Denúncia e a análise
Joseph Hanlon é, sem dúvida, uma das vozes mais persistentes e informadas sobre Moçambique. Desde os anos 1980, o jornalista e académico britânico acompanha de perto o percurso político e económico do país, denunciando o modo como a liberalização pós-socialista, promovida pelo FMI e pelo Banco Mundial, abriu caminho à captura do Estado por elites renteiras. Caiu na minha caixa de correio electrónico o seu novo livro (Moçambique Recolonizado através da Corrupção: Como o FMI criou um Estado Oligárquico - Ethale, 2025) que retoma, com vigor e clareza narrativa, essa tese. Não sei se está toda a gente a ler com atenção.
Trata-se de uma obra acessível, rica em factos e que foi escrita com a indignação de quem acredita que o jornalismo deve proteger a integridade moral da sociedade. Mas é também um livro que exemplifica o problema central da análise política moçambicana contemporânea, que consiste em reduzir a história a um enredo moral e a análise a um discurso de denúncia. Com efeito, Hanlon escreve a partir de uma convicção forte e justa de que Moçambique foi vítima de uma segunda colonização, agora económica. A narrativa abre com o assassinato de Siba Siba Macuácua, em 2001, apresentado como símbolo da transição de um Estado revoluccionário para um Estado oligárquico. A história é forte e bem contada. No entanto, o autor transforma-a num drama moral em que os actores se dividem entre heróis e vilões, portanto, entre os reformadores honestos (como Siba Siba), os corruptos locais (a elite da Frelimo) e os agentes internacionais da recolonização (FMI, Banco Mundial e doadores).
Esta estrutura narrativa é politicamente eficaz porque indigna e mobiliza, mas analiticamente deixa a desejar. A política moçambicana é apresentada como um campo de intenções morais, não de estruturas, compromissos e racionalidades em conflito. Ao colocar toda a causalidade na pressão externa, Hanlon desresponsabiliza a agência local e ignora o modo como o Estado moçambicano reinterpretou, adaptou e instrumentalizou as exigências do neoliberalismo. A elite que ele denuncia não é apenas produto do FMI, mas também o resultado de lógicas internas de redistribuição, de alianças partidárias, estratégias de sobrevivência e de poder que não se explicam por “recolonização”, mas por histórias de Estado e de dominação. A insistência na “colonização” infantiliza-nos.
O resultado é um texto que parece acusar sem, contudo, compreender. A corrupção torna-se a explicação de tudo, e a política perde densidade. As noções de “oligarquia”, “cleptocracia” e “recolonização” são usadas como metáforas morais, não como conceitos analíticos, um grande problema na esfera pública. Faltam mediações teóricas que mostrem, por exemplo, como a dependência financeira se traduz institucionalmente, como se formam as alianças entre elites nacionais e actores externos, ou como a economia moral da sobrevivência quotidiana se cruza com a economia política do Estado. Hanlon observa o visível (a acumulação ilícita, a violência, a impunidade), mas não analisa as formas de racionalidade política que sustentam esses fenómenos.
A superficialidade analítica de Hanlon não é apenas um limite individual. Acho que é o sintoma duma tendência mais ampla no pensamento político sobre Moçambique. Desde o colapso do socialismo, a crítica pública tem oscilado entre denúncia moral e conformismo técnico. Uns indignam-se, outros calculam. Poucos analisam. A denúncia moral, mesmo quando justa, corre o risco de transformar a política num teatro de culpados e inocentes, e de substituir a investigação das causas pela dramatização dos efeitos. Nesse sentido, o livro cumpre uma função cívica, mas falha na sua função analítica. Ele dá voz à indignação popular, mas não oferece ferramentas para entender as contradições do Estado moçambicano contemporâneo entre dependência externa e soberania formal, entre redistribuição e apropriação e entre o que o Estado promete e o que ele nega.
Ao insistir que o FMI “criou um Estado oligárquico”, o autor ignora que as elites locais já estavam a transformar a estrutura do Estado em património político antes das reformas neoliberais. O FMI foi cúmplice, não criador. O enredo de recolonização é, assim, um moralismo histórico, isto é, ele denuncia a injustiça, mas simplifica a história. E, ao fazê-lo, impede que o leitor compreenda a complexidade do problema, portanto, como o poder político em Moçambique aprendeu a sobreviver justamente ao transformar a denúncia em recurso de legitimação.
“Moçambique Recolonizado” através da Corrupção é um livro necessário para o debate público e para a memória nacional, mas insuficiente como análise. Hanlon escreve com a paixão de quem quer corrigir o mundo e não compreendê-lo. A sua força moral é também a sua fraqueza intelectual. A crítica política de Moçambique precisa de ir além da indignação. Ela precisa de reconstruir o pensamento analítico capaz de explicar como o poder se adapta, se justifica e se perpetua, mesmo quando todos o denunciam. Em suma, temos que ler Hanlon criticamente para vermos que ele nos mostra o que está errado, sem explicar por que continua a estar errado. Esse é o verdadeiro campo da análise.
É aqui onde reside o grande desafio da análise política moçambicana. Temos que transformar a denúncia em compreensão e a compreensão em responsabilidade. O livro é um bom manifesto para quem quer criar uma ONG para viver da venda dos problemas moçambicanos aos doadores em troca da sua própria reprodução. Não para entender o nosso país. Nós temos que ter cuidado com certas leituras. Fazem-nos bem por dar conforto às nossas convicções, mas não nos levam longe. E a análise tem que nos levar longe.
