sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Uma ferida com 35 anos

 

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O drama dos portugueses espoliados em Moçambique será lembrado a José Sócrates quando chegar a Maputo, na 4ª feira Será recebido por um grupo que só pede o cumprimento de uma lei de l977: o direito à indemnização
Marta Curto em Maputo
JOSÉ Sócrates visita Mo­çambique de 3 a 5 de Mar­ço. O gabinete do primeiro-ministro adiantou que o programa ainda está a ser preparado, mas terá uma grande componente económica. O que não está na agenda é o encontro, à chegada, com um grupo de portugueses. Ângela Ser­ras Pires e Luís Oliveira são duas das pessoas que pedirão para ser ouvidas por Sócrates, reabrindo uma ferida com 35 anos: as perdas dos portugueses aquando da independência de Moçambique (em 25 de Junho de 1975).
No aeroporto, erguerão um cartaz e tentarão pedir ao embaixador português, Mário Godinho de Matos, uma audiência com o primeiro-ministro. Ao SOL, poucos quiseram falar. O segredo é a estratégia para não perder tudo, de novo.

«As pessoas ainda têm muito medo, sofreram e perderam muito na in­dependência. Toda a gen­te tentou reaver o que ti­nha, e ninguém conse­guiu», explica Ângela.
«Eu quero que ele dê 50 ou 100 milhões de dóla­res a quem perdeu tudo. Portugal já investiu tan­to aqui, já deu tanto a Moçambique em doa­ções, que, pelo menos, podia dar alguma coisa a quem também construiu este país e perdeu tudo. Já que não fizeram nada, que mostrem alguma di­gnidade e dêem algum di­nheiro a essas pessoas». Ângela não teme dar a cara. Foi a única da família a não ver uma Moçambique, e deve-lhes a coerência de dizer a verda­de até ao fim. Lucinda Fei­jão, sua tia, foi uma das fun­dadoras da Renamo e os Serras Pires têm o pior ca­rimbo para a Frelimo, sem­pre no poder desde a inde­pendência.
Lei impõe indemnização
Ângela chegou a Portugal com 13 anos, em 1975, entre 170 mil oriundos de Mo­çambique na altura da des­colonização. Da cidade da Beira, onde nascera, viu-se num país estranho. Para trás, a família deixava um enorme espólio. Entre em­presas e casas, havia a Quinta do Guro, ao pé da cidade de Tete, com uma estalagem, uma bomba de gasolina, plantações, uma escola. «Nós tínhamos consciência de que iam ficar com tudo, mas achávamos que seriam os criados. As pessoas es­tavam em pânico, dizia-se que os portugueses eram todos uns fascis­tas». Foi tudo nacionaliza­do, menos as cantinas, uma espécie de pequenas lojas que vendiam de tudo no meio do mato. Essas, Ângela viu serem nacio­nalizadas em 1996, quan­do passava férias em Mo­çambique, antes de aqui se radicar em definitivo. «Há uns dez anos, o meu pai foi à quinta do Guro, e estavam lá a viver 60 mil pessoas. As pes­soas fizeram-lhe uma grande festa, pediram-lhe para voltar, mas es­tava tudo destruído. E pensar que tudo come­çara com uma palhota que o meu avô fez». Em 1977, as indemnizações aos ex-titulares de direitos sobre bens na­cionalizados ou expro­priados foram salvaguar­dadas na lei n.° 80/77. Diz que «do direito à pro­priedade privada, re­conhecido pela Consti­tuição, decorre que, fora dos casos expres­samente previstos na Constituição, toda a na­cionalização ou expro­priação apenas poderá ser efectuada mediante o pagamento de justa indemnização».
É aqui que reside a espe­rança de Luís Oliveira, de 39 anos. Numa lei que nun­ca foi posta em prática.
A viver em Moçambi­que há dois anos, está a concretizar um sonho de menino. Já em Portugal, onde chegara com qua­tro anos, passara a in­fância a ouvir histórias deste país, de como era a vida aqui, do que aqui fora deixado. Hoje traba­lha em Maputo como informático.
A sua história começa no século XIX, com a vinda dos bisavós. Oliveira, que trou­xe consigo toda a papelada do que seria seu, mostra a casa da Rua Tchamba que pertencia aos avós mater­nos, a residência da Aveni­da Salvador Allende, dos avós paternos. Pelo cami­nho, conta que a família saiu do país a medo, num tempo em que havia pres­são sobre os brancos para se irem embora. O pai, à pressa, seguiu os conselhos do Governo português e de­positou dinheiro no consu­lado português. «Chamavam-lhes os depósitos consulares. Deixava-se aqui e levantava-se em Portugal. O meu avô aca­bou por receber esse di­nheiro, quase 20 anos mais tarde, através do Mi­nistério dos Negócios Es­trangeiros, mas sem a ac­tualização da moeda. Uma ninharia».
Em Portugal, sem di­nheiro, nem bens, os avós de Luís foram obrigados a viver no lar de Santa Joana, no Lumiar.
