Thursday, October 31, 2019

Pornografia moral


Pornografia moral
O pensador francês, Jean Baudrillard, usa um conceito, “simulacro”, que me fascina. Segundo ele, o “simulacro” é a representação fiel do que não existe. Ele, continua Baudrillard, não é o que esconde a verdade. A verdade é que esconde a ausência da verdade. Pornografia, nestes termos, é a exposição e amplificação duma realidade erótica que praticamente não tem nada a ver com a vida real. Sei que a coisa não está clara, mas recorro a ela para dizer que há um certo sentido em que a moral, na nossa terra, virou um “simulacro” que expõe e amplifica uma realidade que não existe. Indignamo-nos mais pelo próprio prazer da indignação do que pelo que poderia ter acontecido para suscitar em nós esse sentimento. Tornou-se mais importante mostrar indignação do que ter realmente razões para tal. A indignação, como aliás muitas outras coisas, tornou-se auto-poética.
Tudo isto vem a propósito dos desdobramentos que o caso das dívidas ocultas está a assumir. Antes de entrar nos detalhes da coisa, queria partilhar algo que li recentemente sobre um grande caso de corrupção na Holanda – nos anos setenta. Envolvia a companhia aeronáutica americana, Lockheed, e o Príncipe Bernhard, inspector geral do exército holandês, representante do mundo holandês de negócios no exterior e, acima de tudo, marido da Raínha Juliana da Holanda. A Lockheed tinha o hábito de subornar figuras públicas em todo o mundo para vender o seu produto. Foi principalmente por causa destas práticas – que afectavam outras companhias americanas – que os EUA introduziram a lei que pune companhias americanas que subornam entidades e personalidades públicas no estrangeiro, medida que só muito recentemente – e com reluctância – foi adoptada pelos membros da União Europeia.
O Príncipe era muito popular – por causa do seu papel heróico durante a ocupação Nazi – e havia o receio de que a Raínha abdicasse e com ela também a Princesa Beatrix que lhe iria suceder. Aliás, elas ameaçaram fazer isso se o Príncipe fosse levado a tribunal. Criou-se uma comissão de inquérito que apurou que, sim, de facto, o Príncipe tinha recebido subornos, mas a classe política, liderada pelo então Primeiro Ministro social democrata, Joop Den Uyl, foi ao parlamento pedir para que não fosse julgado para se evitar uma crise constitucional. O Parlamento aprovou esta moção.
Chang vai ser julgado nos EUA. Anuncia-se com entusiasmo masoquista que mais pessoas se seguirão. Isto é capaz de virar uma sangria. Não seremos poupados a habitual pornografia moral que revela até que ponto nos alheamos do País real e passamos a viver numa bolha moral que ao rebentar vai nos levar consigo, não importa se fazemos parte dos bons ou dos maus. Há três assuntos que vale à pena reflectir, mesmo para quem já decidiu que o importante é que o País seja livrado não só da corrupção como também dos corruptos.
O primeiro assunto tem a ver com a perversão das relações internacionais. Os EUA estão a estender a sua jurisdição além-fronteiras. Tudo bem, eles têm o poderio militar para tal. O problema, contudo, é que isso desestabiliza processos delicados de construção de Estado, o que cria focos de instabilidade que consomem os recursos dos próprios EUA. Na verdade, o que acontece é que eles estão a punir o elo mais fraco – os países em desenvolvimento – por crimes cuja ocasião foi criada por eles próprios. A financeirização da economia que tem como um dos seus lados mais sórdidos a existência de esquemas de circulação de dinheiro fictício é que está na origem de grande parte do esquema em que o empreendimento que resultou nas dívidas se tornou fatídico.
É interessante notar que os principais queixosos são, na verdade, fundos de capitais que fazem verdadeiros estragos por todo o mundo. Até certo ponto estamos perante uma história de dois gatunos numa competição que viu um a perder e outro a ganhar. O gatuno que perdeu foi à polícia queixar. Faria mais sentido resolver este problema na arquictetura financeira internacional do que andar atràs dos Changs deste mundo. É um pouco como a guerra contra o narcotráfico. O problema está nos EUA, não na Colômbia.
