Tuesday, October 14, 2025

MAIS DENÚNCIA, MENOS ANÁLISE

 Edgar Barroso

21 h 
MAIS DENÚNCIA, MENOS ANÁLISE
Fiquei a saber que o Prof. Elísio Macamo reagiu com outra meia dúzia de textos à crítica que fizemos ao modo snob como leu o livro de Joseph Hanlon. Pelo modo virulento com que respondeu, mesmo que oculto numa linguagem pedagógica e cordial, só veio a reproduzir, mais uma vez, a altivez de um modelo de pensar onde o conhecimento é tratado como propriedade de uma elite intelectual que “deposita” saberes nas mentes dos “menos esclarecidos”. Nesse exercício recorrente, ele nem sequer estranha a razão dos seus próprios pares não ligarem à mínima para o que escreve. Quase ninguém comenta os seus dizeres, muito provavelmente por já saberem quem ele é e o que ele significa ou representa, no nosso pequeno mercado de ideias.
Ele sabe muito, sem dúvidas. Nessa geografia da arrogância de saber que sabe muito, parece estar cada vez mais a falar para si próprio. Por exemplo, ao estabelecer uma hierarquia rígida entre quem “analisa correctamente” Moçambique e os seus processos sociopolíticos – os académicos com método – e quem apenas “constata” ou “denuncia” – os jornalistas e/ou activistas –, Macamo erige-se como uma espécie de guardião dos critérios de validação do conhecimento científico sobre Moçambique, decidindo o que é ou não é pensamento legítimo.
Como diria Paulo Freire, há sempre uma relação dialógica entre texto e contexto, independentemente de quem o redige, e é o efeito que isso causa no leitor o que legitima se tal conhecimento e/ou informação são por ele devidamente apropriados e passa a ser relevante para a sua própria transformação. Um verdadeiro educador (ou cientista social, já agora) deveria, elementarmente, saber disso. Afinal, não existe leitura neutra, apenas leituras situadas em corpos, histórias e lugares concretos. A partir daí, o que legitima o conhecimento não é a sua conformidade a protocolos metodológicos abstractos, mas a sua capacidade de ser apropriado pelo leitor dentro do seu contexto vivido, tornando-se ferramenta para compreensão e transformação da realidade.
Dito de forma simples, quando Joseph Hanlon escreve sobre a recolonização via corrupção em Moçambique, o teste de validade do seu trabalho não reside em satisfazer os critérios analíticos de Macamo, mas em dialogar efectiva e eficazmente com moçambicanos que experimentam diariamente essa recolonização: o camponês de Cabo Delgado que vê a sua terra devastada, o funcionário público que testemunha licitações fraudulentas, a professora que não recebe salário regularmente enquanto alguns poucos enriquecem pornograficamente. Se essas pessoas reconhecem a sua experiência quotidiana no texto de Hanlon, se o livro nomeia e organiza aquilo que vivem de forma difusa, então o conhecimento foi apropriado – e, portanto, validado pela práxis. Um verdadeiro educador, comprometido com a pedagogia libertadora, compreende que a sua função não é a de certificar ou de desqualificar saberes segundo hierarquias epistemológicas coloniais – essas coisas do método, racionalismos e etc –, mas a de facilitar o diálogo entre diferentes formas de conhecimento, reconhecendo que cada uma emerge de (e responde a) contextos específicos.
Macamo, ao contrário, insurge-se, muito suspeitamente, como o fiscal epistemológico que determina, unilateralmente, os critérios de legitimidade do conhecimento ou da informação partilhada por Hanlon, sem jamais partir do universo vocabular e das condições materiais de existência daqueles sobre quem este último escreve ou para quem deveria escrever. A sua insistência em “mecanismos analíticos” e “inferências demonstradas” ignora que o conhecimento nasce da experiência vivida das pessoas, não da observação metodológica externa – excessivamente teórica e retórica – de sociólogos. Nesse desiderato, o papel de jornalistas como Joseph Hanlon é precisamente o de actuar como codificadores e sistematizadores das experiências vividas pelas massas populares, transformando a consciência difusa da opressão em narrativas acessíveis que nomeiam, organizam e devolvem ao povo a sua própria compreensão da realidade de forma ampliada e partilhável. Hanlon não precisa de satisfazer os critérios metodológicos da academia europeia porque a sua legitimidade vem de outra fonte: a capacidade de dialogar com as comunidades afectadas, de documentar as suas denúncias, de dar visibilidade (nacional e internacional) às suas lutas e de fornecer instrumentos – dados, conexões, padrões – que fortalecem a consciencialização colectiva e a mobilização política.
Por outra, quando documenta a devastação do meio ambiente em Cabo Delgado ou os esquemas de corrupção envolvendo o FMI, Hanlon não está a impor uma análise externa sobre sujeitos passivos incapazes de compreender a sua própria realidade; está, sim, a amplificar vozes silenciadas, a conectar experiências locais fragmentadas num quadro compreensivo mais amplo, e a devolver aos seus leitores (o povo moçambicano) as ferramentas simbólicas para identificar a sua recolonização; um acto de nomeação colectiva que é, ele próprio, o primeiro passo para a sua libertação. O jornalismo comprometido, tal como a educação libertadora, não é a mera transmissão unilateral de conhecimento superior, mas a mediação dialógica que parte do saber popular, honra-o, sistematiza-o e devolve-o enriquecido, sempre a serviço da práxis transformadora das comunidades oprimidas, nunca da vaidade metodológica de alguma elite intelectual que confunde rigor académico com compromisso ético-político com os despossuídos.
Macamo insiste que o “rigor é a ética do pensamento”, apresentando o método académico como neutro e objectivo. Novamente recuperando Paulo Freire, não existe neutralidade na educação ou na produção de conhecimento. Quando Macamo exige que se demonstre “mecanismos analíticos” antes de se afirmar que Moçambique foi recolonizado pela corrupção, ele ignora que as pessoas comuns já vivem e compreendem essa recolonização nos seus corpos, nas suas comunidades destruídas pela exploração extractivista, ou nas suas vidas precarizadas. O oprimido não precisa que o intelectual lhe explique a sua opressão através de metodologias sofisticadas. O oprimido já sabe que tem sido sistematicamente oprimido. O que Macamo chama de “constatação moral” é, na verdade, consciência da realidade vivida – o primeiro passo para a práxis transformadora. Ao desqualificar essa consciência como “não-analítica”, Macamo perpetua a colonização intelectual: só o colonizador pode nomear legitimamente a colonização. Só o sociólogo pode compreender a opressão do povo.
Outra insistência de Macamo é a separação artificial entre a denúncia moral e a análise rigorosa, sugerindo que a primeira é inferior, emocional, “apenas slogan”. Oblitera, nesse esforço, o facto de que não há transformação social sem a denúncia apaixonada da injustiça, e essa denúncia já contém em si uma análise – nascida da experiência concreta de quem sofre a opressão ou de quem a dissemina, jornalisticamente. Nesse contexto, quando Joseph Hanlon afirma que Moçambique foi recolonizado através da corrupção, ele está a fazer muito mais do que constatar: está a nomear um processo histórico a partir de evidências documentadas. Exigir que ele demonstre cada “mecanismo analítico” antes de legitimar a sua tese é uma táctica subtil de silenciamento.
A dado momento das suas teses, Macamo celebra o método como “responsabilidade pública” e “pedagogia da dúvida”. Nesse sentido, ele oculta uma questão fundamental: de que método está a falar? O método positivista euro-centrado que exige que realidades africanas sejam dissecadas através de categorias analíticas exógenas, num exercício de violência epistémica que replica, no plano do conhecimento, a mesma lógica colonial que tanto critica nos seus textos e livros quando fala de África e de Moçambique? Eu penso que uma metodologia autêntica parte sempre do universo cultural e das condições materiais concretas dos sujeitos investigados – não se impõe de fora para dentro. Tanto os jornalistas como as pessoas que vivenciam diariamente a corrupção sistémica, que assistem ao desmantelamento do Estado e das suas políticas sociais enquanto as elites se enriquecem, que sofrem a recolonização nos seus corpos e comunidades, etc etc, não carecem de um doutoramento em sociologia para compreender a sua própria opressão: elas a compreendem visceralmente, com uma densidade experiencial que nenhuma observação académica distanciada pode rivalizar.
Ademais, o verdadeiro método científico comprometido com a transformação social não desqualifica uma produção jornalística rotulando-o de “mera constatação” ou “puro slogan”; ao contrário, parte do conhecimento popular, dialoga horizontalmente com ele, aprende com os seus saberes e discursos, e colabora na sua sistematização colectiva – não para validá-lo segundo critérios académicos externos, mas para potencializá-lo como instrumento de conscienlizazação e luta. Macamo, ao erguer-se como guardião metodológico que determina o que conta ou não como conhecimento legítimo, revela-se não como cientista social comprometido com a disseminação de informação e a emancipação popular, mas como um intelectual orgânico de uma ordem a quem interessa manter as massas epistemicamente subordinadas, incapazes de nomear autonomamente a sua própria realidade, eternamente dependentes da mediação certificadora de elites académicas que falam sobre elas, e nunca com elas.
Por fim, Macamo afirma que, como professor, se as pessoas não o entendem, “o problema começa em mim”. Mas os seus textos contradizem essa suposta humildade. Diferentemente de Hanlon, ele escreve em linguagem academicamente hermética, repleta de referências a debates metodológicos inacessíveis à maioria dos moçambicanos. Manter o conhecimento codificado em linguagem inacessível garante que apenas a elite escolarizada possa participar do debate público pretensamente legítimo. Não seria o Macamo nada mais do que um dos mais proeminentes guardiões do capital simbólico, garantindo que as massas permaneçam excluídas da produção ou da aquisição de conhecimento sobre a sua própria realidade?
Com efeito, em nenhum momento das suas elucubrações Macamo menciona ou dialoga com as comunidades afectadas pela corrupção, pela recolonização e pela captura do Estado. A sua “análise” ocorre sempre sobre o povo, nunca com o povo. Em quê é que isso seria analiticamente superior ao conhecimento que Hanlon produziu articulando com as próprias comunidades? Ao desqualificar a forma jornalística de compreensão e disseminação da realidade, Macamo pretende paralisar a acção transformadora exigindo que, antes de agir, as pessoas comprovem as suas análises segundo critérios que nunca podem dominar plenamente. É a paralisia pela análise infinita. Essa é a última coisa que Moçambique precisa, neste momento da sua história. Reflexão sem acção é verbalismo estéril. Quando o povo diz “estamos a ser recolonizados”, Macamo responde: “provem o mecanismo analítico que vos fez chegar a essa conclusão”. Quando o povo diz “a corrupção está a nos destruir”, Macamo replica: “isso é apenas constatação moral”. Essa postura não é neutralidade científica, é cumplicidade com o sistema que oprime.
Moçambique não precisa de mais gatekeepers intelectuais a policiar quem pode ou não produzir informação ou conhecimento legítimo sobre o país. Precisa de mais Joseph Hanlons que, ao documentar a recolonização através da corrupção, dá voz aos silenciados, nomeia as estruturas de opressão e fornece instrumentos para a consciencialização colectiva. Não importa se cada inferência foi “metodologicamente demonstrada” segundo padrões macamianos; importa mais se o livro de Hanlon contribui para que o povo compreenda e transforme a sua realidade. Essa transformação não se conquista com rigor metodológico abstracto, mas com práxis colectiva, aquela permanente leitura das massas sobre o seu mundo, em livros como o de Hanlon, para depois transformá-lo. Afinal, a informação e o conhecimento que liberta não é (e nunca foi) propriedade privada da academia. Ou da sociologia.
Sérgio Lino - Pássaro
Nem vale a pena perder tempo com ele.
Danilo Tiago
Magister Dixit
Ser - Huo
Eu já não sei se é elitização do conhecimento, ou estamos perante a capitulação de elites do conhecimento a comandos da nossa política. É que é básico que hoje não há metodologia de produção ou análise de conhecimento que se arrogue o título de príncipe do processo científico. Não sou muito apologista dos postulados das chamadas epistemologias do Sul, mas a verdade ensina que são uma forma determinante de reclamar esta ditadura colonial de olhar a produção e análise de conhecimento sob lentes do "Norte". É daí estranho que entre nós, os que deviam ser a luz, continuem a pregar uma forma da fazer ciência que endeusa suas próprias crenças e exposições científicas, e é reducionista à propostas alternativas de outros.
***Esse seu texto devia ter aquela foto com livro de Paulo Freire.
Dete Dete
E o sujeito não tolera ser contrariado.
Wilson Assumane
Não me importa esses métodos científicos rigorosos. O importante é que descobrimos, de uma forma tão simples, o que estão a fazer connosco e quem abriu o cu para o pau entrar.
Desculpa a expressão, é que já estou farto dessa gente.
Bruno Mayer
Imaginando essa exposição em documentário da JovemPam.
Wa Ka Mutlinyinye
"Reflexão sem acção é verbalismo estéril".
Bingo.
Maior fã
Buene Boaventura Paulo
Quem diria há 10 anos que o todo e dito sábio teria uma afronta como esta? Aqui está o sabor da ciência: não é propriedade exclusiva de ninguém. É tempo de o dito cujo se rever e pensar saudável sobre o que evolui no seu País
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Aziza Throne
Concordo com a tua posicao Edgar mas ao longo do texto promoves um tal " intelectual" que esta a tentar colocar-se como " expert " em Mo'cambique e que ate fala de VOR (s) kkkk
Raul Junior
Interessante texto. Não saio em defesa de Elísio Macamo apenas digo que Elísio Macamo não escreve textos tendo em conta uma pessoa específica. Ele interpela assuntos gerais, quando fez interpelação do texto de Joseph Halon não o fez em relação à pessoa! Este texto aqui não é sobre a análise que Elísio Macamo faz ou dos menanismos analíticos que ele usa, mas sim sobre Elísio Macamo(se ele lesse este meu comentário e traduzisse para Shangaan dele de Xai Xai não ousaria a se meter neste debate sem interesse. Ele fez isso com Gustavo Mavie e Julião Cumbane coisas tão baixas, ou seja, entrou na jogada de nivelamento por baixo). Ele sequer é autor das metodologias ou categorias de análise sociológica, se estiver equivocado "distra".
Fafetine Jose
Exigir que o oprimido prove (através de métodos científicos) que está sendo oprimido é demais...
Monikker Savler
Mas por que perdes tempo com aquele Sr? Eu queimei todos livros e textos que tinha dele em Novembro do ano passado!
Ali Salustiano
Me supreende que você ainda perca tempo com o pseudo-Professor, que acha que é dono e titular do conhecimento.
Comenta tudo lá de longeeeeee 😅
É melhor lhe ignorar aquele !
Já não nos assustamos com títulos vazios nós ! Essa geração passou 😅
Luis Baptista
Gosto da sua ousadia… Bater de frente contra um Professor Catedrático com créditos firmados.
Eddy Prince Simbine
Obrigado irmão Edgar Barroso por colocar de forma tão clarificadora sobre quem é o fulano da elite intelectual ao serviço do opressor, ajuda os teus mais irmãos a se libertarem d uma jaula do controlo social através de cientistas sociais manipuladores ou seja que são o garante de cegueira mental colectiva do povo pra o regime assambarcar tudo sem que ninguém os detém.
Cremildo Manhica
Pessoas como Elísio Macamo são um freio para própria academia.
Wakwatu Bacassa
Pelo pensamento do dito académico que exige "métodos científicos específicos" como condição sinequanon para reconhecer a recolonização através da corrupção é lamentável.
Será que vive neste país o Dr Elísio?!
Será que é um dos 800 milionários que o país tem?
O desafio está lançado, ler até perder esperança. Hanlon não pecou na sua afirmação.
Valquiria Senete
O primeiro parágrafo doeu 🫢
Continuando...
Amilton Munduze
O nosso grande escriba cantando a música de Arnaldo Manhice. "Macamo". RAITHAS pa!
Zeca Gonçalves José Magaia
A lâmina bem afiada.
O corte foi profundo!
Mota Junior
Macamo: Por que você morreu?
Eu: só sei que um morto não está em vida (comum).
Marlon Langa
Contrapeso a análise de Macamo. O livro foi lançado e será um objeto de estudo, creio dissertações, teses, etc, vão cita-lo muito bem.
Valdemiro Inácio Abel Bié
Essa dissertação toda? Não está fácil.
Felix Chitlhango
Ha bifes serios nao voz do Fred Jossias Show 😂😂😂
Olga Horacio Pires
Boa!! 👍🏽 Gostei!!
José Mondlane
Bom sobre este assunto so sei que não fosse pela primeira análise do Prof.Macamo não teríamos um comentário seu sobre o livro. E não fosse pela crítica que faz ao Macamo também não teria vários comentários sobre o assunto.
Eu fico no comentário que o Stwart Sukuma fez numa das últimas publicações que prof Macamo fez sobre este assunto.
Ps: o mais importante é ler do que se comentar
Serafim Alfredo Mavale
Edgar Barroso não percas tempo com Elísio Macamo.
Esse senhor já escolheu o lado dele há muito tempo, e não é o lado do povo. Por trás da pose de “académico rigoroso”, ele actua como um verdadeiro serviçal intelectual da Frelimo, sempre pronto a defender com palavras rebuscadas os interesses de quem está no poder.
O que ele escreve não visa esclarecer, nem libertar, nem construir um país melhor. Visa proteger o sistema que o alimenta, seja com prestígio académico, seja com as migalhas que recebe por manter-se “útil” ao regime. Ele fala difícil para parecer profundo, mas no fundo é só mais um burocrata do pensamento ao serviço do status quo.
O teu texto já desmontou com elegância e contundência o tipo de pensamento que ele representa. Não lhe dês mais palco. Deixa-o a falar sozinho no pedestal empoeirado onde ele se colocou. O povo, esse sim, precisa da tua voz.
Segue firme.
Chande Puna
Contundente! Nos dias de hoje combate se o ferro com ferro.
Khumalo Macaussane
(...) fiscal epistemológico..." 😂
Venancio Amido
Malandro foi apanhado, vamos comer carne😂
Custodio Rame
Padrões macamianos😂

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