Há dias, um Major-General moçambicano, dirigente de uma instituição de ensino superior, discursou num fórum do ensino superior sobre “governação orientada para a qualidade”. O vídeo, amplamente partilhado nas redes, foi recebido com entusiasmo. Falava em “saber fazer” ao invés de “saber pensar”, em “acabar com as aulas de slides” e em “ensinar a pessoa a fazer coisas”. O tom parecia práctico, mas o conteúdo, à luz do pensamento, era um festival de falácias e metáforas mal aplicadas, como tentei mostrar num “post” de ontem. A reacção pública ao discurso revelou, para mim, um ambiente cultural em que a ignorância é confundida com lucidez, este foi o título do post, e o desprezo pela teoria é celebrado como sinal de sabedoria.
O físico nuclear Julião Cumbane acaba de se juntar a esse ambiente. Ontem, partilhou num grupo de WhatsApp em que ambos somos membros um artigo sobre as áreas STEM, no qual denunciava o que chama de “subalternização simbólica das ciências exactas” em favor das ciências sociais. À primeira vista, parecia uma reflexão sobre o equilíbrio entre saberes. À segunda, contudo, revelava uma compreensão estreita e antiquada da própria noção de ciência. Cumbane confunde rigor com quantificação e método com tecnologia, reduzindo o conhecimento à sua dimensão instrumental. É uma visão positivista e pré-crítica (do s’eculo XIX), que me parece incapaz de perceber que a ciência também é cultura, interpretação e responsabilidade moral. Desde Popper e Kuhn, só para citar algumas referências que qualquer docente universitário precisa de conhecer e dominar, sabemos que o conhecimento científico é um processo de revisão e crítica. Igualmente, desde Habermas, sabemos que a racionalidade técnica, quando desligada da racionalidade comunicativa, degenera em dominação.
Curiosamente, o texto pregava “integração equilibrada” entre ciências exactas e ciências sociais, mas construía o argumento com base numa hierarquia. Os engenheiros produzem; os cientistas sociais discursam (algo que ele faz constantemente na esfera pública, talvez até mais do que muitos cientistas sociais). É o caso clássico de contradição performativa, em que o discurso da integração esconde o desejo de supremacia. Além disso, o diagnóstico era empiricamente falso. O Estado moçambicano é, desde a independência, dominado por gente que concebe o desenvolvimento em termos tecnológicos. Tem sido recorrente o discurso de ministros da Educação ao afirmar que a educação tem que contribuir para o desenvolvimento e, por isso, privilegiar o ensino técnico. O problema do país não é o excesso de pensamento social, mas sim a sua escassez.
Por detrás dessa argumentação havia, e continua a haver, uma ausência de filosofia política. A ideia de que as ciências sociais servem apenas para “nutrir a cidadania” enquanto as ciências exactas “resolvem problemas concretos” revela uma divisão tecnocrática entre quem pensa e quem executa. É uma visão autoritária do conhecimento. É o saber como instrumento de comando e não de emancipação. O próprio texto, que acusava as ciências sociais de retórica, era retórica pura, sem dados, sem conceitos, sem hipóteses, apenas uma proclamação de fé tecnocrática. É curioso, repito, que a mesma pessoa que reclama que os cientistas sociais só falam passe a vida pública a falar de todo o tipo de assuntos (é seu direito), frequentemente servindo-se de conceitos das ciências sociais, mal ou bem aplicados, para o fazer. Não investe metade do seu tempo público em demonstrar a relevância prática da física nuclear para o desenvolvimento do país.
Agora, em “Pensar com os pés no chão”, um texto posterior, Cumbane tenta responder às críticas que fiz ao general e, indirectamente, à sua própria concepção de ciência. Reconhece o “rigor argumentativo” da crítica, mas insinua que ela peca por “arrogância epistemológica” ao supostamente desqualificar quem não domina a linguagem formal da academia. Ele revela um novo equívoco, talvez o mais grave de todos, que é o de confundir exigência com elitismo. A universidade não é um espaço em que todos os discursos valem o mesmo. É o espaço em que o valor dum discurso depende da sua coerência, consistência e demonstração. O que distingue a academia do improviso é o domínio da epistemologia e da lógica, não o carisma do orador. O general em causa demonstrou incompetência académica neste quesito e, se for verdade que dirige uma IES, isso é grave!
Ser professor universitário, em qualquer área, implica conhecer, ao menos, os princípios da argumentação e do raciocínio válido. Não é uma questão de estilo, e sim de responsabilidade. A ignorância de epistemologia e lógica entre alguns docentes universitários é talvez o maior obstáculo ao desenvolvimento do ensino superior moçambicano, até maior do que a suposta preferência por ciências sociais ou a ausência de “saberes práticos”. Quando professores confundem metáfora com demonstração e convicção com prova, o problema já não é de área científica, e sim de cultura intelectual.
Ao falar em “hegemonia simbólica dos saberes analítico-discursivos”, Cumbane volta a caricaturar o pensamento crítico como forma de dominação. Mas pensar criticamente não é o oposto de agir, mas sim a condição para agir bem. A crítica impede que a universidade se torne refém da ignorância e que o ensino se degrade em “performance”. Um docente que rejeita a exigência da lógica renuncia à própria dignidade da docência. O equívoco de Cumbane não está em defender a relevância das ciências exactas. Está em não compreender o que torna possível qualquer ciência. O cientista que quer ser levado a sério, seja físico ou sociólogo, sabe que medir é apenas o início do compreender e que o conhecimento não se esgota na técnica. A ciência que se converte em propaganda de eficiência deixa de ser ciência e torna-se ideologia. E a universidade que abdica do pensamento deixa de formar cidadãos para formar apenas executores.