O segundo assunto tem a ver com a oportunidade que a Frelimo perdeu de usar o caso das dívidas ocultas para fazer reformas internas sérias. Os seus membros foram ao Congresso e às sessões do Comité Central e contentaram-se em demonstrar hostilidade a Guebas sem, contudo, mudar seja o que fosse. Pensaram que lançando impropérios feios contra os “lesa-pátria” eles iriam resolver o problema. O próprio Presidente, que pela posição que ocupou no governo que contraíu as dívidas, devia ter todo o interesse em abordar o assunto de forma adulta, pareceu mais interessado em ser festejado do que em fazer o trabalho partidário necessário. Foi eleito com uma percentagem aparatosa, mas cada novo detalhe que vem lá de Nova Iorque deve estar a dar um sabor cada vez mais amargo à vitória. E como os americanos são implacáveis, nem há certeza se a Ponta Vermelha é um lugar seguro. O cálculo parece ter sido simples: se nos apanharem que se lixe o País!
O terceiro assunto é a ausência total de sentido crítico na abordagem deste assunto. Insiste-se em reduzir as dívidas ocultas a uma questão de ganância pessoal. É uma posição cômoda porque livra as pessoas da dor de pensar. Não há pior coisa que pode acontecer a uma sociedade que quando a sua classe intelectual abdica do pensamento crítico. Com o debate intelectual a ser dominado cada vez mais por moralistas isto é o que está justamente a acontecer. Mentes aparentemente sãs agarram-se à ideia que a indústria do desenvolvimento transmite de que o nosso problema é a corrupção e insiste em transformar a reflexão crítica num mastigar incessante de lugares-comum. Gente intelectualmente sã insiste que perguntas como, por exemplo, “como eliminar/controlar/prevenir a corrupção” são perguntas úteis para o nosso País. Exercícios analíticos simples como, por exemplo, procurar saber se (a) um determinado comportamento se explica pelo indivíduo ou pela oportunidade, (b) se um determinado diagnóstico descreve o comportamento dum sintoma ou dum problema de fundo e (c) se algum comportamento se manifesta independentemente das circunstâncias não estão a ser feitos. Há uma tirania de conclusões que nos impede de pensar. Ao mesmo tempo dá-nos aquela gratificação de que realmente pensamos.
Eu não me esqueço. Uma vez, nas margens do Rio Limpopo, camponeses perto de Xai-Xai mostraram-me um lugar onde Ngungunyan fez necessidades maiores quando era transportado pelos Portugueses para Maputo para depois ir ao desterro. E riam-se, os camponeses. Eu também. Ríamo-nos porque eles e eu sabíamos que Ngungunyan fora um déspota e que para muitos a sua derrota tinha sido um grande alívio. Só que aqueles que o derrotaram, com a nossa ajuda, também não eram nossos amigos. E provaram-no subsequentemente tornando proféticas as palavras que ele proferiu enquanto embarcava para os Açores. A “liberdade” que os portugueses traziam revelou-se um simulacro...
A gente não aprende.
Comentários
  • Amosse Macamo E continuará a tendência de exposição e amplificação de realidades que não existem porque tem se a ideia de que o mal que se promove (no pressuposto de ser o bem), nunca será problema para eles ...até que vire um problema ...porque não são nossos amigos estes que hoje se “empenham para nos ajudarem a fazer justiça”.
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    • Elisio Macamo há quem acha que são nossos amigos. a maior tristeza está aí. muita gente que teria ajudado mouzinho de albuquerque...
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    • Alvaro Simao Cossa Houve uma expedição de voluntários e de reclusos que lhes foi restituida a liberdade em Inhambane para irem combater as tropas de Ngungunyani. Depois do fim da guerra os individuos daquela expedição regressaram para a sua terra e lá começaram a exigir direitos iguais aos dos funcionários administrativos portugueses que eram auxiliados por uma hierarquia de chefes de povoação, que estavam isentos de pagar imposto e de realização de trabalho forçado, recebendo uma ajuda no recenseamento e colecta de impostos e mobilização de mão-de-obra, mas o então regedor de Inhambane negou-lhes esse direito e devolveu aqueles que antes eram presos para as cadeias e alguns foram mandados para trabalhos forçados por não pagarem impostos e acusados de desordeiros. Pornografia moral, acredito.
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  • Djoko Chemane Quem não conhece a sua história está fadado a repetí-la...
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  • Rui Costa Primeiro assunto, "debatable", embora o ovo tenha nascido primeiro que a galinha.
    Segundo assunto, muito bom.
    Terceiro assunto, bom+optimo...e "acagaçante".

