segunda-feira, 15 de outubro de 2012

MOÇAMBIQUE 1974:0 FIM DO IMPÉRIO E O NASCIMENTO DA NAÇÃO 1

O ovo da serpente

Na delegação da PIDE em Moçambique passam-se tempos di-fíceis. Tem como grande prioridade a FRELIMO, mas também o movimento da oposição democrática,cada vez mais activo, os es-tudantes que acordam para a luta nacionalista e as agendas de novos nacionalistas, alguns deles aliados na mesma causa, mas nunca desistiram e resistem até ao fim. Reconheça-se esse mérito.
 
Moçambique era para as autoridades coloniais como um barco a meter água por todos os lados. A oposição democrática, pela primeira vez não liderada pelo Dr. Almeida Santos, aproveita as eleições de Outubro de 1973, não para concorrer, mas para divulgar a sua posição: não havia soluções militares e a única saída possível era reconhecer o direito à independência de Moçambique e dialogar com a FRELIMO. Apesar das perseguições, nenhum dos seus divulgadores foi preso. Era um incómodo para a PIDE e para o regime prender opositores de raça branca. Além das complicações jurídicas, expunham-se publicamente as contradições do sistema.
 
Neste cenário de desmoronamento, o GUMO tenta a todo o custo levar a sua agenda por diante. Depara-se com um muro de dificuldades. O governador-geral não só não os recebe, como recusa a autorização de realizarem um congresso na Beira para tornarem público a sua existência. O Eng.° Pimentel dos Santos era adverso a qualquer mudança, umintegracionista puro e duro.
 
A não constituição legal do GUMO como associação cívica obs-tava a que a Dra Joana Simeão partisse tão depressa quanto possível para Nova Iorque, com o intuito detentar participar nas Nações Unidas, como observadora, enfrentando olhos nos olhos o represen-tante da FRELIMO que, entretanto, recebera esse estatuto da ONU. E não exclui vias golpistas, afirmando ter o apoio militar dos GE e dos GEP, «a nossa reserva militar» (as mesmas unidades reclamadas por Jardim) e que contava com a numerosa força dos estivadores através do controlo do Sindicato dos Profissionais de Estiva, liderado por Cassamo Daúde, a quem fora conferido o lugar de vice-presidente.
 
Entretanto, o Dr. Máximo Dias tem o seu primeiro contacto com o consulado norte-americano em Moçambique a 6-11-1973. Registam que o jovem advogado era «um homem inteligente, sincero», mas «politicamente pouco sofisticado», sobretudo se comparado com a sua vice-presidente, a Dra Joana Simeão.
 
Dissertando sobre o omnipresente Jardim, Máximo Dias desvaloriza o seu papel, pois havia perdido dois importantes aliados: o apoio financeiro de António Champalimaud e o apoio da Igreja Católica, «devido à sua violenta campanha na imprensa dirigida contra os padres do Macúti». Acusa-o de obterganhos importantes através da influência junto dos desertores da FRELIMO.
 
Simeão, entretanto, desdobra-se em contactos para conseguir novos apoiantes. Tenta inclusivamente a aproximação a alguns militantes da FRELIMO na clandestinidade, residentes na capital moçambicana e profissionalmente bem colocados, que recusaram. E totalmente contra o estabelecimento de contactos com ex-membros daquela organização. O relatório da PIDE é a esse respeito sintomático, ao registar não só o seu espírito de «irreverência, inconformismo e revolta contra tudo e todos», como anota as suas críticas a «todos os apresentados que se confessam arrependidos do seu passado, dizendo que ela própria nunca o faria, pois o seu ideal era lutar pelo povo negro de Moçambique [...] sem subserviências a quem quer que seja».
 
Em Dezembro de 1973, Baltazar Rebelo de Sousa, ministro do Ultramar, realiza a última visita de um ministro colonial a Moçambique. De toda a nomenclatura que rodeava Marcelo Caetano, Rebelo de Sousa destacava-se pela sua lucidez. Não surpreende a aproximação de Máximo Dias e de Joana Simeão ao Dr. Baltazar Rebelo de Sousa. Como um sinal de confiança são integrados na comitiva do ministro a Nampula. Uma bofetada de luva branca ao governador-geral.
 
Em Março de 1974 a Dra Simeão visita Lisboa, onde se encontra com proeminentes empresários com interesses ligados a Moçambique: Sulemane Vali Mohammed e Abool Vakil, conforme informação da PIDE. A 15 de Abril tem um encontro com o ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Patrício, com um objectivo: a apresentação do Grupo ao Comité dos 24 das Nações Unidas. Ao que tudo indica terá recebido a aprovação, incluindo os fundos necessários para a viagem. Seria uma viragem na política externa portuguesa. Pretendia partir para Nova Iorque nos finais de Abril, intenção sobre a qual existiam sérias dúvidas da sua viabilidade. Ou até se não se terá tratado de uma invenção da própria Dr.a Simeão para obter apoios.
 