Espero não ter estragado a leitura de ninguém.
Muday Madidiane Tchambule
É a “voz” dele…
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Jemusse Abel
Quero degustar a obra ! Em vez de estragar, deu-me mais vontade de lê-lo.
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Helio Thyago Krpan
(...) "A sua força moral é também a sua fraqueza intelectual" by Macamo
Confesso que depois de ler este raio X hermeneutico da obra, fiquei mais curioso em ler. Nao tenho ainda opiniao formada sobre o que Hallon escreveu, mas prometo voltar para ver pontos e contra-pontos.
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Bartolomeu Tome
Estou a lê-lo. Tal como outras obras anteriores suas, estou convicto que é um interessante contributo para debate, compreensão e análise do percurso sócio - económico da Pérola. Útil para a academia, apesar das dissonâncias. Ogd por ajudar a olhar, caro Prof Elisio Macamo.
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Jose Luis Barbosa Pereira
Aguçou a minha curiosidade Prof. Vou lê-lo
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Arao Jose Valoi
Acabei de adquirir um e vou devorá-lo com todo o gosto.
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F Antonio Souto
O Prof Elisio Macamo, como já nos habituou, desafia-nos para refletirmos sempre sobre o que lemos e escrevemos nestes espaços mediáticos. Na base da nossa amizade abusei deste seu espaço facebookiano para dizer que embora não discordando com a sua apreciação, eu sou de uma geração que pelas suas vivências tem nas suas leituras um mix de memórias e emoções de um projecto e de um processo de 50 anos. Por isso e com a permissão do Prof Elísio partilho aqui algo que é um pouco diferente da forma como leu o livro de JH ; https://f4sd.org.mz/?p=1304

F4SD.ORG.MZ
Da Utopia à Oligarquia: O Sarilho que Hanlon nos Obriga a Enfrentar – F4SD
Da Utopia à Oligarquia: O Sarilho que Hanlon nos Obriga a Enfrentar – F4SD
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Jose Luis
Estou a ler o livro, confesso que não tinha observado essa distinção entre uma leitura analítica e a moral. Obrigado pela iluminação professor Elisio Macamo .
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Miro Guarda
Uma das coisas que faço no meu trabalho é a investigação de incidentes. Não aquela que as nossas comissões de inquérito fazem quando há um acidente rodoviário que ceifa muita gente, cuja culpa sempre recai no excesso de velocidade do motorista. Mas aquela investigação que procura entender o root cause do problema, claro sem descurar os Contributing factors.
Então, aqui encontro uma similaridade numa parte do seu texto: as instituições de Bretton Wood não passam de contributing factors. Que nem aquele vírus parasita que encontra um corpo sem as suas defesas e ele aproveita-se. Mas Hanlon não discute o root cause e, sem esse, dificilmente iremos identificar o real problema. Então continuaremos no mesmo ciclo vicioso de acusações emocionais sem alcançarmos uma discussão profunda .
Obrigado professor . Vivendo aprendendo.
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Sansao Da Luz
Nessa senda, seria interessante se autor explicasse como foi que o Estado Moçambicano sobreviveu às sanções impostas pelo FMI e o Banco Mundial, aquando da descoberta do calote das “dívidas ocultas”. Na altura, mais de 60% do financiamento ao OGE e o PES provinha dos parceiros de cooperação. O país vai-se reinventando mercê dos acordos de cooperação bilateral que firmados com os seus “amigos”. As lideranças continuam pecando na falta de comunicação transparente e aberta dos acordos, tal por temerem a responsabilização dos seus actos governativos.
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Eduardo J Sitoe
Interessante. Li o livro e notei insuficiências na tradução e edição. Mas, creio que a tese central do livro é convincente: a transição do período revolucionário, socialista, para o actual - incaracteristicamente neoliberal - foi patrocinada e liderada pelo FMI/WB. O economista Carlos Nuno Castel-Branco já descreveu profusamente acerca da actual situação político-económica do país que, grosso modo coincide com a abordagem do Joe. As grandes corporações exploram os recursos de Moçambique em moldes coloniais, com ou sem corrupção; esse é um facto que deve ser encarado com absoluta frieza e frontalidade.
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Raul Junior
Eu li o livro. Fiz a leitura como consumidor passivo. Vou reler para a reflexão depois para análise. Desta vez, puxou a corda jon. Analisar um texto não é assunto de meninadas, aqui sequer venancistas chegam!
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Carla Maria
Muitas verdades sem papas na língua por um investigador corajoso e frontal. Muitos publicam nos seus países e ficamos a saber nada. Outros, muitos das instituições nacionais não tocam em muitos dos assuntos expostos. Mas o que me deixou triste, foi ter ouvido, que as nossas elites, se estão a organizar para deixar o país, em caso de a coisa mudar. Será a segunda debandada. E como diz o povo, agora dos colonos pretos. A traição ao dito povo, recusando a sua pertença, quando se perdem privilégios. Será o fim de mais um ciclo? Fugir da terra amada?
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Emidio Oliveira
Obrigado pela leitura Professor. Ainda não li este. Acompanho as publicacoes de J. Hanlon desde, se não estou em erro, desde o "Who Calls the Shots?" (1992) e observo-o, embora ligado à academia, com um escritor, mas jornalista em primeiro lugar, ligado a uma ideia de Mocambique que já não (nunca se diga nunca) vai mais acontecer, pelo menos como se aspirava. Fiquei curioso, a não ser que não tenha percebido na sua leitura, qual é de facto "a complexidade do problema" que minimiza o que foi publicado?
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