quarta-feira, 17 de outubro de 2012

A História tal como foi

 

Com frequência escondem-se, deformam-se ou proíbem-se referências a acontecimentos marcantes do passado, para legitimar poderes ou projetos vindos depois.
Jonuel Gonçalves, revista África 21
ESCRAVOS_CAFE Pintura de Debret - Escravos carregando café


Rio de Janeiro - Um filme argentino de há vários anos mostrava uma professora explicando em sala de aula, que um famoso assassinato político da História do país continuava décadas depois sem que se conhecessem os criminosos. Um aluno respondia que «não se conhecem porque foram os assassinos que escreveram a história». Este diálogo cinematográfico traduz um dos problemas sobre conhecimento histórico.
Com frequência escondem-se, deformam-se ou proíbem-se referências a acontecimentos marcantes do passado, para legitimar poderes ou projetos vindos depois. É nessa mesma lógica que se inventam heróis e traidores, às vezes invertendo escandalosamente os papéis. Além dos mitos de todos os tipos.
Diversos livros recentes ajudam-nos a ver com mais nitidez importantes momentos da História da humanidade e suas implicações atuais, três dos quais focam o Atlântico Sul.
Martin Page no seu A primeira aldeia global (edição Casa das Letras, Lisboa) relativo à História de Portugal, escreve que o Infante D. Henrique «foi responsável por menos de um terço das viagens que, com patrocínio real, partiram de Portugal. Nenhuma delas chegou mais longe que a Serra Leoa», acrescentando que, apesar do apoio do rei para desenvolver Sagres, nada mais lá fez que alguns modestos edifícios.
Page sublinha ainda o papel do Infante no comércio de escravos no Atlântico, acrescentando que a projeção que lhe foi dada num importante livro inglês do século XIX corresponde à vontade da elite britânica contrapor um herói a Cristóvão Colombo e, na ausência de um totalmente inglês, D. Henrique era o melhor por ser filho de mãe inglesa. O livro desfaz muitos outros equívocos e foi elogiado por parte da crítica, mesmo em Portugal, onde é best seller.
Tidiane Diakité, historiador maliano, é autor de La traite des Noirs et ses acteurs africains (O tráfico de negros e seus atores africanos), editado pela Berg em Paris. Trata um largo volume de documentos, reveladores da participação de líderes africanos na captura e venda de escravos, como regra geral.
O professor Diakité escreve: «Se os europeus – em primeiro lugar os portugueses – passaram do estágio inicial de rapto, roubo e razia à fase elaborada da negociação e tratados concluídos com os reis e chefes do litoral africano, foi porque constataram que sem esses escalões nenhuma captura significativa, segura, durável e regular de escravos poderia ser operada».
O livro fornece dados sobre os preços sempre em alta, pagamentos (armas, pólvora, aguardente, tecidos, cavalos, etc.) e os protestos dos atores, europeus e africanos, quando se preparava a abolição do tráfico. Ele trabalha sobretudo com fontes de língua francesa, mas toca pontos situados nas atuais Nigéria e Angola, incontornáveis para o estudo dessa fase. Assinala as lutas de influência entre potências europeias pelo acesso a territórios e seus líderes locais e, por outro lado, as movimentações destes no aproveitamento da concorrência entre europeus.
A rainha Nzinga e a escrava
Quem estudou História de Angola não pode deixar de pensar na biografia da rainha Nzinga e a sua muito mencionada audiência com o governador colonial em Luanda, onde perante a falta de cortesia do anfitrião, que nem lhe ofereceu uma cadeira, ordenou a uma escrava que se curvasse no chão e sentou-se nela.
Atitude elogiada por alguns historiadores, que veriam a ocorrência do ponto de vista dos dois poderes em presença. É importante agora vermos do ponto de vista da escrava transformada em assento.
Aqueles
mesmos historiadores argumentam que a escravatura era praticada por todos e fazia unanimidade. Mentira. Já Aristóteles, séculos antes de Cristo, assinalou que em Atenas havia gente a favor e gente contra essa prática. Voltaire deixou escrito que a revolta de Spartacus foi uma guerra justa. Além, claro, dos milhões de vítimas cuja opinião é essencial.
Tidiane Diakité cita níveis de acumulação de capital local com o tráfico. Um exemplo é o rei Tegbessou do Daomé, que «vendia nove mil pessoas por ano» e em 1750 tinha rendimentos estimados em 250 mil libras «ultrapassando muito os mais ricos traficantes de Liverpool e Nantes».
Peter Linebaugh e Marcus Rediker trabalham as revoltas atlânticas dessa época, em A Hidra de Muitas Cabeças – Marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário (Ed. Companhia das Letras, São Paulo).
Um dos relatos fala da negra Francis, empregada doméstica, camada social que naquela altura (1630-1650) implicava trabalhos de «rachadora de lenha e tiradora de água». Ela fez parte do agrupamento religioso feminino, dirigido por Dorothy Hazzard que, entre outros feitos, comandou duzentas mulheres na defesa armada do Portão da Fome em Bristol contra o príncipe Ruppert, durante a revolução inglesa.
Francis teria transmitido testemunhos centrais para a orientação do grupo, como «a primeira rebelião de escravos na história inglesa, em 1 de Maio de 1638 na ilha de Providence (...) o comércio de homens no castelo de Elmina, a revolta dos servos de Barbados» etc. Francis teria trazido essas notícias das suas viagens e de sua vida nos cais, aspecto decisivo na tese destes dois autores.
Assim, eles consideram que os marinheiros eram veículo de rebelião, pela sua mobilidade e experiências. Em vários países, o recrutamento das tripulações era compulsório e os marinheiros sujeitos à lei da chibata, de tal forma que os navios negreiros conheciam três classes: os oficiais (únicos livres a bordo), os marinheiros, na verdade trabalhadores forçados, e os escravos. Com o tempo, eclodiram várias revoltas contra o recrutamento obrigatório e, em meados do século XVIII, uma testemunha notou em Londres que «marinheiros americanos multiétnicos eram os mais ativos nos tumultos» e que eram «desgraçados, de ascendência mulata, filhos diretos da Jamaica, ou negros africanos filhos de mulatos asiáticos».
Esta tendência multiétnica ganhou destaque em Nova York, em 1741, quando na noite de São Patrício (que aboliu a escravatura na Irlanda) foi incendiado o forte George, no que as autoridades viram uma primeira ação para tomada da cidade por um grupo composto «por soldados, marujos e escravos da Irlanda, do Caribe e África».
O grupo tinha como base a taberna de John Hugson, na zona portuária e, entre os membros tornou-se conhecido um casal, ele John Gwin (ou Quin) «de caráter suspeito» e ela «Negra Peg, notória prostituta». Nos dois casos, eram nomes de guerra ou alcunhas e, ao contrário do que sugeriam, ele era «escravo afro-americano, conhecido como César, pelo menos por seu dono», enquanto «Negra Peg, era Margaret Kerry de 21 para 22 anos, embora também fosse conhecida como a beldade irlandesa da Terra Nova».
As autoridades fizeram uma gigantesca batida policial, prenderam centenas de pessoas, classificadas como «os párias das nações da Terra» e vários enforcamentos foram executados, incluindo o casal multirracial e o dono da taberna.
Artigo publicado na edição de junho da revista África 21

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