Toda esta novela que visava essencialmente a pessoa de Marcelo Caetano com vários actores em cena, numa conspiração contra ele, aproxima-se das tragédias de Shakespeare, sobretudo quando criam um autêntico ovo da serpente, à semelhança do que acontece nessa obra-prima da literatura —Júlio César. Presos políticos em Dar-es-Salam Costa Gomes, durante a sua breve visita a três capitais provinciais, e nos contactos feitos com osmilitares conclui: «como o demonstraram de imediato, não queriam continuar a combater e morrer numa guerra que iria acabardentro de pouco tempo».
 
Tenta encontrar tábuas de salvação. Nem democratas, nem dirigentes associativos, nem GUMOS eram de forma alguma a solução. Recorre  ao escol de ex-presos políticos e reúne-se com José Craveirinha, Rui Nogar, Josefarte Machel, Matias Mboa, Malangatana Valente e Rogério Djwana. Todos haviam estado detidos nas celas da cadeia da Machava sob a acusação de terem ligações com a FRELIMO.
 
De início, procura convencê-los a formar um partido político que gozaria de todo o quadro de liberdades e garantias na sua actividade. Seria uma «espécie de FRELIMO de dentro». Malangatana Valente pediu, em nome dos seus companheiros, tempo para reflectirem. «Se aceitássemos essa ideia iríamos apenas colocar entraves às negociações e nunca essa atitude seria aceite pelos dirigentes da FRELIMO.» A resposta será dada, nessa mesma tarde, pelo poeta José Craveirinha. Rejeitam a hipótese de formar qualquer partido.
 
Foi-lhes então sugerido que se encontrassem com os dirigentes da FRELIMO na Tanzânia, para transmitir um apelo à paz e a um imediato cessar-fogo, ideia de fundo de Costa Gomes, acentuada pela disposição manifestada do seu exército em não continuar a lutar. Precisava de parar a guerra a qualquer custo e obter um fôlego para acertar as diferentes agendas sobre a descolonização. Missão que os ex-presos políticos aceitaram. Costa Gomes não escondeu a satisfação por esta sua iniciativa.
 
Em conferência de imprensa afirma eufórico: «em Lourenço Marques contactei elementos simpatizantes da FRELIMO, em missão não oficial [...] Solicitei-lhes que transmitissem aos seus dirigentes o nosso apelo à paz e indicassem a forma como pretenderiam estabelecer negociações oficiais para o estabelecimento de tréguas».
 
Este grupo de ex-presos políticos partiu para Dar-es-Saiam. A eles foi juntar-se, em avioneta fretada, o pintor Malangatana Valente, retido por razões burocráticas, sendo a viagem paga pelo empresário António Sá. Estava prevista também a ida do Dr. Domingos Arouca. Mas este optou por se deslocar ao Malawi, a convite do presidente Banda, para participar nas cerimónias das comemorações de mais um aniversário do presidente vitalício do Malawi. Durante um comício saudou Arouca publicamente «como convidado pessoal vindo do povo irmão de Moçambique». O rígido e formal protocolo malawiano colocou Arouca e a sua esposa na mesa de honra durante o banquete de Estado. Igualmente presente neste cerimonial estava Miguel Murupa, afastado das luzes da ribalta.
 
A partida desta delegação de ex-presos políticos para a Tanzânia criou inúmeras expectativas. Integravam a delegação nomes conhecidos, nomes com história. Era a primeira vez que se anunciava previamente uma viagem para a Tanzânia, sem regresso prévio e directo para a cadeia da Machava, com um objectivo definido: encontrarem-se com dirigentes da FRELIMO. Como dizia o poeta José Craveirinha, à partida, havia a esperança de que «a nossa deslocação seja um êxito e que regressemos com a mensagem de paz que todo o Moçambique ambiciona».
 
A delegação foi recebida por Joaquim Chissano no aeroporto de Dar-es-Salam, sendo «efusivamente abraçados». Já na sede da FRELIMO a recepção será bem mais fria. Eram vistos como mensageiros do novo poder em Portugal, vindos da «zona ocupada» e portadores de mensagens e intenções pouco claras. Logo à chegada, na capital tanzaniana, um representante da FRELIMO revelou à imprensa que a sua organização estava preparada para «ouvir o que os antigos prisioneiros políticos tinham para dizer, mas que eles não se poderiam considerar como representantes da FRELIMO».
 
