quinta-feira, 11 de outubro de 2012

A paz como uma virtude moral (6)

A paz como uma virtude moral (6)
Para o autor da Paz Perpétua, “não há, pois, objectivamente (na teoria), nenhum conflito entre a moral e a política. Em contrapartida, (…) há e pode haver sempre esse conflito porque serve de pedra para afiar a virtude, cujo verdadeiro valor (…) não consiste tanto, no caso presente, em se opor com firme propósito aos males e sacrifícios que se devem aceitar, mas em olhar de frente o princípio mau que habita em nós mesmos e vencer a sua astúcia, princípio muito mais perigoso, enganador e traidor, capaz porém de raciocinar com subtileza e de aduzir a debilidade da natureza humana como justificação de toda transgressão” (KANT, 1995:163).
Kant considera que os princípios do direito têm realidade objectiva, isto é, podem levar-se a cabo e, consequentemente, com eles lidar também o povo os Estados uns em relação aos outros, seja qual for a objecção que a política empírica possa levantar. Considera ainda que a verdadeira política não pode, pois, dar um passo sem antes ter rendido preito à moral e, embora a política seja por si uma arte difícil, não constitui arte contrária à sua união com a moral, pois esta corta o nó que aquela não consegue desatar, quando entre si surgem discrepâncias. O direito dos homens deve considerar-se sagrado, por maiores que sejam os sacrifícios que ele custa ao poder predominante; aqui não se pode realizar uma divisão em duas partes e inventar coisa intermediária (entre direito e utilidade) de um direito pragmaticamente condicionado, mas toda a política deve dobrar os seus joelhos diante do direito, podendo, no entanto, esperar alcançar, embora lentamente, um estádio em que ele brilhará com firmeza.