    Obgdo.
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  • Jaime Luis Jemuce Boa reflexão! Me identifiquei muito com o segundo ponto!
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  • Mablinga Shikhani “A dor de pensar” não os inibe da incontinência verbal. Lamentavelmente...
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  • Celia Meneses Tínhamos que ter a força para discutir tudo isto nos sítios certos e logo qdo daria ao País algum auto respeito. Agora temos as consequências.
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    • Mablinga Shikhani Celia Meneses não se discute: acusa-se. Por isso NÃO há debate no país.

      Os Bons (donos da Verdade) acusam tudo e todos. Os Maus (questionadores/cépticos) são vendidos, pintados a amarelo e achincalhados em público.
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    • Celia Meneses Uma acusação pode ser um início de debate. Não se teve os ditos cujos para pegar no touro pelos chifres e agora é isto...
    • Mablinga Shikhani Celia Meneses faz espécie ouvir de doutos e adultos argumentos chulos e linguajares. Para quê temos escolas? o que ensinamos às crianças? Que utilidade para o país?

      Depois nos surpreendemos com a “falta de referências” se toda nossa acção é um haraquiri à dignidade, uma enorme cuspidela ao passado.

      Começo a ficar cansado...
    • Celia Meneses Mablinga Shikhani todos cansados e fartos menos o povo que lava no rio.Nao há vítimas aqui há actores que teem de assumir as suas responsabilidades históricas e não só. Não há vítimas e se as houver é este povo sofredor.
    • Mablinga Shikhani Celia Meneses tenho vadiado um pouco por esses rios e menos em mares... até esse “povo sofredor” acaba sendo uma ardilosa construção dos “Bons”.

      Cresci de uma família assim, ainda fugíamos dos óvulos da democracia mas aqui estamos nós.


      Não se esqueça que a “Indústria da Ajuda” compete com a “Indústria da Fé”.

      Permita-me sugerir a (re)leitura da minha nota “ONG’s as Novas Caravelas”
    • Celia Meneses Mablinga Shikhani sim tudo isso é verdade. Mas o poder tinha de ter feito o que não fez estamos aqui!
    • Elisio Macamo Celia, para mim está claro que há coisas que deviam ter sido feitas, mas não foram. fartei-me de chamar atenção para algumas dessas coisas. agora, o que é também um problema sério entre nós é este moralismo que ocupou o lugar da reflexão crítica. não precisamos de estar de acordo sobre sea corrupção existe ou não, se ela é tudo isso que dela se diz ou não. só que os assuntos do país são discutidos em função de agendas externas que praticamente bloqueiam a reflexão, já perdemos. olha só pata o alheamento dos intelectuais, como falam sobre o seu país (como se não lhes dissesse respeito), olha para os jornais como tratam o exército como inimigo... o ambiente é pouco salutar para reflexões sérias.
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    • Celia Meneses Percebo pois o tempo de o fazer ficou lá atrás. Pena, muita pena
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    • Mablinga Shikhani Elisio Macamo pois. Uma narrativa de Estado-Bandido e glorificação da bandidagem política.

      Nem aí percebo se isto aconteceu porque não foi feito o que deveria ter sido.


      Percebo raivas e frustrações pessoais, pequenas vinganças temperadas de argumentos científicos.

