terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Acidente de Mbuzini - Por João Cabrita


Mais 30 anos de mentiras?

Uma notícia que na passada semana fez correr muita tinta nos Estados Unidos foi a da divulgação da memória descritiva elaborada por um Comité do Senado norte-americano sobre o “Estudo do Programa de Detenções e Interrogatórios da CIA” instituído a seguir aos ataques contra as torres gémeas de Nova Iorque em Setembro de 2001. Com mais de 500 páginas, a memória descritiva baseia-se, entre outros, em documentação obtida da própria CIA. Para se ter uma ideia do volume de documentação divulgada pela CIA, bastaria mencionar que a memória descritiva contém 2,725 notas de rodapé referentes a documentos dessa agência do governo norte-americano. Mesmo tomando 2001 como ano de início da elaboração do estudo, concluí-se que o referido comité obteve essa documentação num espaço temporal de 13 anos.
Vem isto a propósito de uma entrevista que Sérgio Vieira concedeu a semana passada ao canal televisivo TIM, na qual ele afirma ter “esperança que daqui a 30 anos os documentos britânicos e americanos nos digam alguma coisa” sobre as   causas do acidente de Mbuzini.
Esse período, na óptica de Sérgio Vieira, seria o que ele designa de “tempo de congelamento” que antecede a divulgação de documentos oficiais americanos e britânicos. Tendo o acidente de Mbuzini ocorrido há 28 anos, o “tempo de congelamento” a que Sérgio Vieira fez alusão seria superior a meio século. Tal como o “Estudo do Programa de Detenções e Interrogatórios da CIA” acima referido o demonstra, nos Estados Unidos o “tempo de congelamento” não é de meio século. O mesmo acontecendo no Reino Unido.
Aliás, já foi divulgada documentação oficial americana respeitante ao período do acidente de Mbuzini. A título de exemplo, um telegrama diplomático expendido pelo então embaixador americano em Maputo, Jon de Vos, para o Departamento de Estado em 25 de Novembro de 1986. Com a classificação de “CONFIDENCIAL”, o telegrama começa por citar os alertas lançados pelo Departamento de Estado a todas as embaixadas americanas sobre a campanha soviética de desinformação em torno da morte de Samora Machel. Refere o telegrama expedido por De Vos, que a Embaixada dos Estados Unidos havia apresentado uma enérgica nota de protesto junto do ministro da informação moçambicano, Teodato Hunguana, devido à reprodução no jornalNotícias de um artigo da agência soviética de informação, Novosti, intitulado “Imperialismo Contra Lutadores pela Paz e Libertação Nacional” (edição de 21.11.1986, p. 3). Lê-se no telegrama do Embaixador Jon de Vos: “O ponto principal do artigo é o de que, na prática, o
Governo dos Estados Unidos, por intermédio da CIA, é directa ou indirectamente responsável por todos os assassinatos de líderes mundiais nos últimos 25 anos.” E acrescenta: “Embora não tenha culpado directamente a CIA pela recente morte do presidente moçambicano, Samora Machel, a culpa por associação está implícita.” Jon de Vos refere que na nota de protesto entregue ao Ministro Hunguana, “realçou a baixeza deste flagrante esforço de desinformação”.
Sintomática, pois, a posição que Sérgio Vieira tem vindo a assumir desde a ocorrência do acidente de Mbuzini, esforçando-se por implicar os Estados Unidos e o Reino Unido na morte de Samora Machel, países esses, que no raciocínio dele, teriam fornecido ao regime do apartheid o aparelho que alegadamente desviou o avião.
Efectivamente, e em consonância com a política de desinformação soviética, Sérgio Vieira cedo começou por defender que o acidente de Mbuzini fora  resultado de acção criminosa, mesmo antes de as investigações sobre as causas do acidente
terem entrado na fase crucial, mormente a abertura e análise das caixas negras do avião.
De recordar, que cerca de duas semanas antes do início desta fase, o vice-ministro soviético da aviação civil, Ivan Vasin, excluía a hipótese de factores humanos como causas do acidente.
E é nesta linha de pensamento, que Sérgio Vieira, de forma deliberada, omite os factos recolhidos pelos peritos dos três países envolvidos no apuramento das causas do desastre, factos esses que demonstram de forma conclusiva ter o despenhamento do Tupolev presidencial em Mbuzini sido motivado por factores humanos.
Não apenas omite factos e dados, mas também distorce a realidade naquilo que publica e comenta. A entrevista à TIM, o exemplo mais recente.
Segundo Sérgio Vieira, durante a Grande Entrevista difundida pela TIM, “se nós ouvirmos as gravações da cabine, o Comandante diz, ‘Estamos errados’,  e faz isto ao avião: levanta.
Porque, se ele não tivesse levantado o avião, o avião embatia na montanha dentro de Moçambique.
Assim, quando ele levanta, entra na África do Sul, mas bate com a cauda já em território sul-africano e arrasta-se lá.”
De acordo com a transcrição do gravador de cabine (CVR), em nenhum momento o Comandante disse, “estamos errados”, nem tão pouco fez o avião fez o avião levantar, como demonstra o gravador contendo os dados do voo (DFDR). De facto, o Comandante nem sequer reagiu ao sinal de alarme dado pelo GPWS (Sistema de Aviso de Proximidade do Solo) que durante 32 segundos foi escutado no interior da cabine. E esta foi precisamente a causa do acidente. O Manual do Tupolev 134A-3 é claro: “Se o aviso do GPWS soar com a aeronave em voo plano ou a descer sobre colinas ou terreno montanhoso, a tripulação deve tomar as seguintes medidas: Fazer a aeronave subir com uma aceleração decisiva de entre 1,25 a 1,7 nós, mantendo o avião em posição de subida entre 20 a 30 segundos e com os motores a trabalhar a uma potência idêntica à da descolagem.”
O avião não “bate com a cauda”, como afirma Sérgio Vieira a pretender provar uma reacção do Comandante que simplesmente não houve. O primeiro contacto foi com a asa esquerda do avião, contra árvores ao longo de uma distância de 77,2 m, tendo depois a ponta da mesma asa chocado com o solo.
A 19 metros do primeiro local de impacto com o solo, deu-se a colisão das rodas esquerdas do avião, o mesmo acontecendo depois com as rodas direitas.
A cauda foi das últimas partes do avião a colidir com o solo.
Defensor intransigente da pseudo tese do radiofarol falso, Sérgio Vieira, tal como os seus pares que integram a Comissão Nacional de Inquérito, não demonstra, nem prova o que defende. Especula e serve-se de gente de conduta dúbia para fazer valer o que alega sem fundamento. É o caso de Hans Louw, condenado a 28 anos de cadeia por homicídio num caso de candonga de diamantes. Num belo dia, por detrás das grades, Louw idealizou obter uma amnistia da Comissão da Verdade e Reconciliação da África do Sul, “confessando” a sua participação no “assassinato” do Presidente Samora Machel. Uma leitura atenta das declarações de Hans Louw, amplamente divulgadas pela comunicação social sul-africana, revela estarmos na presença de um impostor nato, que foi ao pormenor de dizer que viu o “avião a aproximar--se, com o trem de aterragem descido”, e que “o piloto julgava estar a aterrar em Maputo”.
Os factos revelam que no momento da colisão a aeronave não voava em configuração de aterragem: o trem de aterragem e as flaps (superfícies hiper-sustentadoras) encontravam-se recolhidos, a velocidade era de cruzeiro (411,4 km/ hora), e o estabilizador em posição
de cruzeiro. No mínimo, Louw especulava sobre o que decorria no interior do avião quando afirmou que o piloto julgava que estava a aterrar em Maputo. A troca de palavras entre o Navegador e o Comandante dentro da cabine da aeronave segundos antes da colisão, desacreditam-no: “Não há para onde ir, não há NDB (faróis não direccionais), não há nada”, disse o Navegador. E o Comandante acrescentou: “Nem NDB, nem ILS” (Sistema de Aterragem por Instrumentos).
Para alimentar as falsas expectativas, que de forma fria e cruel têm vindo a criar ao longo dos anos entre familiares e amigos das vítimas do acidente, de que um dia a “verdade” sobre Mbuzini virá à tona de água, Sérgio Vieira e outros que tais esgrimem o velho argumento de que se até agora isso não foi possível à Comissão de Inquérito do Estado de Ocorrência do acidente se deve. E hoje, querem que se espere mais 30 anos. “Quando quisemos investigar o tal sinal que estava na zona de Mbuzini, pura e simplesmente e à revelia dos dois outros membros da Comissão, que era a União Soviética e nós, encerraram o inquérito”, disse Sérgio Vieira durante a Grande Entrevista. Na realidade, quando a Comissão de Inquérito sul-africana pretendeu esclarecer se seria ou não possível o Tupolev presidencial ter captado o sinal transmitido pelo VOR da Matsapha na Suazilândia, à distância a que o avião se encontrava quando efectuou a volta prematura à direita, Moçambique, como Estado de Registo da aeronave, não autorizou a utilização do espaço aéreo moçambicano para que fossem feitos os necessários ensaios a essa rádio ajuda. Foi igualmente o Estado moçambicano que facilitou a saída para Moscovo do mecânico de bordo que sobrevivera ao acidente, para todos os efeitos colaborando com a parte soviética que de início tudo fez para impedir que esse tripulante do Tupolev presidencial prestasse declarações a investigadores moçambicanos da Comissão Nacional de Inquérito. E quando, em Moscovo, os peritos dos três países prosseguiam com as investigações do acidente, a parte soviética voltou a não consentir que o referido tripulante fosse entrevistado por sul-africanos e moçambicanos.
Após as equipas investigadoras da África do Sul, Moçambique e União Soviética terem assinado o Relatório Factual do Acidente a 16 de Janeiro de 1987, a parte soviética decidiu neste mesmo dia não participar na fase seguinte que era quando se procederia à apresentação desse relatório perante a Comissão de Inquérito instaurada pelo Estado de Ocorrência do Acidente nos termos da Convenção de Chicago de 1944. O Estado moçambicano, que havia indicado à parte sul-africana estar disposto a participar nessa fase, viria a optar – após a URSS tê-lo feito – por não participar nos trabalhos da Comissão de Inquérito. De facto, foi o Bureau Político do Partido Frelimo que deu instruções à Comissão Nacional de Inquérito para não participar nessa fase. O comunicado emitido em 20 de Janeiro de 1986 por esse órgão do partido dirigente moçambicano, quatro dias após o anúncio da decisão da União Soviética, não deixa margem para quaisquer dúvidas:
«No interesse de se apurar toda a verdade e apenas a verdade, o Bureau Político do Comité Central instruiu a Comissão Nacional de Inquérito para que propusesse à parte sul-africana que os trabalhos da comissão internacional de inquérito, composta pela República Popular de Moçambique, União Soviética e República da África do Sul prosseguissem até completar a investigação sobre os factos.
Por essa razão, o Bureau Político do Comité Central instruiu a parte moçambicana para não participar nos procedimentos da comissão sul-africana cujas sessões de trabalho tinham o seu início previsto para o dia 20 de Janeiro de 1987.»
CANAL DE MOÇAMBIQUE – 17.12.2014

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