Por Helena Matos
Marcelo não quer que se "berre" a propósito dos portugueses da Venezuela. Mas o que distingue o berro da afirmação de valores? Apenas o campo político donde vêm as palavras.
Marcelo pede que não se “berre” sobre o apoio aos portugueses na Venezuela Talvez tenha sido pelo “berre”. Afinal há palavras de que gostamos e outras não. E claramente eu não gosto de “berre”. Ou talvez tenha sido por causa dos calções, mais a toalhinha de banho, a cabecinha dentro de água e aquela mania de comentar assuntos de Estado quando vem a sair da água. Nós, os que não nos candidatámos à Presidência da República, quando saímos do banho falamos do almoço, do caminho para casa e doutras trivialidades. Vossa Excelência, que transforma numa trivialidade os assuntos mais sérios do país, ao primeiro microfone que entrevê, ainda com a água a escorrer-lhe entre o cabelo e o pescoço, dá dois dedos de conversa sobre a beleza da paisagem, e o desemprego; a temperatura da água e as Forças Armadas… Seja pelo desconchavo da situação, seja porque Portugal é um país a viver sob o Síndrome da Vergonha Alheia, faz-se de conta que tudo isto é normal.
E assim estávamos nós neste aquashow sobre todo e qualquer assunto por mais grave que ele seja quando Vossa Excelência vem de lá com esse “berre”. Ao princípio quis crer que era uma espécie de forma de protesto do presidencial corpo, avezado que já andava à usança das entrevistas em tronco nu e que de um dia para o outro teve de voltar ao fatinho e quiçá aos sapatos apertados, que é coisa que literalmente falando dá vontade de berrar, uivar e às vezes até ganir. Mas eis que leio devidamente detalhadas as declarações de Vossa Excelência nessa entrevista à Renascença: “O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, espera que ‘casos como o da Venezuela’ não se transformem ‘em instrumento de campanha eleitoral’, porque ‘começar a berrar’ sobre a estratégia de apoio aos emigrantes portugueses na Venezuela poder ser prejudicial. ‘Para alguns, pode ser muito interessante, erradamente, começar a berrar em torno disso, mas podem prejudicar os nossos compatriotas que lá estão. O que tem que ser feito, tem que ser feito de uma forma que não é pública’, defende o chefe de Estado, em entrevista à Renascença.”
Como Vossa Excelência bem sabe, sempre, mas sempre que o poder político – e sim, estou também a referir-me a Vossa Excelência, que a par do senhor conselheiro Francisco Louçã é dos políticos há mais tempo em funções neste país – nos diz que algo é tão importante, mas tão importante que nós não podemos ser informados sobre isso e muito menos comentá-lo, o resultado é que nos estão a esconder casos de corrupção, falhanço de medidas, incapacidade, negligência e incompetência de governos ou, como aconteceu com os chamados retornados em 1975, a fazer de conta que a catástrofe não está a acontecer. Relembro-o, senhor Presidente, que em Junho de 1974, quando os primeiros incidentes nos musseques de Luanda deram o sinal para a traição anunciada de democracia e liberdade para Angola, ninguém berrou em Portugal. Porque só os reaccionários é que berravam, não era? E que berraria não teria sido denunciar o massacre dos comandos negros na Guiné, em Julho de 1974?… Aliás, durante anos, falar de retornados em Portugal era uma berraria, não era?
Mas vamos às berrarias contemporâneas. Mais precisamente ao que distingue no vocabulário político-mediático o conceito de berraria do de denúncia de uma injustiça. Por exemplo, Vossa Excelência berrou ou denunciou quando, a propósito dos refugiados, declarou a 20 de Junho: “A defesa dos refugiados a nível mundial é uma obrigação de uma sociedade democrática”. Numa mensagem disponibilizada no portal da Presidência da República, a propósito do Dia Mundial do Refugiado, o chefe de Estado sublinha “os valores de solidariedade, abertura e tolerância que Portugal defende e preconiza, e também o amplo consenso nacional sobre o acolhimento e integração dos refugiados na sociedade portuguesa”?
Em que ficamos, senhor Presidente: quando e a propósito de quem podemos referir, sem sermos acusados de estar a berrar, “os valores de solidariedade, abertura e tolerância que Portugal defende e preconiza”? Responder-me-á Vossa Excelência que a distinção é feita quando existe a possibilidade de um aproveitamento político. A explicação até funcionaria não tivesse Vossa Excelência declarado a 12 de Junho de 2018: Acolhimento de refugiados por Espanha representa “verdadeiro espírito europeu”, afirma Marcelo. O Presidente da República enalteceu, na segunda-feira, o facto de Espanha ter acolhido o navio “Aurora”, com 629 refugiados. Disse que o gesto representa “o verdadeiro espírito europeu”.
Saberá Vossa Excelência que esta iniciativa do governo espanhol foi política pura, portas adentro e fora. E Vossa Excelência, Presidente da República portuguesa, não se coibiu de a comentar. Ou de berrar. Seja qual for o verbo usado continuo na dúvida: porque estamos a aplicar “o verdadeiro espírito europeu” quando nos declaramos dispostos a receber todos os migrantes que aqui desembarquem provenientes de África e do Médio Oriente e estamos a berrar quando tão só tentamos saber que tipo de auxílio está a ser prestado aos portugueses residentes na Venezuela?
Para resolver a destrinça resolvi socorrer-me das suas próprias declarações. Mais propriamente daquela espécie de aforismos com que a 14 de Março de 2018 nos iniciou nos meandros da “verdadeira Europa”: Marcelo: A verdadeira Europa é a que acolhe os refugiados, não a dos populistas. O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, afirmou hoje que a verdadeira Europa, na qual ainda acredita, é a que acolhe os refugiados, honrando os valores com que foi fundada, e não a dos populistas. Isto será um murmúrio, sr. Presidente? Uma afirmação veemente de valores? Ou um berro?…
Sabe, senhor Presidente, o que me parece que distingue o berro da afirmação de valores é tão só o campo político de onde vêm as palavras. Passa-se exactamente o mesmo com as pessoas em situação desesperada: os nascidos no Médio Oriente ou no norte de África merecem toda a atenção, sobretudo se forem muçulmanos; se se tratar dos portugueses na Venezuela admite-se falar deles — mas sem berraria, claro — no âmbito do falhanço não do socialismo mas sim do falso socialismo de Maduro versus o verdadeiro socialismo de Chávez. Já se em causa estiverem as perseguições que neste momento se abatem sobre os fazendeiros brancos da África do Sul, então o silêncio é total. Confesso-lhe que entre os meus temores se conta ver, dentro de alguns anos, Vossa Excelência a cantar e a pular num concerto qualquer a favor dos esfomeados da África do Sul. Não porque Vossa Excelência não saiba cantar ou pular mas sim porque isso significaria que triunfou a linha política que faz do ódio aos brancos uma táctica para transformar aquele país numa ditadura socialista e replicar ali o processo que transformou a Rodésia / Zimbabwe de potência agrícola em país de esfomeados.
Mas deixemos os meus temores de lado e passemos às minhas certezas: tendo Vossa Excelência estabelecido como linha política silenciar o centro-direita e percebendo-se, até no uso inusitado que fez do verbo berrar na entrevista à Rádio Renascença, como o impacienta a simples hipótese de algum político nesse campo emitir uma opinião que se ouça, sabemos ambos que chegará o dia em que essa esquerda, a que acredita ter ganho por via da popularidade, lhe vai dar uma palmadinha no ombro e dizer-lhe para ir fazer selfies enquanto eles fazem política. Nesse dia, quantas pessoas berrarão por si, senhor Presidente?
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