      A mesquinhez impregna a academia e já assalta a mídia. O pensar está conspurcado: desconstruir o Estado é o mote do novo academicismo.
      Voilà ces’t la
      “Nouvelle Imbécilité”...🤷🏼‍♂️
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    • Mablinga Shikhani Celia Meneses não, Elisio Macamo não. Se o mal ainda existe é tarefa actual corrigí-lo não domesticá-lo. Vou dormir...
    • Celia Meneses Mablinga Shikhani concordo! Há que corrigir o rumo e rapidamente.
    • Mablinga Shikhani Celia Meneses ntsén! Bons sonhos???🤗
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  • Pedro Guiliche Elisio Macamo, concordo contigo na pertinência de um convite a um debate mais profundo (e cientificamente informado) sobre as implicações políticas da financeirização da economia. Seria importante porque nos levaria de facto a reparar de forma crítica para os esquemas de circulação de dinheiro “fácil”, o que em parte concorre para os endividamentos insustentaveis dos países da periferia do sistema internacional. Por aí, acredito que precisamos fazer mais para aproveitarmos uma grande massa crítica que existe na nossa academia. Aí pensaríamos por exemplo em mecanismos domésticos para melhor enquadrar o País nestas dinâmicas, olhando para frente. No entanto, parece-me também verdade que ainda que haja conhecimento sobre essas realidades, nossos debates científicos quer seja na academia ou fora dela são igualmente produto desta mesma indústria financiada pelos mesmas esquemas. É só ver que ainda nos debatemos com a necessidade de indexar o financiamento da investigação ao PIB. Ainda assim, concordo que o passo inicial é a tomada de consciência sobre a complexidade do problema. Talvez assim evitemos análises minimalistas.
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    • Elisio Macamo Pedro Guiliche, é também uma questão de integridade intelectual. eu fico consternado quando vejo comentários de alguns académicos por aqui. juntam-se à mediocridade moralista, dão-lhe alento e falham no seu dever de interrogar o senso comum. assim também não dá. temos muita “pesquisa” feita por moralistas e cuja qualidade brada aos céus. temos uma imprensa ideológica sem consciência da sua responsabilidade para com o país. é difícil assim.
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    • Pedro Guiliche Claramente, outros ainda por possível limitação de ferramenta analítica ou por outras razões pouco claras, limitam-se aos insultos. Bom pode até ser uma forma de viver, mas de certo que é pouco útil a sociedade.
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  • Luis Baptista Profundo
  • Hilario Agostinho Mabota Infelizmente professor Elisio Macamo, a maioria "massa crítica" do nosso país não pensa. Acho que faço parte dela. Está habituada a repetir tudo o que o ocidente diz. Pensamos sempre que esses outros estão dispostos a nos ajudar a varrer o nosso próprio quintal. Quem é tão "burro" para se submeter a tamanha macaquice?
  • Joshua Malele Progessor
  • Lourenco Rosario Elísio, aqui, na Pátria Amada, crucificam quem pensa que a questão não é aplaudir que os Changs e quejandos sejam degolados em praça pública pelo Tio Sam, mas sim fazer uma profunda introspecção sobre como arrumar as nossas mentes para connosco próprios. Fazer o quê?
  • Brazao Catopola Professor, concordo com muito do que diz aqui sobretudo os três pontos por analisar. No entanto em relação ao simulàcro e a moral eu questiono o que dá origem a isso. Quero antes recordar sem entrar na argumentação ainda que a poucos dias o professor disse que a corrupção é na verdade excesso de moral? Seria caso aqui aplicável? Voltandoa questão do simulácro, a meu ver não se trata de verdade inexistente, mas de uma moral em relação as instituições que temos e que esperamos delas. A moral existente é uma forma de pressiona—las a ser o que deveriam ser. A maioria das pessoas quer Chang nos EUA não por gostarem ou não saberem das maldades desse país sobre os outros. Asa pessoas na sua maioria nem conhecem Chang, mas todas elas não acreditam na moral institucional ( aqui simulacro sim de instituições morais) para dar seguimento ao processo segundo o expetado. Acredito que o Professor esteja an olhar na perspectiva das reaçoes sobre quem é, se quisermos corrupto, mas não sobre porque não se quer o Changa ser julgado cá. Podemos dizer que há possibilidades de tornar as nossas instituições fortes etc etc, no fundo sabemos que muito das instituições são pessoas que detém e exercem o poder e negociat com elas tem efeitos (mortes, baleamentos, partida de ossos etc) daí que tal como nas eleições ganhou o menos mau, no caso em apreço pede—se o menos mau.
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  • Dino Said Bufalo ..."se nos apanherem que se liche o País"... Não hâ pior coisa que os intelectuais abdicarem do pensamento crítico". A pátria clama por nòs!

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