não cauciona o terrorismo, até porque também este parece constituir uma forma de liberdade profundamente egocêntrica e indiferente aos outros. De facto, o heroísmo voluntarista destes terroristas traduz-se numa violência imanente que contradiz qualquer concepção tradicional de martírio sacrificial. Este só pode constituir a base de uma regeneração moral da sociedade – de redenção colectiva ou potencial salvação – quando o comportamento das vítimas revoltadas é exemplar do ponto de vista metapolítico, no sentido em que antecipa um ideal de justiça traduzível numa nova ordem.
Ora, este terrorismo não é uma intifada: não reivindica um passado de sofrimento que mereça um resgate mítico e que, pela sua rememoração, poderia reconstituir a base metafísica de um novo contrato social. É difícil vislumbrar no discurso fundamentalista qualquer racionalidade anamnésica capaz de concorrer com a razão instrumental do capitalismo e constituir o que Benjamin entendia como uma forma revolucionária e politicamente consequente de violência divina. O próprio terrorismo islâmico acaba por configurar um individualismo que toma a liberdade como um fim em si mesmo, dado que qualquer um pode ser mártir da causa da sua própria salvação. Eis os novos self-made men da pax americana, empreendedorespara quem o sacrifício público constitui a melhor saída profissional deste mundo, com direito a estágio remunerado no Levante.
Paradoxalmente, é precisamente o espírito relativizador da liberdade de expressão que restabelece os limites da liberdade, porque na possibilidade de autocrítica há um reconhecimento da universalidade do pecado. Aqui a liberdade de expressão demarca-se da idolatria. A sátira política, como forma especialmente libertadora e normativa de humor, é capaz de revelar novos mundos pela simples ridicularização das instituições ou da sociedade como um todo. O potencial satírico da Rainha das Liberdades comprova, portanto, a "desejabilidade moral" da liberdade de expressão enquanto meio. Mesmo quando a liberdade se reinventa infinitamente ela não deixa de reflectir e sugerir, ainda que implicitamente, formas alternativas de nos relacionarmos e de pensarmos a política e a sociedade.
Ora, a defesa da liberdade através da negligência dos seus fundamentos morais e metafísicos aliena a liberdade da própria possibilidade de crítica e pode justificar todos os meios para a sua realização enquanto fim. Pelo contrário, partindo da ideia de liberdade enquanto meio podemos, mesmo desconhecendo à partida o fim da história, valorizar a ambiguidade da "intimação" que esta liberdade invoca: a de que temos de ser livres em comum. A palavra intimus designa precisamente o Eu mais distante em nós, o outro que também somos, porque enquanto humanos estamos condenados a essa autodistância. Toda a sátira expressa, portanto, uma fé no outro. A liberdade de expressão, enquanto expectativa de se ser ouvido, é antes de tudo uma chamada. E talvez na estranheza imediata que nos causam todos os desencontros, como no espanto que sentimos pelas desconversas entre civilizações, possamos intuir uma verdade capaz de "tomar conta de nós" (P.M., Expresso, 31/01/2015).
Assim entendida, a própria sátira pode ser um meio para algo maior. Não se toma como fim – mas também não se deixa atropelar por ele. Enfim, é como que um meio em si mesmo: um tipo de resistência que pode recorrer à violência simbólica porque sabe do seu lugar na difícil relação entre meios e fins. Ela liberta-nos do nosso ensimesmamento, da "rigidez que nos captura", que "nos torna surdos à realidade, prisioneiros da ficção de nós mesmos" (J.T.M.). Afinal nunca seríamos salvos se não fôssemos livres de nos rir com os outros. Nesta ansiedade natural pela reacção do outro há já uma redenção: a consciência de que há formas diferentes de pensar como é que havemos de viver em conjunto liberta-nos do peso da decisão derradeira que só um deus podia carregar. Portanto, quando a sátira nos faz rir, é Deus que ri. Marchemos pois por esta liberdade. Ela liberta-nos para amar.
Professor de Relações Internacionais, Universidade da Beira Interior (UBI), investigador do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI)

Sem comentários: