segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

A verdade das testemunhas

OPINIÃO


O meu café da manhã é na confeitaria do bairro onde vivo. Passo os olhos pelos jornais. O Sr. João conhece-me há muito tempo.
Há dias, pousou a chávena do café e sorridente atirou-me: “Fica muito bem a passear o cão logo de manhã”. Ripostei que se equivocara, que nem cão tinha. Esboçou um sorriso cúmplice. Com toda a clareza, imaginou que estava a negar a evidência que os seus olhos constataram de manhã cedinho. “Está a reinar comigo”. Jurava que era eu. Confundira-me com outra pessoa. O último cão que tive era um rafeiro muito meu amigo. Levava-o comigo para todo o lado. Morreu atropelado por um táxi, ao atravessar a rua onde morava em correria desenfreada. Há mais de 20 anos.
O episódio convoca algumas reflexões. A prova testemunhal é usada e exigida para tudo. O dirigente político ou empresarial, se recebe alguém, chama a secretária de confiança para estar presente. Sabe-se lá se, um dia, irá necessitar de um terceiro para confirmar o dito e o não dito. Os noivos levam testemunhas para o casamento. Para atestarem o acto. Ou se arrependeram na horinha do nó. Se abalroamos o carro da frente, as seguradoras exigem uma “participação amigável”. No impresso, há um campo para preencher, o das testemunhas. A polícia, por qualquer razão legal, exige a nossa identificação. Não temos o Bilhete de Identidade à mão, recorremos a quem nos conheça e confirme que somos quem disséramos à polícia que somos.
Quando afirmamos algo controverso, logo dizemos: “tenho duas testemunhas”. No latinório, “una testes, testis nulla”. Em português: uma só testemunha não prova nada.
Ninguém confia em ninguém. Requere-se outro alguém para precisar o evento sucedido ou palavras ditas. Temos de provar o que dissemos e não dissemos. O que ouvimos e não ouvimos. O que fizemos e não fizemos. Há uma cultura de desconfiança nos outros e em nós.
No mundo judiciário, a coisa ainda é mais complicada. E exigente. A prova testemunhal foi considerada a “regina probarum”. A rainha das provas. Já não é. É uma prova como outras. Com a força probatória que o juiz avalia segundo a “sua livre convicção” e “prudente arbítrio”. O que isto seja, não se sabe bem. Há quem ache que é dom de um poder que vem do alto, talvez de Deus.
O que as testemunhas dizem em tribunal tem de ser avaliado, ponderado e relacionado com outras provas. A “convicção” do juiz tem de ser fundamentada porque acreditou numas testemunhas e não noutras, porque decidiu condenar e não absolver.
A certeza do Sr. João mostra como se pode faltar à verdade. Sem faltar. De boa-fé. A subjectividade das percepções da vida que a testemunha narra em tribunal. O mesmo facto é recebido e percepcionado de modo diferente por diferentes pessoas, que o narram a seu modo, como o apreenderam. Não raro, vemos o que não vemos. Ouvimos o que não ouvimos. O que parece não é.
Faltar à verdade de má-fé é outra questão. É jurar falso. Sabendo que se não conta um facto que se viu. Antes outro que se não viu. Jurar que o carro responsável pelo acidente avançou no vermelho. Viu-se que avançou no amarelo.
O juiz vai confrontar-se com a verdade do Sr. João. Com as afirmações falsas da testemunha do acidente rodoviário. Com as prestadas por outras testemunhas. Com outras provas. Mistura e ordena isto tudo na sua cabeça. Decide. Às vezes bem, outras nem tanto. É tarefa árdua. Um juiz é só um juiz. Não é infalível.
Procurador-geral adjunto

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