Criaram-se, em torno desta visita, algumas especulações e meias-verdades. Para um completo esclarecimento recorra-se aos documentos da FRELIMO, feitos no próprio período em questão. Desfeitos os objectivos iniciais da missão dos ex-presos políticos, não foi difícil à FRELIMO, durante a sua estada na Tanzânia, transformá-los em novos emissários,com diferente destinatário. Ao fim e ao cabo tinham sofrido anos decadeia por partilharam o ideário daquela organização. Contactaram com as realidades da luta armada, tiveram vários e longos encontros com Samora Machel, e também com o presidente Julius Nyerere. Voltaram com ideias bem definidas do que era a FRELIMO e do que se pretendia.
 
No seu regresso, a 4 de Junho, José Craveirinha afirma: «os membros da delegação partiram para Dar-es-Salam na única qua-lidade em que podiam apresentar-se à FRELIMO. Uma qualidade que fizeram questão em firmar junto das entidades portuguesas da Junta de Salvação Nacional». Pronunciando-se sobre a realização de um referendo, o poeta responde: «Referendos? Será que a Junta de Salvação Nacional que derrubou o governo de Marcelo Caetano fez algum referendo? A FRELIMO não é uma associação política, é um movimento revolucionário que não lutou com panfletos e abaixo-assinados. Lutou de armas na mão. Muitos caíram em combate ou nas masmorras.
 
Depois disso, um referendo para quê?» Tornava-se claro que a FRELIMO só pretendia negociar com representantes legítimos do Governo português. Não valia a pena mandar mais mensageiros. Lutar ou negociar? No que se refere à guerra, vamos encontrar posições diferenciadas nos beligerantes. Se a FRELIMO era irredutível nos seus pontos programáticos, de que a independência não era negociável e apenas se poderiam discutir os mecanismos e um calendário para a mesma, já o novo poder de Lisboa vivia no encanto de ter encontrado a liberdade e a democracia, sem saber como resolver a questão africana. Por todos, cite-se o conceituado filósofo Eduardo Lourenço, que escreve ainda a revolução portuguesa estava no seu adro: «é notório que uma parte da nossa classe política e a opinião com ela solidária, absorvidas já pelas delícias do partidarismo interno, age como se "pesadelo africano" tivesse terminado na manhã do 25 de Abril».
 
As primeiras declarações sobre esta matéria do presidente da Junta, António de Spínola, a 29-4-74, durante uma conferência de imprensa sobre a descolonização, eram pouco ou nada claras. Spínola traçava uma distinção entre a autodeterminação, ou seja, «o direito de cada povo escolher os seus destinos» e a independência que «corresponderia a uma vontade de um povo». Eram, pois, duas vias distintas e para que fossem definidas haveria que realizar um plebiscito em que um povo «deve estar de posse de um nível cultural mínimo para saber escolher». Spínola tinha em mente, nas suas próprias palavras, «acelerar o processo ultramarino que permita ao povo autodeterminar-se sob a bandeira portuguesa».
 
Em face da confusão de mensagens contraditórias que chegavam de Lisboa e da evolução política após o golpe, Samora Machel convoca o Comité Executivo, a 3 de Maio de 1974, para nova análise da situação política aberta com o golpe de Estado. A estratégia adoptada é clara: «a paz é inseparável da independência nacional». Não haveria lugar a nenhum cessar-fogo, sem que aquele direito fosse inequivocamente reconhecido. E diga-se que as mensagens vindas do novo poder em Lisboa apenas vinham a reforçar a posição adoptada pela FRELIMO.
 
A 4 de Maio, o novo comandante-em-chefe das Forças Armadas portuguesas e membro da Junta de Salvação Nacional, Costa Gomes, aterra em Luanda. As suas declarações são bastante explícitas: «é nossa intenção continuar a lutar contra os guerrilheiros e essa posição manter-se-á até que os guerrilheiros aceitem a nossa oferta para depor as armas e se apresentarem como partido político». No dia seguinte, volta ao mesmo tema: «se tais movimentos são realmente a expressão do povo, como se afirmam, deixem as clandestinidades, as suas sedes além-fronteiras e venham lutar democraticamente com ideias».
 
Acompanhado de outro membro da Junta, Diogo Neto, Costa Gomes chega à capital moçambicana a 10 de Maio. Em conferência de imprensa, já com mais reservas, torna a afirmar: «teremos, no entanto que admitir que existem organizações chamadas emancipalistas com chefes políticos e militantes com as suas ideias e as suas armas que dominam parcelas do território moçambicano. A essas organizações propomos negociações imediatas, sem condições prévias, sem entregas simbólicas de armamento». Colocado perante a eventualidade de a FRELIMO não aceitar essa via, responde: «lutaremos com uma missão mais bela e enobrecida». Pouco tempo depois, tentando justificar a intensificação dos combates, o general declara que «o presente esforço guerreiro da FRELIMO, pode resultar da necessidade interna de conseguir uma coesão através do exercício da luta».

Sem comentários: