Monday, May 28, 2018

A solidão do ‘’presidente emérito’’ e os ‘’ratos de porão’’


POLÍTICA
 
 26 de Maio de 2018


Severino Carlos


Com a questão da responsabilidade ao rubro, o Correio Angolense traz o assunto novamente à pauta, fazendo a análise de ‘quem-é-quem’ e ‘quem-fez-o-quê’ durante o consulado de JES. O tema ganha agora maior pertinência com a realização, sexta-feira, 25, da reunião do Comité Central do MPLA em que se consumou a marcação oficial da data do Congresso Extraordinário (7 de Setembro) que ditará, em definitivo, a sucessão de JES na liderança do maior partido angolano.
 
E ‘nesta hora solene’ – recorrendo a um jargão muito usado pelos ‘camaradas’ nos tempos de revolução –, este jornal reitera, aqui, o que tem vindo a dizer: não é inteiramente justo – e tão-pouco aceitável em termos éticos – a conduta de ‘ratos de porão’ que os antigos pares de JES têm vindo a mostrar a olho nu. Firmemente dispostos, pelos vistos, a fazer com que JES pague sozinho pelos erros cometidos por todo o regime durante o seu consulado, deixaram-no praticamente sozinho em alto-mar.
De orgulho ferido e transformado praticamente num eremita – por estes dias enclausurado na sua mansão do Miramar –, o ainda líder do MPLA tem vindo a queixar-se, em círculos que lhe são próximos, do abandono a que foi votado por praticamente todo o seu antigo séquito de prosélitos e indefectíveis, sendo que uns poucos eram companheiros de facto. De resto, e ao que sabe o Correio Angolense, esse foi o ‘leit-motiv’ do encontro que José Eduardo dos Santos manteve recentemente com o Clero angolano, realizado aliás por iniciativa do próprio.
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"O que é preciso dizer e reiterar neste momento, é que JES não é nenhum santo. Nunca o foi. Aliás, ele é mesmo o principal responsável da hecatombe que vive o país nesta altura em que se apresta a fechar a cortina sobre a vida política activa. Foi JES quem criou a situação presente e um pouco de história ajuda-nos a perceber o que se passa hoje, ou seja, como foi que ele próprio, inebriado a dada altura pelo poder, se auto-armadilhou. Em 2010, ele criou uma Constituição, frise-se, formatada à medida das suas ambições e interesses. Chamou a si todos os poderes, recusando-se a partilhá-los com quem quer que fosse. A acumulação de poderes constitucionais incitou-o a comportar-se como um Deus, esticando demasiado a corda, o que terá também, reconheça-se, contribuído para que algumas pessoas que colaboravam com ele, mas não eram dadas à adulação, se fossem afastando. E não foram apenas os seus coetâneos a nível doméstico que o abandonaram."
Nessa ocasião, frente a frente com os prelados e denotando uma humildade que nunca foi sua marca, JES não só se queixou do abandono a que está votado, como o fez também em relação às culpas e responsabilidades que lhe estarão a ser assacadas pelos seus pares do regime que liderou durante 38 anos. Os bispos saíram do encontro claramente comovidos e sensibilizados com a situação do velho presidente e até acabaram manifestando alguma compreensão com os seus argumentos. Por isso mesmo é que, no seu pronunciamento público a respeito, Dom Anastácio Kahango fez questão de salientar que a solidão não é boa para ninguém. “Quando ficamos sozinhos, muitas vezes até o funje não entra!”, acentuou o prelado na ocasião.
Na verdade, o que é preciso dizer e reiterar neste momento, é que JES não é nenhum santo. Nunca o foi. Aliás, para que não haja equívocos, ele é mesmo o principal responsável da hecatombe que vive o país nesta altura em que se apresta a fechar a cortina sobre a vida política activa. Foi JES quem criou a situação presente e um pouco de história ajuda-nos a perceber o que se passa hoje, ou seja, como foi que ele próprio, inebriado a dada altura pelo poder, se auto-armadilhou.
 
Em 2010, ele criou uma Constituição, frise-se, formatada à medida das suas ambições e interesses. Chamou a si todos os poderes, recusando-se a partilhá-los com quem quer que fosse. Contabilizados, são mais ou menos 56 poderes que o tornavam praticamente não um presidente de República, mas algo mais próximo de um monarca – o que pode, quem sabe, ter sido o sonho secreto do seu clã familiar.
 
A acumulação de poderes constitucionais incitou-o a comportar-se como um Deus, esticando demasiado a corda, o que terá também, reconheça-se, contribuído para que algumas pessoas que colaboravam com ele, mas não eram dadas à adulação, se fossem afastando. E não foram apenas os seus coetâneos a nível doméstico que o abandonaram. Abandonaram-nos até as clientelas que ele havia ‘comprado’ na região, quando se dava ao luxo de deixar os angolanos à míngua para esbanjar o rico dinheirinho do país em pseudos-acções de caridade e benemerência com países como o Burundi, RCA, Benin e outros sobre os quais Angola pouca influência exercerá e com os quais, pelos vistos, nenhuma afinidade os angolanos terão.
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"O antigo senhor do Palácio da Cidade Alta deixa a cena sem tempo nem capital para tirar partido da fase de pós-poder, ao contrário do que fizeram alguns dos seus antigos pares do continente. Dois bons exemplos são os do moçambicano Joaquim Chissano e do cabo-verdiano Pedro Pires, que hoje brilham na cena continental e mundial, desempenhando-se frequentemente nos papéis de enviados especiais das Nações Unidas. Já JES, apesar de se ufanar de ter feito a ‘paz’ em Angola e noutros palcos do continente, não é cogitado para missões do género pelas organizações internacionais."
Desde que JES foi “defenestrado” da Presidência da República, deixou de ser vista a habitual turma da região que, em romarias constantes, demandavam a capital angolana, então transformada em placa giratória para onde vinham, mensalmente quando não fosse semanalmente, ‘beber’ do conhecimento e da experiência do senhor do Palácio da Cidade Alta – que deixa a cena sem tempo nem capital para tirar partido da fase de pós-poder, ao contrário do que fizeram alguns dos seus antigos pares do continente. Dois bons exemplos são os do moçambicano Joaquim Chissano e do cabo-verdiano Pedro Pires, que hoje brilham na cena continental e mundial, desempenhando-se frequentemente nos papéis de enviados especiais das Nações Unidas. Já JES, apesar de se ufanar de ter feito a ‘paz’ em Angola e noutros palcos do continente, não é cogitado para missões do género pelas organizações internacionais.
 
JES teve a sua ambição de perpetuar-se no poder e satisfazer os interesses da sua família e de outras clientelas suas na sua entourage e no partido-governo. Mas é óbvio que foi competentemente secundado por indivíduos que trataram de corporizar essa ambição dando-lhe o devido entorno legal. Os indivíduos que formularam a Constituição dita atípica (Carlos Feijó entre eles), aquela que suprimiu a eleição presidencial directa, não o fizeram com um fuzil apontado à nuca. Foi de motu-próprio porque também estava em causa a satisfação de seus interesses.
Acredita-se, por outro lado, que em 2001, quando o fim da guerra estava próximo – tendo JES inclusive se dado ao luxo de indicar ao seu arquirrival Jonas Savimbi os três famosos cenários de rendição, captura ou morte em combate – e perfilava-se no horizonte a alta petrolífera que propiciaria o boom económico do país, foram igualmente muitos dos pares de JES, no seu inner-cicle e no sistema em geral, que o terão alentado a permanecer. A alta financeira funcionou como pretexto e argumento para dizerem ao Presidente que era então chegada a hora de acrescentar mais uns asteriscos no curriculum com que entraria para a História. Ao cognome de ‘arquitecto da paz’, podia então juntar os de ‘obreiro da reconstrução nacional’ e ‘mecenas do progresso e desenvolvimento de Angola’.
 
Mas há o outro lado, igualmente perverso, da moeda. Afinal, não foi JES quem concebeu e formulou, a partir de sua própria cabeça, as ideias que permitiram que durante esses anos todos a comunicação social fosse completamente manietada, com o segmento público da classe jornalística comportando-se como uma feroz matilha em defesa de um soberano intocável. Indivíduos do corpo de assessores de JES funcionaram como os chefes da propaganda, tendo mais poderes que os distintos ministros que passaram pela pasta da Comunicação Social. Untavam as mãos de certos jornalistas para servirem de caixa de ressonância dos feitos do regime, particularmente da Presidência da República. Eles determinavam quem devia ou não ser promovido.
Sem que se advogue propriamente algum tipo de ‘vendetta’, também não é justo que os filhos e a parentela toda de JES se passeiem por aí a assobiar, com as mãos nas algibeiras cheias do produto do saque e dos esquemas de nepotismo de que se beneficiaram ao longo dos anos. Aliás, beneficiaram tanto que nunca se viu da parte dos irmãos, primos, sobrinhos e filhinhos de papais qualquer sinal de encorajamento à saída de JES, que não lhes impôs limites absolutamente alguns. Obscenidades como a do relógio arrematado por 500 mil dólares no Festival de Cannes de 2017, dão apenas uma pálida ideia da imagem de carrinhos de carrossel que o país era no conceito dos antigos fedelhos presidenciais.
Com toda a irracionalidade que se pode imaginar, a parentela de JES estimulou-o a ficar até ao último instante. E quando a permanência deixou de ser praticável – sem implicar, no extremo, riscos para o seu próprio pêlo – correram atrás dos juristas e ideólogos de encomenda para, num passe de mágica, formularem a dita opção surrealista que faria de JES um ‘Presidente Emérito’, à pala das prerrogativas especiais que seriam estabelecidas para si no âmbito da Lei Orgânica sobre os Presidentes e Vice-Presidentes da República.
Inúmeros dos antigos ‘homens de confiança do Presidente’ continuam igualmente a passear por aí, desfilando as escandalosas fortunas que amealharam beneficiando-se da condição de “caixas dois” que foram. Muitos dos capitais escondidos no estrangeiro, pelos quais são agora derramadas abundantes rezas para que os seus beneficiários tenham a gentileza de os repatriar, são propriedades de tais sujeitos que, pelo andar da carruagem, continuarão a determinar os enviesados rumos económicos do país, ancorando-os aos seus desígnios e interesses.
 
Há também o papel pernicioso desempenhado pelos homens da classe castrense e das estruturas de segurança e inteligência que a esse nível constituíram-se em suporte estratégico de JES. Foram eles que sustentaram as purgas contra os opositores e a sociedade, arquitectando servicinhos sujos e falsos complôs contra o Estado angolano e demais ‘engenhocas’ contra a segurança e integridade física do Presidente da República.
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"Sem que se advogue propriamente algum tipo de ‘vendetta’, também não é justo que os filhos e a parentela toda de JES se passeiem por aí a assobiar, com as mãos nas algibeiras cheias do produto do saque e dos esquemas de nepotismo de que se beneficiaram ao longo dos anos. Aliás, beneficiaram tanto que nunca se viu da parte dos irmãos, primos, sobrinhos e filhinhos de papais qualquer sinal de encorajamento à saída de JES, que não lhes impôs limites absolutamente alguns. Obscenidades como a do relógio arrematado por 500 mil dólares no Festival de Cannes de 2017, dão apenas uma pálida ideia da imagem de carrinhos de carrocel que o país era no conceito dos antigos fedelhos presidenciais. Com toda a irracionalidade que se pode imaginar, a parentela de JES estimulou-o a ficar até ao último instante."
Mas, enfim, que fique bem claro que a responsabilidade maior é de JES. Se ele reclamou para si o bónus, então deve assumir também o ónus. Tendo tido toda a máquina do Estado e do seu partido a seus pés, permitiu a inversão que faz com que saia agora de forma inglória, empurrado pelas costas e vaiado por aqueles que com ele partilharam a mesma trincheira.
 
Tudo isto, porém, não invalida que se rejeite, aqui, o comportamento de ‘ratos de porão’ que muitos manifestam, a todos os títulos despidos de ética. Afinal, foram muitos destes senhores que, a determinada, vislumbraram em José Eduardo dos Santos atributos para ambicionar a conquista do prémio Nobel da Paz. E logo JES que, em 38 anos de governação em Angola, nunca foi capaz sequer de ser cogitado para dirigir a Organização de Unidade Africana (OUA), que se presume ter sido um dos seus maiores sonhos.
Em suma, JES fechou-se numa redoma de vidro, no interior da qual perdeu de vista que o mundo não girava à volta do seu umbigo. Mas que não esteve sozinho na empreitada que atrasou o país, lá isso também é verdade e deve ter as suas consequências.



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