CONFEDERAÇÃO DE ESTADOS REPUBLICANOS COMO GARANTIA DE MANUTENÇÃO DA PAZ

Kant propõe a confederação de Estados republicanos para a manutenção da paz. Deste modo, é necessário fazer a análise dos artigos definitivos da Paz Perpétua. De acordo com o segundo artigo definitivo para a paz perpétua, “o direito das gentes deve fundar-se numa federação de Estados livres” (Kant; 1995:132). Este ideal proposto por Kant em 1784, quando na sua obra “A Ideia de uma História Universal” apontou a necessidade jurídica de se estabelecer repúblicas livres, cujo problema em instituir uma Constituição civil perfeita depende, por sua vez, do problema de uma relação externa legal entre os Estados.
Deste modo, Kant convoca os Estados a “saírem do estado sem leis e ingressar numa liga de povos, onde cada Estado, inclusive o mais pequeno, poderia aguardar a sua segurança e o seu direito, não do seu próprio poder ou da própria decisão jurídica, mas apenas dessa federação de nações, de uma potência unificada e da decisão segundo as leis da vontade unida” (Kant, 2006:98)
Assim como ocorreu com os indivíduos que, abandonando o estado de natureza, ingressaram numa Constituição civil, o mesmo deve ser feito pelos Estados, os quais devem abandonar este estado de guerra permanente e ingressar numa Constituição cosmopolita. Deste modo, somente com a submissão dos Estados aos direitos das gentes, fundados em leis públicas apoiadas no poder será possível pôr-se fim à guerra e assegurar-se a independência e propriedades dos Estados.
Kant propõe a criação de um Estado Universal de povos, a cujo poder devem sujeitar-se livremente todos os Estados para obedecer as suas leis, sugerindo para tanto, a criação de um Estado jurídico de federação, segundo o direito das gentes em comum.
Kant defende uma federação com a função de simplesmente manter e garantir a paz de um Estado para si mesmo e, ao mesmo tempo, para os outros Estados federados. Ele afirma que esta federação não pode tornar-se um Estado mundial e reafirma o princípio da igualdade dos Estados, bem como a autodeterminação dos povos. A criação da ONU, por exemplo, foi inspirada no federalismo internacional kantiano.
Habermas, contudo, entende contraditório pretender que exista uma federação de Estados e que estes mantenham a sua soberania. A defesa de Habermas de um poder executivo mundial que interfira nos governos nacionais (2002:166) é claramente intervencionista e demonstra a dificuldade desse pensador em operar com os dados básicos do poder na sociedade internacional. Enquanto Kant conclui que um governo mundial geraria pelo menos a tirania mundial, Habermas prefere imaginar uma protecção global dos direitos.
Segundo Arendt (1993:69), a “paz duradoura só pode ser obtida pelo acordo entre as nações”. Acredita ainda que as pessoas podem resolver os conflitos por meio da palavra, isto é, do diálogo intersubjectivo. Para tal, é necessário um espaço, que ela chama de público, em que as pessoas ou nações se encontram em igualdade para falar, ouvir, persuadir ou ser persuadido.
Segundo Fukuyama, a paz resulta da natureza pacífica da legitimidade democrática e da capacidade de satisfazer as aspirações humanas do reconhecimento.
O comportamento pacífico das democracias sugere ainda que os Estados Unidos e outras democracias têm, a longo prazo, o interesse de preservar a esfera da democracia, sendo que a expansão sustentada do mundo pós-histórico será mais pacífica e próspera. As democracias precisam de acreditar que os outros Estados com os quais elas irão buscar relações pacíficas são igualmente democráticos. Isto significa que não basta que os demais Estados se reconheçam democráticos, é preciso que a percepção dos cidadãos daquela democracia seja neste sentido. A presença de mecanismos de construção dos governos não é suficiente para assegurar a cooperação e a harmonia, é preciso que aquele Estado democrático perceba a outra parte da relação como igualmente democrática, para que haja confiança nas suas intenções pacíficas.
Baseado na perspectiva liberal, o sistema democrático apresenta vantagens no auxílio à construção da paz, uma vez que estabelece um conjunto de regras legítimas que imputam aos grupos políticos condições igualitárias na livre competição pelo poder e administra as demandas sociais dentro de um jogo de barganha não violento (SISK, 2004:87). No entanto, a construção da democracia é um processo que precisa de tempo para articular as forças sociais na maturação dos novos arranjos institucionais (MANSFIEL e SNYDER, 1995:75).
A adequação dos esforços de democratização ao contexto social particular também é decisiva na mobilização dos diversos sujeitos do processo político, promovendo uma pluralidade de interesses que poderá contribuir positivamente na formulação de propostas criativas. É enfático apontar, portanto, que a democratização é um movimento gradual e complexo, devendo ser compreendido enquanto tal, por parte dos agentes que tentam induzi-lo (BACHLER, 2004:38).
Por muitos anos, presumiu-se que a democracia não era um sistema governamental adequado para aquelas sociedades divididas do pós-guerra. Acreditava-se que as políticas de igualdade de competição, de liberdade de decisão, e outras implementadas pelo sistema democrático eram ideais demasiadamente difíceis de serem alcançadas pelas sociedades emergentes de conflitos (SISK, 2004:98). De facto, o processo de democratização tende a sofrer reveses no curto prazo, apresentando resultados completamente opostos aos pretendidos. Este fenómeno decorre da dificuldade em se distribuir recursos do poder entre os grupos de interesse da sociedade.
O receio aos riscos do processo de democratização deveria ser superado com o maior envolvimento da sociedade plural, imputando aos diversos grupos de interesse (e não somente às elites) a capacidade de manifestar as suas propostas políticas através de um sistema institucionalizado. Larry Diamond (1995:46) sintetizou esta perspectiva em quatro pontos fundamentais ao sucesso da transição democrática: o reconhecimento das identidades plurais; a protecção legal dos direitos dos grupos minoritários; a devolução da capacidade de poder às várias localidades e regiões; a implementação de instituições políticas que promovam barganha e legitimação do poder central. Neste sentido, a construção de um sistema democrático deveria viabilizar a participação igualitária dos diversos grupos sociais através da qualificação dos seus meios procedimentais de decisão. A implementação destes programas provocaria uma redistribuição das forças políticas, criando, assim, um contra-balanceamento à influência das elites, e maior eficácia das instituições na transição política.
Embora tal mudança de perspectiva apresente, de facto, ganhos consideráveis ao sucesso dos projectos implementados, a urgência em se resolver a dinâmica conflituosa permaneceu constante por parte dos agentes de construção da paz. Apesar do processo de democratização ter se tornado mais complexo, necessitando, da forma como foi estruturado, de um auxílio presente por parte dos agentes externos (CALL, 2001:26), a preocupação com a questão do tempo permanece diante da tensão imposta pelo problema do financiamento das actividades. O resultado desta incongruência de planificação (projectos que demandam tempo, mas que devem ser articulados no curto prazo) se reflecte na ausência de sustentabilidade das propostas implementadas, assim que os agentes interventores diminuem suas actividades.
A indução de um processo democrático de fora para dentro é notoriamente difícil; e se agrava se a urgência na construção de estruturas acarreta a exportação de regras e instituições prontas e insensíveis às diferenças nos contextos sociais (SISK, 2004:93). Outro factor passível de acontecer é a excessiva concentração de esforços na reconstrução do aparato estatal, em prejuízo das políticas públicas de mobilização, participação e educação da população afectada pelo conflito (BACHLER, 2004:44).

* Mestre em Educação em Ensino de Filosofia, docente na Universidade Pedagógica, delegação da Beira. Área de pesquisa: Filosofia da Interculturalidade (Epistemologia dos saberes locais e Filosofia política).
**Licenciado em Ensino de Filosofia, professor de Filosofia na Escola Secundária Armando Emílio Guebuza, no distrito de Catandica, Manica.

Sem comentários: