Quando as certezas fragilizam a democracia

Elisio Macamo
16 h ·

Eu acho que existe uma relação intrínsica entre a democracia e o cepticismo. Democracia pressupõe deliberação. Deliberação significa o reconhecimento de ideias diferentes sobre a sociedade e que precisam de ser confrontadas. O resultado nem sempre é a melhor formulação dum problema ou duma solução, mas sim o envolvimento de todos no processo de procura. Tudo isto só me parece possível onde partimos da falibilidade humana. Pela sua costela deliberativa, a democracia é o reconhecimento dessa falibilidade. Ninguém detém a verdade sobre as coisas da vida política, social e económica, por um lado, e nem sempre a melhor solução é a melhor do ponto de vista técnico. A melhor solução é sempre aquela que nasce dum processo deliberativo justo. Numa democracia digna desse nome.

A democracia liberal tem muitos defeitos. As que existem no mundo não são perfeitas. As pessoas que vivem nessas democracias não são necessariamente as mais virtuosas do mundo. Contudo, as democracias liberais são muito melhores do que todos os outros sistemas políticos pelo simples de que se fundam no princípio básico de aprendizagem a partir dos próprios erros. Elas não se guiam por uma ideologia milenarista que coloca certas pessoas na posição previlegiada de conhecerem o desfecho da história. Foi esta convicção problemática, ainda que compreensível do ponto de vista histórico, que comprometeu a nossa independência e, desde então, tem feito estragos nas mentes de muitos de nós.

O maior estrago situa-se ao nível da atracção que teorias de conspiração exercem sobre nós. Estas consistem na ideia de que acontecimentos de cariz político se explicam pelo benefício que certos indivíduos (normalmente indivíduos ligados ao poder) tiram deles. Não é totalmente absurdo acreditar nisto porque sabemos que a política pode também funcionar dessa maneira. Quem acredita nisso também não precisa de ser uma pessoa chanfrada, pois muitas vezes para sustentar uma teoria dessa natureza é preciso ter a capacidade de acumular muita informação, alguma dela complexa. O problema com teorias de conspiração coloca-se mais ao nível da predisposição intelectual da pessoa para dar crédito a fontes obscuras ou certos tipos de raciocínios problemáticos. Tem muito a ver com a necessidade de conforto de convicções, mas mais grave ainda, com reticências em relação à própria ideia de democracia, reticências essas alicerçadas na necessidade de certezas que alguns têm.

Circula, por exemplo, um texto que sugere que Gadafi teria sido morto pelo Ocidente alegadamente por causa dos seus planos de criar uma moeda africana que colocaria em perigo o ascendente francês no continente. É um artigo muito mal argumentado, sem fontes concretas, mas tenho visto até pessoas intelectualmente sérias a partilharem essa teoria de conspiração sem com isso querer dizer que quem partilha necessariamente acredita no que vem lá. Quem acredita naquilo não o faz apenas por insuficiência intelectual.
É credulidade misturada com graves dificuldades de leitura crítica. É verdade que a nossa experiência com o Ocidente nos aconselha cautela na avaliação destes assuntos. Não é improvável que alguém lá no Ocidente desenhe um plano dessa natureza por essas razões. Só que tudo quanto sabemos agora, sobretudo em relação à conduta errática e autoritária de Gadafi, aponta mais para um problema interno que outros, bem ou mal avisados, usaram, não necessariamente com o objectivo de impedir a criação duma moeda africana. Mas eu sei que nos faz bem acreditar que um indivíduo que nunca respeitou o seu povo tenha sido um mártir pela causa africana.

O crime hediondo que vitimou o nosso compatriota Matavele é alarmante. É perfeitamente plausível partir do princípio de que tenha sido mandatado pelo regime. Seria ingênuo querer negar isso. Mas é também problemático, e muito mesmo, partir desse princípio porque ele se sustenta no raciocínio problemático da teoria de conspiração. Mesmo que não tivessem sido comprovadamente membros da FIR, muita gente estaria a apontar o dedo acusador contra o regime. E não só. Há vários casos de agressões físicas graves bem como de execuções ainda não esclarecidos. Não faz muito tempo que o líder dum partido foi horrivelmente espancado em Maputo e, de certeza, nunca saberemos quem o fez ou a mando de quem. É difícil, nestas circunstâncias, não pensar que forças obscuras estejam por detrás disso. E estão. Mas, insisto, essas forças obscuras não são necessariamente o “regime”. A ideia de que seja ele é plausível, mas simplista demais e revela problemas sérios de cultura política.

Ela é simplista porque não reconhece o tipo de País em que vivemos. No nosso País são poucas as coisas que funcionam a contento. As forças de defesa e segurança provam todos os dias não só a sua incapacidade gritante como também a sua falta de respeito pela dignidade dos cidadãos. Não estão infiltratadas. São assim e vai levar tempo até serem melhores do que são agora. No nosso País, valorizamos pouco a vida humana. É normal exigir soluções drásticas para problemas simples de convivência social. Praticamente toda a gente convive mal com a crítica. Não é só o governo. A oposição é assim e, pior ainda, partes consideráveis da chamada sociedade civil são também assim. A forma como algumas pessoas que agem nestes círculos reage às críticas que faço leva-me a supor que, com poder, pudessem fazer recurso à violência. Pelas ameaças regulares que recebo no inbox dá para perceber isso. Isto também quer dizer que vivemos num ambiente político em que qualquer pessoa, sobretudo funcionário público ou militante de alguma causa, é vulnerável ao excesso de zelo e confunda legalidade (ou mesmo civismo) com o que serve aquilo que ela pensa ser o interesse do regime (ou da sua causa particular). Considero pertinente a série de textos sobre o “poder da Frelimo”.

A questão da cultura política entra doutra maneira. A teoria da conspiração sente-se bem em mentes extremistas. A ideia de que existem forças ocultas que determinam o curso político é própria de quem concebe a política em termos de “nós” e “eles”, sendo que nós somos as “vítimas” e “eles” são os todos poderosos que vivem à nossa custa. Para este tipo de mente, a política não presta porque quem ganha, ganha tudo e quem perde, perde tudo. Não existe meio-termo. O problema é a transformação da política num espaço de certezas. Existem os maus e os bons, todos eles exímios na sua maneira de ser. Nao é possível apostar em teorias de conspiração e, ao mesmo tempo, acreditar na possibilidade de melhorar o sistema político. É tudo ou nada. Está tudo podre, por isso a solução tem que ser radical. É a ideia de acabar com tudo na vã esperança de que o que vier depois seja melhor, mesmo que você não tenha reflectido sobre essa tal coisa.

Repito: pode ser que o regime esteja metido no crime de ontem. É uma maneira de amedrontar vozes críticas, se calhar como preparação para uma possível fraude eleitoral. Mas lá está: Em Gaza? Esse tal regime não sabe que se prejudica mais fazendo isso? Os seus estrategas acham mesmo que a uma semana das eleições um caso que seriamente compromete a sua imagem possa ser útil para a sua campanha? Volto a repetir: pode ser que o regime esteja metido nesse crime. Precisa de ser muito estúpido e limitado politicamente para pensar assim. E se for esse o caso, então o problema é bem mais grave do que a gente possa pensar. Somos governados por gente estúpida e como todo o povo merece os governantes que tem...

Qualquer um de nós em Moçambique é vítima potencial. Isso não resulta necessariamente de sermos governados por um regime que se quer manter no poder a todo o custo. Resulta fundamentalmente do tipo de País que somos, disfuncional, em desenvolvimento e ainda mais com uma história terrível de falta de respeito pela dignidade humana. Sem querer menosprezar as vítimas de agressões não esclarecidas, nem mesmo estimular ninguém a “fazer melhor”, é preciso não esquecer que Moz não é exactamente um País onde se matam opositores ou críticos a todo o momento. A teoria de conspiração teria mais peso, mesmo continuando equivocada, se esse fosse o caso. Não é. E só isso nos diz que nós com alguma formação intelectual devemos ser melhores do que estamos a ser.