O texto de Cumbane termina por apelar à “síntese pedagógica moçambicana”, na qual o pensamento enraíza-se na realidade e a acção orienta-se pela reflexão crítica. É uma frase bela, mas contraditória em relação a todo o raciocínio anterior. Para haver síntese, é preciso primeiro haver método, e o método exige domínio da lógica, da argumentação e da epistemologia. É isso que falta, e é precisamente isso que a sua reacção, inadvertidamente, confirma. Por isso, a questão central não é, e nunca foi, se Moçambique privilegia as ciências sociais ou as exactas. O verdadeiro problema é o enfraquecimento da cultura intelectual nas próprias universidades, onde a posição de docente deixou de implicar domínio de pensamento. Ensina-se sem compreender o que significa ensinar e critica-se sem saber o que significa argumentar. É este o ponto nevrálgico. Ser professor universitário não é apenas transmitir conteúdo, mas também compreender a maneira como o conhecimento se produz, se valida e se corrige. Sem isso, a universidade torna-se palco de discursos que soam científicos, mas não resistem a uma leitura rigorosa.
Cumbane, como tantos outros, é sintoma desse declínio. A sua defesa das ciências práticas é legítima, mas o seu desprezo pelas exigências da razão não é. A universidade pode e deve formar pessoas que saibam “fazer”, mas precisa, antes de tudo, de formar quem saiba pensar sobre o que faz. A técnica sem reflexão é repetição e o pensamento sem lógica é ruído. Continuar a confundir autoridade com sabedoria e volume de voz com profundidade de razão só nos vai levar à situação em que nos encontramos agora, de ver os lugares de importância a serem ocupados por quem tem muitas certezas e pouca compreensão. Por isso, a questão que se impõe ao país não é se devemos privilegiar o pensamento ou a acção, a teoria ou a prática. É se ainda somos capazes de distinguir o conhecimento da opinião, a lógica da retórica e o rigor do improviso. Se continuarmos a confundir tudo isso, continuaremos a ver pessoas na docência que não dominam o que deveriam ensinar e que, pior ainda, nem têm vergonha de mostrar essa ignorância.
N.B. Já coloquei como hipótese a ideia de que a preferência pelas ciências sociais tem a ver com o facto de o nosso mercado de trabalho oferecer mais oportunidades a quem é formado nestas áreas. Se isso for correcto, o problema que devíamos discutir devia ser outro, nomeadamente como revitalizar o sector industrial (que, nos últimos 30 anos, se desmoronou). Mas lá está, para entendermos isso, teríamos que recorrer às ciências sociais…
Dennis Titosse
Elisio Macamo, são duas faces da mesma moeda.
Jaime Guambe
Prof saudações. Podemos ter acesso ao texto do JJC,físico nuclear, para melhor compreensão do seu? Tem sido hábito do Prof. fazer isso. Abraço.
Elisio Macamo
Jaime Guambe, visite a sua página, por favor. é pública.
Jaime Guambe
Elisio Macamo obrigado. Na verdade teria visitado como faço das outras vezes mas,desta vez, o Prof diz que o texto foi publicado num grupo de whatsApp onde ambos fazem parte.Salvo erro,no 2 parágrafo.Terei entendido mal?
- Edited
Elisio Macamo
não entendeu mal. ele reproduz textos que publica no seu mural.
Brazao Catopola
Eu já tive esse debate com Júlio Cumbana faz anos e, infelizmente, insiste em pensar assim. Talvez o problema seja exatamente não querer ler teorias. No entanto, aí está o paradoxo, pois não pode explicar e conceber a prática como prática sem que ela seja sustentada por teorias. Enfim. Quanto ao general que ontem falou eu já tinha respondido a alguém o seguinte
Jessemusse Cacinda ·
Temos conversado sobre isso na Ethale Publishing. Enquanto editores, livreiros e agentes culturais da cidade temos duas saídas: 1) Fazer o que aprendemos a fazer de forma mecânica; 2) Pensar sobre o que fazemos para fazer melhor. Nesse sentido, entre quem sabe fazer e quem pensa sobre o faz, os segundos nos são úteis porque o nosso mercado é instável, volátil e por via disso em constante mudança, o que nos obriga a considerar a lógica e o pensamento critico como uma habilidade fundamental para o nosso trabalho.
Flávia Ferrão Pinto
Em Menos de 72 horas, tiivemos informações tristes,alarmantes e vergonhos do nosso executivo Governamental. E parece que esta a ser uma rotina normalmente. Informações dignas de Calamidade institucional. Como disse o Dr. Juiz Paulino" SE MOÇAMBIQUE FOSSE UMA EMPRESA, PUNHAM UM LETREIRO BEM GIGANTE NA PORTA COM OS DIZERES : FECHADO POR 30 DIAS PARA O BALANÇO". Porque NÃO É POSSIVEL ISSO!!!
João Pedro Muianga
Quando ouvi aquele discurso do General fiz-me uma pergunta “como é que um indivíduo pode aceitar sapatos e negar os seus próprios pés”.

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