«Ainda não tentei rea­ver o que era da minha família, mas essas casas já são de outras pessoas e tenho medo de arranjar problemas com os no­vos donos». Embora já te­nha pedido nacionalidade moçambicana, Luís ainda espera pelos papéis, e, en­quanto estrangeiro, prefe­re não levantar pó. Admi­te que houve quem voltas­se a comprar o que era seu antes da independência, outros que ameaçaram os actuais donos a largarem as casas, mas não tem di­nheiro, nem feitio para isso. «Não espero nada da vinda de Sócrates cá, mas acho isto tudo mui­to injusto, porque nós éramos portugueses e ninguém nos protegeu. Tudo o que o meu avô fez, deixou aqui, foi uma vida inteira...»
Não há lágrimas ou se­quer nostalgia nas palavras de Luís. Mas sentimento de revolta. «A culpa disto tudo é do Governo portu­guês, não temos de pedir seja o que for ao Gover­no moçambicano. Se na altura Portugal negociou Cahora Bassa, podia ter negociado também as propriedades dos portu­gueses. E temos a lei de 1977, Portugal comprometeu-se!». Já antes desta, o decreto-lei n.° 203/74 di­zia que os bens dos repa­triados portugueses se­riam acautelados. Mas os acordos de Lusaca, que marcaram a independên­cia de Moçambique, assi­nados entre o Governo português e a Frelimo, em Setembro de 1974, não pas­saram pela defesa dos inte­resses dos portugueses. Passaram-se 36 anos e a As­sociação de Espoliados de Moçambique já entregou várias petições à Assem­bleia da República portu­guesa, além de ter recorri­do aos tribunais para fazer cumprir a lei. Sem sucesso. Eduardo nasceu na Bei­ra há 51 anos. «Quando eu cheguei a Portugal, tinha 18 anos, estávamos em Novembro de 75. A me­trópole, para mim, não era nada, nunca lá tinha ido, nem um pullover ti­nha». Eduardo conta tudo como se a ferida ainda não tivesse sarado, como se ain­da tivesse 18 anos e sentisse na pele a injustiça cega, e muda. «Tínhamos de sair daqui, não havia condi­ções para criar os filhos. Tínhamos consciência de que tudo tinha acabado».
Em Portugal, Eduardo e os seus irmãos foram obri­gados a largar os estudos e começar a trabalhar. Pela primeira vez, contavam o dinheiro e temiam o futu­ro. «Nostálgico, o meu pai? Não podia, nem ti­nha tempo, havia quatro filhos para criar. Não ar­ranjou um emprego, mas um trabalho. Claro que fica uma enorme mágoa, mas a vida tem de andar para a frente quando te­mos uma família».
O pai de Eduardo, com 45 anos aquando da chegada a Portugal, não quis pedir apoio ao Instituto de Apoio ao Retornado. Também nunca pensou em escolher outra nacionalidade que não a portuguesa, embora, se tivesse optado pelo ale­mã, pudesse ter direito a uma indemnização.
Manter a história viva
Eduardo herdou o carácter do pai. «Nem quero ver Sócrates. Para quê? Vai dizer que está muito preocupado com a si­tuação e que temos ra­zão, e depois não vai fa­zer nada. Eu só quero manter a história viva, para as pessoas não se esquecerem».
Amílcar Dias tem mais de 80 anos, mas anda direi­to como se tivesse 40. É edu­cado e delicado, denun­ciando o carácter galanteador dos homens do seu tempo. Foi administrador das melhores empresas do país, e ao contrário dos ou­tros, nunca saiu de Mo­çambique. Trabalhou an­tes e depois da independência, reconheciam-lhe o saber e não o puseram de lado. Mesmo assim, ainda esteve 18 meses preso na Machava, em 1975. Quando saiu, de tudo o que a famí­lia conseguira construir ao longo da vida, restava-lhe um apartamento. «Há três meses desenvolvi uma teoria: há afro-tribalistas - africanos com um modo de vida tribalista - e há afro-europeus, que são africanos, com uma cultura europeia, que é o meu caso».
Há um ano, assistiu ao leilão dos cinemas que o pai tinha na Beira, o Olím­pia e o Palácio, que ha­viam sido nacionalizados após a independência. «Não há nostalgias, só causam lágrimas e não mudam nada». Amílcar Dias não se vai prestar a encontros com o primeiro-ministro. Diz que Só­crates, como os políticos antes dele, nunca entende­ram as colónias. «Geriam, combatiam, mandavam como se soubessem o que se passava aqui. Se tivessem desenvolvido uma classe média-alta cá, não haveria Frelimo que vencesse. E os polí­ticos do 25 de Abril fize­ram tudo mal». Dias não tem esperança de voltar a ver o que era seu, e do seu pai. O que lá vai, lá vai. È que, apesar de ter nascido e vivido sempre aqui, em Moçambique um branco é sempre estrangeiro. Mulungo é a palavra no dia­lecto changana, usado em Maputo, para branco. Quer dizer branco, patrão, pessoa erudita, uma espé­cie de deus. E mulungo não é moçambicano.
A questão da indemniza­ção não é fácil, já que, des­de Samora Machel, Mo­çambique também pede uma compensação a Por­tugal pelos 500 anos de co­lonização. Se o Governo português indemnizar os espoliados, a presidência moçambicana sentir-se-á, provavelmente, na obriga­ção de pedir satisfações. E não convém a nenhum dos lados voltar ao passado. «Sabe, a politica são ne­gócios. Não são ideais», sentencia.
SOL – 26.02.2010

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