Quando um País passa pelo tipo de provação que o nosso passa, os intelectuais são chamados a reflectir, não a atiçar os ânimos. Intelectuais, claro, que acreditam na democracia...

Comentários


Jawad Talaa
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Celia Meneses Mas se essas forças obscuras não são necessariamente o regime( concordo contigo até aqui) porque é que o regime não se demarca , para não ficar no mesmo saco?!!
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· 16 h


Elisio Macamo há várias razões para tal. uma é que quem lidera este regime tem sérias limitações a esse nível. há muito, por exemplo, que ele devia ter convidado todos os outros candidatos a fazerem uma espécie de pacto eleitoral para travar a violência eleitoral. não o fez. a outra é procedural. se de cada vez que acontece algo assim o governo viesse a público explicar-se ficaria também muito suspeito. a última é porque o estado é mesmo disfuncional.
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· 15 h

Celia Meneses Elisio Macamo suspeito já está, não pode ficar mais.
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· 14 h

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Esménia Wanicela Subscrevo ipsis verbis.... Eu chamava atenção à uns amigos num grupo do Whatsapp, sobre o cuidado que devemos ter com o óbvio.
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· 16 h


Elisio Macamo mas o Júlio Mutisse tem se portado bem neste assunto. parece que está na onda da abstenção...
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· 15 h

Esménia Wanicela Elisio Macamo o homem anda estranhamente quieto e comportado…..
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· 15 h

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Júlio Mutisse Não sei se é paciência mas algo se esgotou. As pessoas estão focadas no "todos sabem" que ninguém sabe. Credulidade ao mais alto nível.
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· 14 h

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Ricardino Dumas A definição que Elisio Macamo atribui o sentido de deliberação faz uma distinção interessante entre deliberação e execução em sentido conceitual muito interessante, distinto da linguagem corrente. Mantenha.
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· 12 h


Elisio Macamo abraço.
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· 11 h


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Reginaldo Mutemba O país está cada vez mais incompreensível! Esses tipos de abusos existem em todo o lado. Ví um comunicado em que um administrador ordenava aos funcionários com cargos de chefia e confiança para contrair matrimónio colectivo até 30 de Novembro. Não sei com que lei. Outros administradores envolvem se com mulheres casadas e depois usa as forças policiais para perseguir o marido... basta ser chefe, significa que rens mais dignidade que o resto. Pode exibir o teu poder como quiser. Existem excessos. Os membros do partido que criam células nas instituições do Estado até criam condições para que o responsável pela instituição cometa erros e a partir daí " tramar"lhe, informar ao chefe do partido que fulano cometeu erros para ser despromovido em troca de favores. Existe um estímulo que cada membro do partido espera por uma luta em defesa do bom nome dos dirigentes supremos. Qualquer pessoa em defesa do partido pode agir como quiser o partido agradece. Mas essa forma não termina só na frelimo. Se olharmos para a nossa AR. Os grupos parlamentares sente se bem vilipendiando colegas de outras bancadas e isso faz muito bem ao outro grupo. Isso piora porque na minha opinião parece que o Estado está nas mãos dos partidos. Os actores são os mesmos. É polícia, pode faltar ao servico fazer campanha terá feito bem. Não problema no Estado. Então, acho que devemos aceitar perder para construir um Estado em que todos participam de diferentes formas. Existe um controlo muito forte do partido ás instituições. Se olhar para o desporto e outras. Por isso há coisas que superam o Estado amarado na não do partido. Isso os cidadão ja percebem. É por essa razão que existe uma cidadania agressiva que tenta negociar o controlo do Estado minimizado na mão pelo partido favorecido pelo sistema presidencialista, adoptado. Uma descrição concreta do funcionamento do nosso Estado poderemos perceber a razão da sua disfuncionalidade.
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